domingo, 28 de fevereiro de 2016

O Quarto de Jack

            Aviso: Essa crítica pode conter spoilers do filme. A menos que você tenha assistido o trailer, que conta quase toda a história. Nesse caso, nada do que direi aqui será novo. Mas, ainda assim, tentarei ser bonzinho e avisarei quando os spoilers começarem.

            Com a cerimônia do Oscar batendo na porta (e a volta às aulas na faculdade logo atrás, o que com certeza tornará minhas postagens mais esporádicas), está na hora de finalmente falar de um dos concorrentes ao prêmio de Melhor Filme desse ano. E, por mais que eu gostaria de falar de todos os concorrentes, irei falar aqui apenas do um único que assisti até agora. Por que não assisti todos? Porque sou um completo idiota. Ou porque eu estava ocupado demais assistindo Scooby-Doo. De um jeito ou de outro, nada justifica eu estar tão desatualizado. Mas enfim, vamos falar de “O Quarto de Jack”.

            Baseado em um romance de Emma Donoghue (que também escreveu o roteiro do filme), “O Quarto de Jack” conta a história de uma mãe (interpretada por Brie Larson) e seu filho, Jack, de cinco anos (interpretado por Jacob Tremblay). Nos primeiros dois minutos parece que eles tem uma vida quase normal, vivendo em um quarto minúsculo e sem nenhum luxo (o máximo sendo uma televisão velha).
Não demora muito, porém, para o público descobrir que a situação deles é tão longe do normal quanto possível: Sete anos antes, quando a mãe, que mais tarde descobre-se que se chama Joy Newman, tinha 17 anos, ela foi sequestrada por um homem conhecido apenas como Velho Nick (interpretado por Sean Bridgers), que a trancafiou em um galpão no jardim dos fundos de sua casa, o tal Quarto onde ela e Jack vivem, e cujo único jeito de sair é através de uma porta blindada que só pode ser aberta através de um código, que apenas Velho Nick sabe. Jack é na verdade filho de Joy com Velho Nick, que vem ao Quarto toda noite para estupra-la, o que Jack não vê pois sua mãe o bota para dormir dentro do armário. Para Jack crescer como uma criança tão normal quanto possível dentro do Quarto, Joy lhe disse que o Quarto é o mundo inteiro, que só o que há dentro dele é real. Fora dele, há apenas o espaço, e nada do que aparece na televisão é real.

            Joy, porém, percebe que a situação dela e de Jack atingiu o limite quando Velho Nick lhe conta que está desempregado há seis meses, e não terá mais como sustenta-los como antes. Eles passam a receber menos comida, Velho Nick não compra mais as vitaminas necessárias para compensar a dieta pobre dos dois, e o aquecimento é momentaneamente cortado. Além disso, após um incidente Velho Nick vê Jack pela primeira vez, e Joy passa a temer pela segurança de seu filho. Um plano de fuga torna-se uma necessidade urgente, mas vendo que não há como ela própria fugir, Joy resolve finalmente contar para Jack sobre o mundo fora do Quarto e tentar convencê-lo a colaborar em um plano que envolve ele fugir e pedir por ajuda a alguém.
            Ok, em primeiro lugar: Aprisionamento e abuso sexual, por mais horrível que seja, é um fato real assustadoramente comum: Quase todo ano aparece uma notícia de alguma mulher que consegue escapar após passar anos trancada e sendo estuprada, o caso mais famoso sendo o da austríaca Elisabeth Fritzl, cujo próprio pai a trancou no porão de sua casa e a estuprou por 24 anos, gerando-lhe sete filhos (Emma Donoghue afirmou que inspirou-se nesse caso para escrever o romance). Porém, não é um assunto sobre o qual é tão fácil de fazer um bom filme, ainda mais um fictício. É fácil fazer algo apelativo, que não aborde de forma realista todos os aspectos de um tema tão difícil de engolir. E então, como “O Quarto de Jack” se sai?

                Uma escolha no mínimo interessante (pra não dizer muito boa) feita foi abordar essa história do ponto de vista de Jack. É ele que narra a história, e tudo gira em torno de como ele reage à revelação de que há todo um mundo fora do Quarto, ainda mais considerando que jamais sequer passou pela sua cabeça o simples conceito de “fora”. Pode parecer a princípio que tal escolha foi feita apenas para tornar a história mais fácil de engolir, ainda mais considerando que, assim como Jack, nunca vemos de fato Joy sendo estuprada, apenas ouvimos barulhos.
Mas que belo engano é tal pensamento! O que acontece de fato é que não apenas o filme não fica nem um pouco mais fácil de engolir, como também se torna muito mais angustiante: Jack não consegue aceitar que existe um mundo real fora do Quarto, achando que sua mãe está mentindo, e é incapaz de entender a situação desesperadora que vivem, e que eles simplesmente precisam sair de lá. Para ele, o Quarto é tudo que ele conhece e há para conhecer, e ele está contente com isso. Não há, do seu ponto de vista, qualquer motivo para sua mãe querer tanto sair de lá. Aliás, o que é afinal sair?! Por que ela insiste tanto agora em lhe contar mentiras sobre um mundo real além do Quarto, se ela havia antes lhe explicado que tal coisa só existia na televisão?

            Como se essa versão mais realista da Alegoria da Caverna de Platão (ora, vamos, vocês têm que se lembrar disso das aulas de filosofia!) não fosse angustiante o suficiente, há o fato crítico de que, bem, Jack é uma criança de cinco anos, e age como tal. Logo no começo, ele faz birra com sua mãe porque ela lhe prometeu um bolo de aniversário para comemorar seus cinco anos, porém na hora que ela lhe mostra o bolo este não tem velas, portanto não pode ser um bolo de aniversário. E não é nem preciso imaginar o desespero de Joy ao perceber que essa é sua única esperança de sair do Quarto: Quando ela tenta explicar a Jack que Velho Nick a enganou e trancou no Quarto dizendo que tinha um cachorro doente e pedindo para ela ajudar, Jack nem espera ela terminar e já pergunta qual era o nome do cachorro. Qualquer um perderia a paciência e gritaria “O cachorro não era real!”, e é exatamente isso que Joy faz.
Jack, como qualquer criança de cinco anos, não se importa muito com as coisas que são realmente vitais, e se recusa a colaborar com a fuga apenas porque sua mãe assim diz para ele fazer, chorando e gritando que a odeia quando ela tenta ver se é possível enrola-lo no tapete do Quarto. A angústia só aumenta quando o plano finalmente é posto à prova, e o público fica apenas se perguntando como é que tal pirralho (nada pessoal, todos fomos assim aos cinco anos) vai reagir ao mundo exterior.

            Nada disso seria possível, porém (quantas vezes já escrevi isso nesse blog? Preciso começar a ser mais original), se não fosse pela dupla de atuações de Larson como Joy e, principalmente, Tremblay como Jack. Quanto a Larson, já a elogiei brevemente em “Anjos da Lei”, onde ela conseguiu ir além do simples papel de adolescente bonita e agir de forma quase igual à colega ao lado de quem você sentava no ensino médio. Ter isso em mente apenas me faz ficar ainda mais surpreso com sua atuação em “O Quarto de Jack”, não apenas diametralmente oposta à “Anjos da Lei” (como atuação e como filme), mas também aonde ela tem o duplo desafio de agir tanto como uma mãe que tenta criar o filho de forma normal (desafio reforçado pelo fato de nem a Wikipedia nem o IMDb citarem qualquer coisa de a atriz ter filhos, o que me faz concluir que ela não tem), quanto de agir como uma mulher que passou por uma situação tão desesperadora como a da personagem.
E, adivinha só, ela é bem-sucedida em ambos os desafios, interagindo e falando com Tremblay/Jack da mesma forma como uma mãe interagiria e falaria com seu filho de cinco anos (e, com isso, quero dizer uma mãe de verdade, não uma dessas mães de comercial de margarina, mas sim uma que por vezes perde a paciência com o filho e grita com ele), e ao mesmo tempo tendo perfeita noção de que está em um mesmo espaço de poucos por poucos metros quadrados há sete anos, obrigada a receber e se deixar ser estuprada pelo cara que a trancou lá em primeiro lugar (aliás, um breve elogio a Sean Bridgers, que interpreta um cara desprezível que não vê absolutamente nada de errado no que faz).

            Mas a grande glória vai para Jacob Tremblay, que aos oito anos teve que aparecer em frente às câmeras por 90% do filme. E qualquer um que já assistiu uma peça de teatro de escola sabe que crianças são criaturas difíceis de se extrair uma boa atuação. Não bastasse isso, o papel de Tremblay exigia ele tratar Larson como uma mãe e agir como um menino que nunca viu coisas como folhas, cachorros ou sequer pessoas que não sejam sua mãe e Velho Nick. Isso sem falar em toda a agitação emocional pela qual seu personagem passa, entre estar feliz, triste, com raiva, estupefato e, acima de tudo, muito confuso. É uma quantidade de desafios com os quais não é nem todo ator adulto que seria capaz de lidar, quanto mais uma criança. Tremblay soar minimamente convincente já seria uma vitória, mas eis que ele se mostra uma revelação mirim (seu único outro papel creditado em um longa-metragem foi em “Smurfs 2”, ou seja, ainda dá pra chama-lo de revelação) de mesmo nível que Haley Joel Osment em “O Sexto Sentido”, embora por algum motivo não tenha sido indicado ao Oscar, ao contrário de Larson, que está concorrendo a Melhor Atriz.

            É aqui que os spoilers começam. Se você não assistiu o trailer ou o filme, sugiro pular direto para a avaliação.

            Seria de se imaginar que a vida de Joy e Jack no Quarto e sua fuga de lá ocuparia o filme inteiro. Mas eis que, para a surpresa do público, tudo isso é apenas metade da história. Após Jack conseguir escapar e explicar, em seu próprio jeito confuso, para a polícia onde sua mãe está, eles passam a morar então na casa dos pais de Joy, ou, melhor dizendo, da mãe dela (interpretada por Joan Allen), já que durante os anos que ela esteve desaparecida seus pais se divorciaram e a mãe agora mora com seu novo parceiro Leo (interpretado por Tom McCamus).
 
            E eis o momento em que o filme deixa de ser apenas um filme muito bom e passa a ser um filme genial. O que uma combinação de roteirista/autora e diretor medíocres tornariam apenas uma hora de encheção de linguiça melosa, com a mãe mostrando o mundo ao filho de forma parecida com o episódio “Susana Forte” de “Hora da Aventura” (Nada contra “Hora da Aventura”, tenho até amigos que gostam, mas uma coisa são dez minutos de “Oh, grama!”, outra coisa é uma hora), uma combinação genial como Emma Donoghue e o diretor irlandês Lenny Abrahamson (o mesmo do filme indie “Frank”) tornam um interessante paralelo com a primeira metade, e tão angustiante quanto.
Enquanto na primeira metade era Jack que não conseguia se adaptar a descobrir essa nova realidade e Joy tinha que ser a cabeça pensante capaz de salvar os dois dessa situação desesperadora, na segunda metade os papeis se invertem: É Joy que se revela incapaz de seguir em frente nessa nova etapa de sua vida, mostrando-se irritadiça com tudo e todos e apresentando sinais de depressão, especialmente após uma entrevista que, sem revelar muita coisa, digamos apenas que dá muito errado; e é Jack, que está apenas começando a descobrir o que é possível fazer nesse tal “mundo”, que tem que descobrir uma forma de salvar sua mãe.
Ao mesmo tempo, veem-se também, através dos olhos de Jack, as diferentes reações da mãe de Joy, do pai dela (interpretado por William H. Macy, de todas as pessoas!) e de Leo à volta de Joy e ao filho que ela traz agora consigo após sete anos desaparecida: Enquanto a mãe quer recomeçar a vida da família e reconectar com a filha, o pai tornou-se distante com os anos, o que piora já que ele não consegue dissociar Jack da sombra de seu progenitor; Leo, por sua vez, parece não se importar muito com isso, e é o mais interessado em introduzir o mundo ao menino.
Abordar a introdução de uma criança que cresceu isolada ao mundo e a reintrodução de uma vítima de sequestro e/ou estupro já foram feitos antes em outros filmes; “O Quarto de Jack”, porém, não apenas aborda ambos os temas ao mesmo tempo, sem apelar para o melodrama; não apenas intercala ambos os temas, mostrando mãe e filho crescendo e evoluindo juntos, apesar de suas falhas; como também faz isso através de uma estrutura narrativa que justifica perfeitamente seu tempo de duração que, embora seja de apenas pouco menos que duas horas, poderia, em mãos menos sábias, tornar-se desnecessariamente longo. Nada parece encheção de linguiça. Torna-se necessário dar uma hora para o “Quarto” e uma hora para o “Mundo”, para mostrar de forma realista o significado e as implicações que cada ambiente traz para Joy e Jack, e como ambas as partes, assim como ambos os personagens, se completam em uma grande obra.


Avaliação: Vale muitíssimo a pena. Vejamos hoje à noite o que o Oscar trará a esse filme.

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