segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Menino e o Mundo

            Como alguns de vocês já devem saber, sou um grande fã de animações. Na verdade, fã não é exatamente a palavra; admirador seria mais preciso. Seja americana ou japonesa, tradicional ou computadorizada, a arte de criar um mundo totalmente novo praticamente do nada e contar uma história a partir disso há anos me fascina. Sem quaisquer das restrições físicas impostas pelo mundo real, as possibilidades criativas tornam-se praticamente infinitas. Como se não bastasse, admirar uma animação, por mais comercial que seja, é admirar uma obra de arte: Nenhum personagem sequer pisca se o animador não achar necessário. É um nível de controle sobre sua obra que nenhum diretor de filmes live-action jamais seria capaz de alcançar.
            Eu amo animações. Amo tanto que é uma das poucas coisas às quais me coloquei o desafio de acompanhar o cenário nacional, por menor (em quase todos os sentidos) que seja. Assisti séries animadas que sequer imaginava que existiam (alguém aí já ouviu falar de “Kiara e os Luminitos”?). Não importa se seja ruim ou boa, se vale a pena ou não (embora, muitas vezes, não), eu assisto. Assisto porque tenho uma necessidade de assistir, de ver o que se faz por aqui, em terras tupiniquins.
            Infelizmente, até o momento o cenário que vi foi bastante triste. Por muitos anos a animação foi algo extremamente subestimado no Brasil, e assim animadores que queiram trabalhar por aqui têm que lidar com uma constante falta de tudo: Orçamento, equipes experientes, equipamento, produtores interessados, publicidade, espaço em salas de cinema e programações de TV... O resultado são animações que, independente da criatividade de seus animadores, acabam tendo uma qualidade inferior às animações estrangeiras, resultando em desinteresse e subestimação das animações no Brasil, gerando um ciclo vicioso de desinteresse-falta de tudo-desinteresse...
            Mas... Talvez esse ano a animação brasileira tenha recebido o pequeno milagre que precisava. Uma animação nacional que conseguiu um reconhecimento maior que todas as outras; mais até: Um dos maiores reconhecimentos que uma animação, de qualquer país que seja, pode conseguir.
            Obviamente, como vocês leram pelo título, estou falando de “O Menino e o Mundo”.

            Sendo sincero, eu já queria assistir esse filme antes mesmo de ele ser indicado ao Oscar de Melhor Animação. Infelizmente, só consegui assisti-lo agora, então todo mundo vai achar que estou sendo apenas mais um modinha que só reconhece a existência de um bom filme depois que ele fica famoso e blá-blá-blá... Não ligo. Assisti o filme, e quero falar sobre ele. Isso é tudo o que importa.
            Quanto ao enredo: O filme conta a história de um menino (não me diga!). Algumas sinopses colocam o nome dele como sendo Cuca, mas até onde entendi esse nome não é especificado no filme (ou talvez seja, mas falo disso daqui a pouco). Aliás, os créditos finais o colocam apenas como “Menino”, então é assim que irei chamá-lo.

            O menino vive feliz com seus pais, em uma típica zona rural brasileira. Isso é, até que um dia ele vê seu pai pegando o trem para a cidade grande, partindo em busca de emprego. Percebendo o quanto a vida fica infeliz sem ele, o menino resolve partir também para a cidade grande para trazer seu pai de volta. É aí que sua aventura começa. Aliás, o título do filme só aparece depois que o trem desaparece junto com o pai, como se o diretor (Alê Abreu) estivesse dizendo “Pronto, aqui é que a jornada começa!”.

            Nessa jornada, o menino acaba descobrindo um mundo totalmente novo para ele, um mundo de plantações de algodão e de fábricas de tecidos, de favelas com suas escadarias quase infinitas e de cidades flutuantes onde os mais ricos vivem isolados, de foliões que manifestam seu espírito revolucionário através da música e de policiais e militares que brutalmente reprimem tais manifestações – curiosamente, também através da música.
Em sua busca, o menino conhece e é ajudado por outros personagens, como um carroceiro de algodão que, sem outra alternativa, tenta manter-se em seu trabalho exaustivo apesar de já ser velho; e um jovem que trabalha também até a exaustão em uma fábrica têxtil, mas procura mesmo assim manter seu espírito sonhador, tocando música e costurando mandalas.

                Pronto. Eis o enredo. Falemos agora do resto.
            Em primeiro lugar, lembram-se do que eu falei na minha crítica de “A Ratinha Valente” que filmes, principalmente animações, devem ser capazes de contar uma história independente dos diálogos? Bem, “O Menino e o Mundo” leva isso a outro nível: Além de quase não ter diálogos, os poucos diálogos que tem são propositalmente incompreensíveis, sendo ditos em português ao contrário (o que me faz pensar que passar esse filme ao contrário deve ser uma experiência quase tão reveladora quanto ouvir o CD da Xuxa ao contrário, se é que me entendem). Aliás, o único momento em que se fala algo compreensível é em uma música do Emicida que toca durante os créditos finais. Isso por si só não é algo necessariamente novo. Caramba, “Shaun o Carneiro”, um dos outros indicados ao Oscar esse ano, não possui qualquer fala, seja invertida ou não! Ainda assim, o fato de os diálogos estarem invertidos adiciona certo toque ao filme que desperta a curiosidade no público: Sabe-se que algo está sendo dito, e que esse algo pode muito bem conter algum segredo para a melhor compreensão do filme, mas, no frigir dos ovos, percebe-se que esse algo não importa, pois ainda assim é possível entender o que está acontecendo e qual é a mensagem que “O Menino e o Mundo” quer passar. É como se Alê Abreu estivesse dizendo “Quer se dar o trabalho de decifrar os diálogos? Tudo bem. Mas ao final, eles não são tão importantes assim”.

            Sobra, então, para contar a história e passar a mensagem, uma experiência audiovisual “pura”, com imagens e sons, nada mais, ambos com igual importância.
            Primeiro as imagens. Como deve ter dado para perceber, o filme utiliza-se quase o temo todo de lápis de cor, giz de cera e colagens. Não é necessário pensar muito para se perceber qual foi a intenção com isso: retratar o mundo do menino não necessariamente como ele é, mas sim como este o vê e o representa. E se você não percebeu isso enquanto assistia o filme, não se preocupe: Emicida irá repetir “Aos olhos de uma criança” 18313499 vezes em sua música nos créditos finais. Mas apenas a técnica não basta: O filme é recheado de metáforas visuais que para uma criança, parecem óbvias, mas para adultos nem tanto: Tanques se parecem com elefantes mecânicos, guindastes são dinossauros, barcos parecem patos, a lista é imensa. Quase toda máquina apresentada no filme possui algum tipo de rosto.

                Mas, também, o filme não deixa de ter sua dose de toques adultos. Oh meu deus, por onde começo?
            Primeira coisa que se repara: O vasto (e inteligente) uso de espaços em branco. Como não sei muito sobre o processo de produção do filme (não que eu não tenha feito minha dose de pesquisa), não sei dizer se isso surgiu devido a necessidades financeiras (“O Menino e o Mundo” foi feito com um orçamento baixíssimo, se comparado com outras animações de outros países) ou se o baixo orçamento foi resultante das escolhas direcionais de Alê Abreu, mas independente de quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha, ele soube como utiliza-los, enfatizando os elementos que no momento são importantes. Assim, se o menino ouve uma música que lhe é querida, tudo o mais desaparece, sobrando apenas ele e a origem da música. Quando seu pai vai embora, aparece apenas ele, a plataforma e o trem. Todo o mais inexiste, pois são as únicas coisas que importam para o menino. Em um dado momento, ele vê um desfile de foliões, e só depois que este some no horizonte vê-se (nós e o menino) que ele está no meio de uma estrada.

            Além disso, há os simbolismos presentes em todo o filme. Toda vez que um personagem canta ou toca uma música, bolhas coloridas começam a flutuar no ar, como os sonhos que a música oferece. Quando muitas dessas bolhas se reúnem, um pássaro aparece, simbolizando a liberdade da música. Ou então é apenas uma referência ao pássaro no logo da Filmes de Papel, a companhia de animação do Alê Abreu, vocês decidem. Os policiais e militares também podem formar bolhas e pássaros com sua música. E nisso temos o que pessoalmente é uma das minhas cenas favoritas do filme, em que uma repressão policial a uma manifestação é mostrada não explicitamente, mas sim através de um confronto entre os dois pássaros, o colorido dos foliões/manifestantes e o negro dos policiais.

            E assim entramos no som. Em “O Menino e o Mundo”, as músicas e efeitos sonoros não servem apenas para estabelecer o humor ou o ambiente das cenas: Eles de fato contam a história, indicando as relações entre os personagens e apresentando suas funções. E embora a trilha sonora inteira do filme utilize praticamente a mesma melodia (o que, irei admitir, pode às vezes ser um pouco cansativo, mas nenhum filme é perfeito), as diferentes variações dela mostram o papel de cada cenário: Mais pesada ou mais leve, em instrumentos de madeira ou metal, é possível saber se algo é positivo ou negativo apenas pela música. Como se não bastasse, a música parece também afetar os próprios personagens, que ficam felizes ou tristes dependendo de como ela é tocada: Música alegre gera alegria, que gera mais música alegre; e quando não há mais alegria, não há mais música, quando resta apenas o silêncio, o resultado é a raiva e o ódio.

            Mas de pouco adianta um filme ter inteligência técnica se seu conteúdo é raso. E aí temos algo interessante: Embora o enredo claramente seja o de menos em “O Menino e o Mundo” e acabe portanto sendo meio deixado de lado (lá pela metade do filme, nem me lembrava que havia uma busca pelo pai), o filme é todo sobre os temas sócio-político-ambientais que aborda. Exploração trabalhista, desumanização resultante do industrialismo, pobreza urbana e rural, futilidade da mídia, consumismo, violência policial, desemprego resultante do uso antiético de tecnologia, devastação e poluição ambiental... “O Menino e o Mundo” aborda tudo isso e mais um pouco, mas sem (quase) jamais parecer didático. O filme continua sendo um filme, não um tratado sociológico, e assim consegue ser impactante sem ser chato (a prova disso para mim é que na sessão em que assisti nenhuma das crianças na sala dormiu ou chorou de tédio). E, apesar de toda a ambientação surrealista, “O Menino e o Mundo” deixa bem claro que os assuntos que aborda não são mera fantasia, são reais, a ponto de no clímax o filme “literalmente” pegar fogo, revelando por trás dele cenas reais de desmatamento e poluição. Como se Alê Abreu estivesse dizendo “Está vendo? Isso aqui não é fantasia, é a realidade! Esses problemas estão acontecendo agora mesmo!”. É o tipo de mistura entre lirismo mágico e realismo social que parece que apenas a América Latina é capaz de produzir. Aliás, sei que parece pretensioso o que irei dizer, mas direi de qualquer forma: Apesar de ser uma animação, esse filme é uma das melhores representações do Brasil que já vi. Entre as cores, os sons, a natureza, os problemas sociais, a valorização do olhar infantil e (falsamente) ingênuo e do lirismo das pequenas coisas da vida... Tudo isso são coisas que dizem “Brasil” no imaginário das pessoas (ou, pelo menos, no meu). Aliás, serei ainda mais pretensioso: Se algum dia um estrangeiro me pedir por um filme para entender o que é o Brasil... O primeiro que me passaria pela cabeça é “O Menino e o Mundo”. Mesmo as falas sendo invertidas e incompreensíveis.

            Mais empolgado, porém, do que estou com o filme, é do que no futuro ele representará para a animação brasileira: Pode ser que ele seja apenas uma pequena pérola em um mar de pedrinhas, uma animação em particular que se destacou das outras e nada mais. Mas serei otimista, e acreditarei que o reconhecimento que a indicação ao Oscar trouxe a esse filme fará as pessoas finalmente perceberem que sim, existem animações brasileiras, e algumas delas são muito boas e valem a pena serem vistas. Então, quem sabe, passe-se a investir mais em animações nacionais, e estas saiam finalmente da obscuridade, e teremos enfim, daqui a alguns anos, animações de qualidade, com orçamentos aceitáveis e que façam o merecido sucesso entre o público... Mas vamos deixar que o tempo diga o que acontecerá.
            Com quem estou, porém, preocupado, é justamente o criador de “O Menino e o Mundo”, Alê Abreu. Tendo dirigido apenas um único longa-metragem obscuro antes deste, ele de repente possui toda a atenção da mídia, todos o considerando um gênio e com altas expectativas quanto a ele. Pode ser que ele saiba lidar com tudo isso e suas próximas animações sejam boas. Mas infelizmente, é igualmente possível que ele deixe toda essa atenção e admiração subirem à sua cabeça, tornando-se arrogante demais para o bem de sua carreira. Eu leio as entrevistas e reportagens sobre ele, e logo me vem à cabeça M. Night Shyamalan, que após dirigir “O Sexto Sentido” começou a acreditar que de fato era um visionário, um gênio, e que suas ideias estavam acima de qualquer crítica e tudo que saísse de sua cabeça era genial... E é só assistir “A Dama da Água”, “O Fim dos Tempos”, “O Último Mestre do Ar” ou “Depois da Terra” para perceber que não é bem assim (não é bem assim meeeeeeeeeeesmo). Mas, quem sabe Alê Abreu não se torne tão arrogante quanto Shyamalan. De novo, vamos deixar que o tempo diga o que acontecerá.



Avaliação: Vale muito a pena

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