Entre
todas as coisas que abalaram a internet esta semana (e olha que a lista é
longa...), uma delas foi a morte do ator Gene Wilder aos 83 anos, vítima de
complicações do Mal de Alzheimer. Em tudo que era lugar, eu via notícias do
tipo “Morre ator que interpretou Willy Wonka”, “Morre Willy Wonka de ‘A
Fantástica Fábrica de Chocolate’”, “Gene Wilder, ator que viveu Willy Wonka,
falece aos 83 anos”.
E
a minha reação a tudo isso foi simplesmente: “Sério?! É só isso que se lembram
dele?! Willy Wonka?! Ninguém menciona que ele foi também o Jovem Frankenstein?!
Ou todos os filmes que além de atuar ele também escreveu e dirigiu?! Ou então seu
papel como Leo Bloom em ‘Primavera Para Hitler’, pelo qual ele ganhou sua única
indicação ao Oscar como ator?!”.
Pera
aí...

É,
acho que se for pra fazer uma homenagem à carreira de Gene Wilder, um bom lugar
para se começar é esta comédia. Afinal, ela foi vários “primeiros” para ele
como ator: Foi seu primeiro papel significativo em um filme (seu único outro
papel nos cinemas até então havia sido como um refém em “Bonnie e Clyde”); o
primeiro filme de sua longa parceria com o diretor Mel Brooks, que renderia
mais três outros filmes (“Banzé no Oeste”, “O Jovem Frankesntein” e “O Irmão
Mais Esperto de Sherlock Holmes”); e, como eu já disse, sua primeira indicação
ao Oscar e única como ator (mais tarde ele, junto com Brooks, seria indicado ao
Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por “Jovem Frankenstein”). E embora ele tenha
aqui um papel coadjuvante, este é de grande importância por ser o verdadeiro
“foco empático” do filme.
O
protagonista em si é Max Bialystock (interpretado por Zero Mostel), um produtor
da Broadway que já foi grande, porém agora está à beira da falência, a ponto de
vestir um cinto de papelão e ter que namorar velhinhas ricas para conseguir
dinheiro para suas peças, pois ninguém mais quer investir nelas. É justamente
quando ele está com uma delas que aparece em seu escritório Gene Wilder na
forma do contador Leo Bloom, para fazer suas contabilidades.

Quando
descobre um pequeno furo nas contas de Bialystock envolvendo o orçamento
superfaturado de uma peça que foi um fiasco, Bloom acaba tendo uma epifania: É possível
um produtor ganhar mais dinheiro com uma peça ruim do que com uma boa. Qual a
lógica disso? Simples: Se o produtor conseguir convencer pessoas a investirem
muito mais dinheiro em uma peça do que é realmente necessário para produzi-la,
mas ela acabar sendo tão ruim que é cancelada logo após a estreia, os
investidores não se darão ao trabalho de ir atrás de suas porcentagens do lucro
dela (afinal, a peça presumidamente terá dado prejuízo). Assim, o produtor ao
final terá um orçamento sobrando com o qual ninguém está interessado, e tudo
que ele precisa então fazer é não declarar nada disso no imposto de renda.
E
se você acha que essa é uma lógica furada e que na vida real algo parecido
jamais seria possível... Apenas leia minha crítica de “A Reconquista” para
perceber o quando essa sátira do show
business está longe de ser implausível.

De qualquer
forma, a epifania de Bloom imediatamente chama a atenção de Bialystock, que
resolve pôr o esquema em prática encontrando uma peça que seja um fracasso
certo; namorando velhinhas até arrecadar US$ 1 milhão a mais do que o
necessário para se produzi-la; não declarando o dinheiro extra no imposto de
renda; e, assim que a peça estrear e, devido à sua ruindade, for cancelada,
fugindo com o dinheiro para o Rio de Janeiro (porque né ¯\_(ツ)_/¯ ). Para isso, ele precisaria da ajuda de Bloom
para que este faça a parte das contabilidades. A princípio, Bloom fica
histérico e hesita em partir para a desonestidade com medo de ir pra prisão,
mas depois que Bialystock o convence do quão vazia é sua vida contando o
dinheiro de pessoas mais ricas que ele e que o dinheiro lhe permitiria ostentar
a vida que ele sempre quis, o tímido contador aceita participar do plano, e os
dois logo formam um tipo estranho de amizade nascido do puro interesse egoísta.
Só
falta, então, começar os preparativos para a produção da pior peça do mundo,
que eles encontram na forma de “Primavera Para Hitler”, uma farsa estrelando
Adolf Hitler e Eva Braun como protagonistas e fazendo uma explícita apologia ao
nazismo, escrita por um ex-soldado alemão (interpretado por Kenneth Mars) que
se mantém fiel a seus ideias a ponto de vestir um capacete militar em plena luz
do dia. Como se isso não bastasse, Bialystock e Bloom conseguem ainda contratar
o pior diretor da Broadway (interpretado por Christopher Hewett), que tem a
insana ideia de transformar a peça em um musical, e para o papel de Hitler
descobrem por acaso L.S.D., um cantor hippie tão estúpido que é capaz de
esquecer-se do próprio nome (interpretado por Dick Shawn).

Uma
coisa tenho que dizer, Mel Brooks com certeza merece reconhecimento por ter
conseguido o feito de propositalmente ter feito tudo em “Primavera Para Hitler”
da pior forma possível: Quando você acha que um musical sobre Hitler é a coisa
de mais mau-gosto que é possível oferecer, Brooks consegue dar um jeito de
piorar a situação, a ponto de, quando o primeiro número musical acaba, você
está tão pasmo quanto o público. Os cenários e figurinos são mal feitos, as
letras são ofensivas, as falas beiram até ao fascínio de tão absurdas que são,
e as atuações... Meu deus, as atuações...
Pera
aí, vocês acham que estou falando da peça?!

Eis
a grande sacada de “Primavera Para Hitler”: Ao final, percebe-se que a
insanidade da peça é apenas um reflexo da inquieta insanidade de seu processo
de produção, e daqueles envolvidos nele. Na verdade, depois de ver tudo o que
vimos durante o processo de produção retratado no filme, a peça em si quase não
chega a nos chocar (quase...): Se o público fica literalmente boquiaberto com
os figurinos, cenários, letras, atuações e o próprio fato de estar assistindo
um musical sobre o nazismo, nós já ficamos tão boquiabertos quanto durante a
primeira hora do filme, não conseguindo acreditar no que vemos: Quando achamos
que temos uma noção de qual seria a pior peça já escrita, eis que o filme nos
traz algo ainda pior; quando achamos que temos uma noção de qual seria o pior
diretor possível, eis que o filme nos traz algo ainda mais “peculiar”, nas
palavras de Bialystock; quando achamos que temos uma noção de qual seria a pior
performance que já apareceu na face da Terra, eis que o filme nos traz L.S.D. e
seus constantes improvisos (que são na maior parte improvisos do próprio Shawn).
O fato de
“Primavera Para Hitler” ser tão ruim fora quanto dentro do palco bem
possivelmente irá afastar alguns, como fez quando foi lançado em 1968 (em sua
estreia, críticos destruíram o filme, que acabou também sendo uma decepção de
bilheteria). E mesmo que não afaste, admito que seja um tanto desconfortável
assistir um filme em que alguém canta “Don’t be stupid, be a smartie/ come and
join the Nazi party!”. E considerando o quão próximas as tragédias do nazismo
ainda eram naquela época, o desconforto devia ser ainda maior. Quero dizer,
imaginem se alguém atualmente fizesse um filme com uma premissa semelhante, mas
ao invés de um musical sobre o nazismo os produtores estivessem tentando fazer
um musical sobre, digamos, o 11 de setembro? Só pensar nisso já soa errado,
não?

Felizmente,
quase quarenta anos permitiram que os cinéfilos atuais vissem além da ofensa e
da ruindade, e percebessem o quanto tudo isso, até mesmo o desconforto, é
proposital de uma forma bastante ousada, pois ao fazer uma comédia lidando com
o nazismo a ideia de Mel Brooks não era desrespeitar ninguém além daqueles dos
quais o musical dentro de seu filme lidava: Os próprios nazistas, que em “Primavera
Para Hitler” têm qualquer seriedade arrancada deles e, assim, são jogados ao
chão, vistos como loucos ridículos que merecem ser ridos. Poucos, mesmo
atualmente, teriam a coragem de fazer algo neste nível, fazendo o público
passar a ver o filme com mais bom-humor e uma mente mais aberta.
Mas
o mérito por “Primavera Para Hitler” não é puramente de Mel Brooks: O choque
cômico não seria possível se os atores não tivessem entrado na brincadeira,
deixando qualquer sutileza de lado e assumido seu lado mais exagerado, a tal
ponto que, mesmo aqueles que entendem bem inglês acharão o filme quase
incompreensível sem legendas: Temos Zero Mostel gritando vigorosamente suas
falas 90% do tempo enquanto esbugalha os olhos em desespero, Christopher Hewett
parecendo quase selvagem de tão excêntrico (quando Bialystock e Bloom vão à
casa do diretor para convencê-lo a entrar na peça, Bialystock dizer a Bloom
“acena o cigarro dele, ele gostou de você” como se o diretor fosse algum animal
arredio), e Dick Shawn fazendo uma “atuação-dentro-da-atuação” que beira ao
indescritível. Se a falta de sutileza das atuações não ajuda, temos ainda
Kenneth Mars imitando um sotaque alemão, Lee Meredith (que interpreta a “secretária”
de Bialystock) imitando um sotaque sueco, e Andreas Voutsinas (que interpreta o
secretário do diretor) reforçando seu sotaque grego.

E
em meio a toda essa insanidade, eis que temos Gene Wilder. Entre todas as
atuações, a dele é a mais comedida (a maior parte do tempo, pelo menos). Não
que ele não seja engraçado; pelo contrário! Quero dizer, olhe a cara dele!

Vá
dizer que essa cara de Harpo Marx sozinha não te faz rir nem que seja
internamente!
Mas
ainda assim, o personagem de Wilder é definitivamente aquele com o qual o
público mais se identifica, de personalidade tímida (embora propenso a ataques
histéricos) e fazendo uma constante cara de “Eu não pertenço a este lugar.
P-por favor não me toque, você está invadindo meu espaço particular” toda vez
que encontra um novo personagem completamente louco. E é assim que ele se torna
o que chamei no começo desta crítica de o “foco empático” de “Primavera Para
Hitler”, personagem de papel curiosamente importante em comédias neste estilo.
Afinal, quando sua comédia se passa em um ambiente caótico, onde nada parece
fazer muito sentido e os personagens parecem fazer o que bem lhes dá na telha,
é bom ter algo em que nos ancorar, algo com que nos identifiquemos para não
nos perdermos em meio ao turbilhão de loucura do filme.

Não que toda
comédia sem este papel seria obrigatoriamente ruim: Os Irmãos Marx, por
exemplo, constantemente faziam comédias sem qualquer foco empático, onde apenas
a anarquia reinava; porém, embora eu goste dos filmes deles, compreendo
perfeitamente quem se sente confuso com tanta aleatoriedade reunida e nem uma
única coisa que faça sentido. Em “Primavera Para Hitler”, porém, é Gene Wilder
que dá essa pequena presença de sentido, como uma Alice que nos guia através de
um País das Maravilhas onde nada segue qualquer lógica (uau, eu não esperava fazer essa comparação);
curiosamente, um papel exatamente contrário ao que ele interpretou mais tarde
em “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, onde ele era o grande foco de
insanidade do filme frente à timidez e/ou histeria dos outros.
Avaliação: Vale a pena.
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