Como
alguns de vocês já devem saber, sou um grande fã de animações. Na verdade, fã
não é exatamente a palavra; admirador
seria mais preciso. Seja americana ou japonesa, tradicional ou computadorizada,
a arte de criar um mundo totalmente novo praticamente do nada e contar uma
história a partir disso há anos me fascina. Sem quaisquer das restrições físicas
impostas pelo mundo real, as possibilidades criativas tornam-se praticamente
infinitas. Como se não bastasse, admirar uma animação, por mais comercial que
seja, é admirar uma obra de arte: Nenhum personagem sequer pisca se o animador não achar necessário. É um nível de controle sobre
sua obra que nenhum diretor de filmes live-action
jamais seria capaz de alcançar.
Eu
amo animações. Amo tanto que é uma
das poucas coisas às quais me coloquei o desafio de acompanhar o cenário
nacional, por menor (em quase todos os sentidos) que seja. Assisti séries
animadas que sequer imaginava que existiam (alguém aí já ouviu falar de “Kiara
e os Luminitos”?). Não importa se seja ruim ou boa, se vale a pena ou não
(embora, muitas vezes, não), eu assisto. Assisto porque tenho uma necessidade
de assistir, de ver o que se faz por aqui, em terras tupiniquins.
Infelizmente,
até o momento o cenário que vi foi bastante triste. Por muitos anos a animação
foi algo extremamente subestimado no Brasil, e assim animadores que queiram trabalhar
por aqui têm que lidar com uma constante falta de tudo: Orçamento, equipes experientes,
equipamento, produtores interessados, publicidade, espaço em salas de cinema e
programações de TV... O resultado são animações que, independente da
criatividade de seus animadores, acabam tendo uma qualidade inferior às
animações estrangeiras, resultando em desinteresse e subestimação das animações
no Brasil, gerando um ciclo vicioso de desinteresse-falta de
tudo-desinteresse...
Mas...
Talvez esse ano a animação brasileira tenha recebido o pequeno milagre que
precisava. Uma animação nacional que conseguiu um reconhecimento maior que
todas as outras; mais até: Um dos maiores reconhecimentos que uma animação, de
qualquer país que seja, pode conseguir.
Obviamente,
como vocês leram pelo título, estou falando de “O Menino e o Mundo”.

Sendo
sincero, eu já queria assistir esse filme antes mesmo de ele ser indicado ao Oscar
de Melhor Animação. Infelizmente, só consegui assisti-lo agora, então todo
mundo vai achar que estou sendo apenas mais um modinha que só reconhece a
existência de um bom filme depois que ele fica famoso e blá-blá-blá... Não ligo.
Assisti o filme, e quero falar sobre ele. Isso é tudo o que importa.
Quanto
ao enredo: O filme conta a história de um menino (não me diga!). Algumas
sinopses colocam o nome dele como sendo Cuca, mas até onde entendi esse nome não
é especificado no filme (ou talvez seja, mas falo disso daqui a pouco). Aliás,
os créditos finais o colocam apenas como “Menino”, então é assim que irei chamá-lo.
O
menino vive feliz com seus pais, em uma típica zona rural brasileira. Isso é,
até que um dia ele vê seu pai pegando o trem para a cidade grande, partindo em
busca de emprego. Percebendo o quanto a vida fica infeliz sem ele, o menino
resolve partir também para a cidade grande para trazer seu pai de volta. É aí
que sua aventura começa. Aliás, o título do filme só aparece depois que o trem
desaparece junto com o pai, como se o diretor (Alê Abreu) estivesse dizendo “Pronto,
aqui é que a jornada começa!”.
Nessa
jornada, o menino acaba descobrindo um mundo totalmente novo para ele, um mundo
de plantações de algodão e de fábricas de tecidos, de favelas com suas
escadarias quase infinitas e de cidades flutuantes onde os mais ricos vivem
isolados, de foliões que manifestam seu espírito revolucionário através da
música e de policiais e militares que brutalmente reprimem tais manifestações –
curiosamente, também através da música.
Em sua busca, o menino
conhece e é ajudado por outros personagens, como um carroceiro de algodão que,
sem outra alternativa, tenta manter-se em seu trabalho exaustivo apesar de já
ser velho; e um jovem que trabalha também até a exaustão em uma fábrica têxtil,
mas procura mesmo assim manter seu espírito sonhador, tocando música e
costurando mandalas.

Pronto.
Eis o enredo. Falemos agora do resto.
Em
primeiro lugar, lembram-se do que eu falei na minha crítica de “A Ratinha
Valente” que filmes, principalmente animações, devem ser capazes de contar uma
história independente dos diálogos? Bem, “O Menino e o Mundo” leva isso a outro
nível: Além de quase não ter diálogos, os poucos diálogos que tem são propositalmente
incompreensíveis, sendo ditos em português ao contrário (o que me faz pensar
que passar esse filme ao contrário deve ser uma experiência quase tão
reveladora quanto ouvir o CD da Xuxa ao contrário, se é que me entendem). Aliás,
o único momento em que se fala algo compreensível é em uma música do Emicida
que toca durante os créditos finais. Isso por si só não é algo necessariamente
novo. Caramba, “Shaun o Carneiro”, um dos outros indicados ao Oscar esse ano,
não possui qualquer fala, seja invertida ou não! Ainda assim, o fato de os
diálogos estarem invertidos adiciona certo toque ao filme que desperta a
curiosidade no público: Sabe-se que algo está sendo dito, e que esse algo pode
muito bem conter algum segredo para a melhor compreensão do filme, mas, no
frigir dos ovos, percebe-se que esse algo não importa, pois ainda assim é
possível entender o que está acontecendo e qual é a mensagem que “O Menino e o
Mundo” quer passar. É como se Alê Abreu estivesse dizendo “Quer se dar o
trabalho de decifrar os diálogos? Tudo bem. Mas ao final, eles não são tão
importantes assim”.
Sobra,
então, para contar a história e passar a mensagem, uma experiência audiovisual “pura”,
com imagens e sons, nada mais, ambos com igual importância.
Primeiro
as imagens. Como deve ter dado para perceber, o filme utiliza-se quase o temo
todo de lápis de cor, giz de cera e colagens. Não é necessário pensar muito
para se perceber qual foi a intenção com isso: retratar o mundo do menino não
necessariamente como ele é, mas sim como este o vê e o representa. E se você
não percebeu isso enquanto assistia o filme, não se preocupe: Emicida irá
repetir “Aos olhos de uma criança” 18313499 vezes em sua música nos créditos
finais. Mas apenas a técnica não basta: O filme é recheado de metáforas visuais
que para uma criança, parecem óbvias, mas para adultos nem tanto: Tanques se
parecem com elefantes mecânicos, guindastes são dinossauros, barcos parecem
patos, a lista é imensa. Quase toda máquina apresentada no filme possui algum
tipo de rosto.
Mas,
também, o filme não deixa de ter sua dose de toques adultos. Oh meu deus, por
onde começo?
Primeira
coisa que se repara: O vasto (e inteligente) uso de espaços em branco. Como não
sei muito sobre o processo de produção do filme (não que eu não tenha feito
minha dose de pesquisa), não sei dizer se isso surgiu devido a necessidades
financeiras (“O Menino e o Mundo” foi feito com um orçamento baixíssimo, se
comparado com outras animações de outros países) ou se o baixo orçamento foi
resultante das escolhas direcionais de Alê Abreu, mas independente de quem
surgiu primeiro, o ovo ou a galinha, ele soube como utiliza-los, enfatizando os elementos que no momento são
importantes. Assim, se o menino ouve uma música que lhe é querida, tudo o mais
desaparece, sobrando apenas ele e a origem da música. Quando seu pai vai embora,
aparece apenas ele, a plataforma e o trem. Todo o mais inexiste, pois são as
únicas coisas que importam para o menino. Em um dado momento, ele vê um desfile
de foliões, e só depois que este some no horizonte vê-se (nós e o menino) que
ele está no meio de uma estrada.
Além
disso, há os simbolismos presentes em todo o filme. Toda vez que um personagem canta
ou toca uma música, bolhas coloridas começam a flutuar no ar, como os sonhos
que a música oferece. Quando muitas dessas bolhas se reúnem, um pássaro aparece,
simbolizando a liberdade da música. Ou então é apenas uma referência ao pássaro
no logo da Filmes de Papel, a companhia de animação do Alê Abreu, vocês
decidem. Os policiais e militares também podem formar bolhas e pássaros com sua
música. E nisso temos o que pessoalmente é uma das minhas cenas favoritas do
filme, em que uma repressão policial a uma manifestação é mostrada não
explicitamente, mas sim através de um confronto entre os dois pássaros, o
colorido dos foliões/manifestantes e o negro dos policiais.
E
assim entramos no som. Em “O Menino e o Mundo”, as músicas e efeitos sonoros
não servem apenas para estabelecer o humor ou o ambiente das cenas: Eles de
fato contam a história, indicando as
relações entre os personagens e apresentando suas funções. E embora a trilha
sonora inteira do filme utilize praticamente a mesma melodia (o que, irei
admitir, pode às vezes ser um pouco cansativo, mas nenhum filme é perfeito), as
diferentes variações dela mostram o papel de cada cenário: Mais pesada ou mais
leve, em instrumentos de madeira ou metal, é possível saber se algo é positivo
ou negativo apenas pela música. Como se não bastasse, a música parece também
afetar os próprios personagens, que ficam felizes ou tristes dependendo de como
ela é tocada: Música alegre gera alegria, que gera mais música alegre; e quando
não há mais alegria, não há mais música, quando resta apenas o silêncio, o
resultado é a raiva e o ódio.
Mas
de pouco adianta um filme ter inteligência técnica se seu conteúdo é raso. E aí
temos algo interessante: Embora o enredo claramente seja o de menos em “O
Menino e o Mundo” e acabe portanto sendo meio deixado de lado (lá pela metade
do filme, nem me lembrava que havia uma busca pelo pai), o filme é todo sobre
os temas sócio-político-ambientais que aborda. Exploração trabalhista,
desumanização resultante do industrialismo, pobreza urbana e rural, futilidade
da mídia, consumismo, violência policial, desemprego resultante do uso antiético
de tecnologia, devastação e poluição ambiental... “O Menino e o Mundo” aborda
tudo isso e mais um pouco, mas sem (quase) jamais parecer didático. O filme
continua sendo um filme, não um tratado sociológico, e assim consegue ser
impactante sem ser chato (a prova disso para mim é que na sessão em que assisti
nenhuma das crianças na sala dormiu ou chorou de tédio). E, apesar de toda a ambientação
surrealista, “O Menino e o Mundo” deixa bem claro que os assuntos que aborda
não são mera fantasia, são reais, a ponto de no clímax o filme “literalmente” pegar
fogo, revelando por trás dele cenas reais de desmatamento e poluição. Como se
Alê Abreu estivesse dizendo “Está vendo? Isso aqui não é fantasia, é a
realidade! Esses problemas estão acontecendo agora mesmo!”. É o tipo de mistura
entre lirismo mágico e realismo social que parece que apenas a América Latina é
capaz de produzir. Aliás, sei que parece pretensioso o que irei dizer, mas
direi de qualquer forma: Apesar de ser uma animação, esse filme é uma das
melhores representações do Brasil que já vi. Entre as cores, os sons, a
natureza, os problemas sociais, a valorização do olhar infantil e (falsamente) ingênuo
e do lirismo das pequenas coisas da vida... Tudo isso são coisas que dizem “Brasil”
no imaginário das pessoas (ou, pelo menos, no meu). Aliás, serei ainda mais pretensioso: Se algum dia um
estrangeiro me pedir por um filme para entender o que é o Brasil... O primeiro
que me passaria pela cabeça é “O Menino e o Mundo”. Mesmo as falas sendo
invertidas e incompreensíveis.
Mais
empolgado, porém, do que estou com o filme, é do que no futuro ele representará
para a animação brasileira: Pode ser que ele seja apenas uma pequena pérola em
um mar de pedrinhas, uma animação em particular que se destacou das outras e
nada mais. Mas serei otimista, e acreditarei que o reconhecimento que a
indicação ao Oscar trouxe a esse filme fará as pessoas finalmente perceberem
que sim, existem animações brasileiras, e algumas delas são muito boas e valem
a pena serem vistas. Então, quem sabe, passe-se a investir mais em animações
nacionais, e estas saiam finalmente da obscuridade, e teremos enfim, daqui a
alguns anos, animações de qualidade, com orçamentos aceitáveis e que façam o
merecido sucesso entre o público... Mas vamos deixar que o tempo diga o que
acontecerá.
Com
quem estou, porém, preocupado, é justamente o criador de “O Menino e o Mundo”,
Alê Abreu. Tendo dirigido apenas um único longa-metragem obscuro antes deste,
ele de repente possui toda a atenção da mídia, todos o considerando um gênio e
com altas expectativas quanto a ele. Pode ser que ele saiba lidar com tudo isso
e suas próximas animações sejam boas. Mas infelizmente, é igualmente possível
que ele deixe toda essa atenção e admiração subirem à sua cabeça, tornando-se
arrogante demais para o bem de sua carreira. Eu leio as entrevistas e
reportagens sobre ele, e logo me vem à cabeça M. Night Shyamalan, que após
dirigir “O Sexto Sentido” começou a acreditar que de fato era um visionário, um
gênio, e que suas ideias estavam acima de qualquer crítica e tudo que saísse de
sua cabeça era genial... E é só assistir “A Dama da Água”, “O Fim dos Tempos”, “O
Último Mestre do Ar” ou “Depois da Terra” para perceber que não é bem assim
(não é bem assim meeeeeeeeeeesmo). Mas, quem sabe Alê Abreu não se torne tão
arrogante quanto Shyamalan. De novo, vamos deixar que o tempo diga o que
acontecerá.
Avaliação: Vale muito a pena
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