Antes que alguém venha me encher o saco:
NÃO, não falarei aqui de nenhuma controvérsia política envolvendo este filme, e
por dois motivos: 1) Como eu disse em minha crítica de “Stallone Cobra”,
discussão política realmente não é minha área, portanto não pretendo e não
quero me envolver nisso; e 2) Analiso aqui apenas o conteúdo dos filmes, e
embora se possam relacionar as controvérsias com o conteúdo, não é de todo
necessário analisa-las para se entender “Aquarius”, e portanto não arriscarei
gastar minha paciência respondendo quaisquer comentários políticos que alguém
faça (Ha! Como se eu tivesse páginas e páginas de comentários das minhas
postagens...).
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Mas
enfim, de qualquer forma, eis aqui o filme sobre o qual todo mundo está falando. E como resumi-lo? Bem, de certa forma a
canção de Taiguara que toca durante o filme involuntariamente faz esse
trabalho: Quando se pensa bem, “Aquarius” é um filme sobre uma mulher que traz
hoje em seu corpo as marcas de seu tempo e no olhar imagens distorcidas; sobre
cores, viagens e mãos desconhecidas que trazem a lua, a rua às suas mãos
enfraquecidas e vazias, que parecem procurar nuas por alguém pelas luas e ruas
na solidão das noites frias; e sobre homens sem medo que aportam no futuro,
homens de aço que esperam da ciência, enquanto que ela tem medo, acorda e
procura por alguém em seu quarto escuro e inerte como a morte, desesperando-se
e abraçando a ausência, que é o que lhe resta, andando morrendo pela vida.
Apesar
de poética, eis aí uma baita descrição
do filme, tenho que dizer!
A
protagonista de “Aquarius” é Clara (interpretada por Sônia Braga), 65 anos,
jornalista e escritora aposentada (a internet diz que ela era crítica de
música, mas isso fica mais implícito que explícito no filme), viúva e
sobrevivente de um câncer de mama que lhe tirou o seio direito mais de trinta
anos antes. Clara é a única habitante que resta no Edifício Aquarius, um
pequeno edifício antigo de frente para o mar em Recife. Devido a isso, ela a
maior parte do tempo sequer sente necessidade de trancar a porta de seu apartamento,
e sua rotina consiste principalmente de banhos de mar e ouvir sua gigantesca
coleção de LPs (colecionadores com certeza irão babar e ficar com as mãos
tremendo diante da estante dela).
Sua
vida, porém, vai ficando cada vez mais abalada pela presença constante de uma
empreiteira que pretende comprar o Aquarius para “moderniza-lo” (vulgo demoli-lo
e construir um arranha-céus moderno no lugar). Tendo já comprado todos os
outros apartamentos do edifício, só lhes falta o de Clara. Esta, porém, se
mostra firme e teimosa insistindo em não vender seu apartamento de jeito
nenhum, apesar de a empreiteira lhe fazer uma oferta muito acima do mercado.
Mas dinheiro algum no mundo convence Clara a vender o apartamento que lhe
pertence há décadas, e da qual ela tem tantas memórias. O que ela não imagina é
o quão sujo a empreiteira está disposta a jogar para conseguir força-la a
vendê-lo, fazendo festas que “acidentalmente” não a deixam dormir,
“acidentalmente” sujando o edifício, “acidentalmente” invadindo sua
privacidade, e coisas cada vez piores. Mas nada faz Clara desistir, e quanto
mais sujo eles jogam, mais ela fica disposta a revidar.

Ok,
vamos admitir: Essa premissa de “salvar seu lar de tantos anos da companhia
corrupta do mal” não chega a ser nada novo no cinema... Mas de uma forma
curiosa, o fato de estarmos familiarizados com ela a torna até mais
interessante (isso é, claro, quando é bem feita). O primeiro motivo é porque é
uma premissa que não só se permite ser adaptada a quase qualquer país do mundo
e a quase qualquer época desde que o cinema começou, como também exige estar
sintonizada com a realidade que o filme quer retratar; assim, tais filmes nos
permitem, através de uma premissa comum, analisar as diferentes realidades de
cada lugar e de cada tempo: Se o enredo central de “Aquarius” soa semelhante a,
digamos, “Leviatã”, são os detalhes e o desenvolvimento de cada uma das tramas
que nos permitem analisar os dois filmes e, assim, comparar a realidade
brasileira de “Aquarius” à realidade russa de “Leviatã”.
O
segundo motivo pelo qual essa premissa é tão interessante, apesar de familiar,
é que ela geralmente é tão boa quanto seu protagonista; em tais filmes, o
importante não é o desenrolar da trama, mas o estudo de personagem do
protagonista, dissecar sua personalidade e sua vida para nos fazer entender
porque ele não larga de seu osso, o que faz com que ele enfrente empresas
poderosas e políticos corruptos por meras quatro paredes que, a princípio, não
parecem valer todo esse esforço; ao final, acabamos, através desse estudo de
personagem, entendo melhor não apenas sobre o protagonista, mas sobre algum
aspecto importante de nossa condição humana.
E
então, como é que “Aquarius” se sai nisso? Afinal, quem é Clara e por que esse
apartamento é tão importante para ela?
Bem,
de uma forma resumida, Clara é uma mulher que está pouco a pouco desaparecendo.
Na primeira cena do filme, um flashback, vemos que em 1980 Clara era uma mulher
alegre, ativa, de vida social intensa, com um marido que a amava muito e
parentes que, cada um a sua maneira, a apoiavam (ou pelo menos tentavam) em sua
luta contra o câncer. Enfim, acima de tudo, Clara existia, e seu apartamento é testemunha disso (assim como sua tia,
que, no flashback, olha para a mobília e tem memórias um tanto “calorosas” do
lugar).
Atualmente,
porém, Clara é uma mulher em vias de desaparecer: Os vizinhos, que antes
animavam seu apartamento, mudaram-se todos. Uma repórter que a entrevista
ignora um momento em que Clara se abre e insiste em repetir uma pergunta
esdrúxula. Os filhos só a vem visitar quando há algo importante ou algum favor
envolvido. Um deles inclusive se mostra bastante relutante em lhe mostrar uma
foto com seu namorado, apesar de ela aceitar plenamente sua orientação. Seu
sobrinho, o parente com o qual ela convive mais, ignora seus conselhos. Sua
vida amorosa é um fiasco, pois os homens, assim que descobrem de sua cirurgia
de remoção de mama, perdem qualquer desejo por ela. Para piorar, enquanto que
em 1980 vemos um casal de adolescentes parando de se beijar para deixa-la
passar e, apesar de ela falar que eles podem continuar, ficarem parados, como
que em respeito a ela; no presente vemos Clara duas vezes bisbilhotar
pessoas fazendo sexo e estas apenas continuam sem nem notar sua presença!
É
exatamente por isso que ela se mostra tão ferrenhamente apegada a seu
apartamento: Não apenas por causa das memórias, mas porque é uma das únicas
coisas no presente que, em meio a um mundo que a ignora cada vez mais, ainda
lhe permite manter uma identidade, saber que existe; enquanto ela permanecer em
seu apartamento, não desaparecerá totalmente, mas se vende-lo e se mudar para
outro lugar “mais moderno e seguro”, como todos querem que ela faça, perderá
sua identidade e se tornará apenas uma relíquia do passado, como sua coleção de
fotos ou seus LPs. Para ela, mudar para um apartamento “mais moderno” seria
como uma ossada que é removida do túmulo para ficar guardada em uma gaveta
anônima (para quem ainda não assistiu ao filme, quando assistirem essa
comparação fará todo o sentido).
Eis
aí o triste lado da condição humana que “Aquarius” nos mostra: O medo que, no
fundo, muitos de nós sentimos de “morrer em vida”, perder nossos vínculos com o
resto do mundo e com o que nos torna nós mesmos, tornar-se apenas um fantasma
de um tempo melhor que já passou e do qual nada nos resta. Para Clara, porém,
ainda resta uma última coisa que a evita de se transformar em um fantasma: Seu
apartamento. E pode ter certeza que ela o defenderá até a morte, se necessário.

Nisso
temos em “Aquarius”, como em todo bom estudo de personagem, a transformação da
protagonista do início ao fim do filme. Se no começo Clara se mostra discreta,
reservada, parecendo até um pouco encolhida quando atende o dono da empreiteira
e seu neto (que, aliás, é interpretado por Humberto Carrão em uma atuação tão
passiva-agressiva que até Sônia Braga sente a necessidade de enfatizar isso em
uma cena) em sua porta, como uma típica senhorinha acostumada ao auto
isolamento, à medida que estes vão jogando cada vez mais sujo e testando cada
vez mais a paciência de Clara, ela vai endurecendo, falando mais alto,
olhando-os nos olhos e de queixo erguido, deixando a educação de lado e jogando
alguns bons e merecidos palavrões na cara deles.
E
o mérito por tal transformação é totalmente de Sônia Braga. Há quem diz que
essa é a melhor atuação da vida dela, e embora não tenha o conhecimento
necessário para confirmar isso, preciso admitir: Meu, que mulher! Braga é capaz de interpretar tanto o desgaste do
lento desaparecimento de sua personagem quanto a força que a resistência à
empreiteira lhe dá; tanto a fragilidade de seu isolamento quanto o orgulho de,
nas palavras de Rocky Balboa, “ficar frente a frente com alguém dizendo ‘Eu sou’”.
Ok, essa é uma
comparação que eu não esperava fazer,
mas quando se para pra pensar, não deixa de fazer um estranho sentido,
especialmente comparando com o sexto filme. Afinal, tanto “Aquarius” quanto “Rocky
Balboa” possuem um(a) protagonista velho(a) e sozinho(a) que passa os dias
revivendo o passado, tornando-se cada vez mais uma sombra do que era antes, sem
muitas perspectivas para o futuro e não tendo tantas pessoas com quem conversar
de forma mais aberta – até um desafio
surgir e lhe dar novas energias de se impor ao mundo e mostrar que ainda existe.
... Eu devo ter
irritado uma boa quantidade de intelectuais com essa comparação, não? Bom, não
me arrependo de nada!
Mas,
infelizmente, “Aquarius” não é um filme perfeito. E o motivo? Bom, posso
resumi-lo em apenas três dígitos: 142. Por quê? Porque essa é a duração do
filme (em minutos, óbvio)!
E
sinceramente, “Aquarius” não precisava de forma alguma ser tão longo assim.
Algumas cenas parecem se prolongar puramente por se prolongar, como uma em que
Clara e suas amigas conversam por um tempão em uma espécie de “baile da
terceira idade” sobre absolutamente nada
(o único ponto importante da conversa sendo quando uma das amigas recomenda um “profissional”
a Clara). E até suponho que a ideia do diretor Kleber Mendonça Filho (o mesmo
de “O Som ao Redor”) fosse com isso dar uma maior “naturalidade” à cena, e se
essa foi a intenção, ela funcionou: Eu de fato me senti como em todas as vezes
em que sentei junto com um monte de pessoas que não eram minhas amigas e
ficavam conversando entre si, me ignorando e fazendo-me balançar o joelho e
esperar para que qualquer coisa de
interessante acontecesse!!!! (Desculpe, só más lembranças que preciso
soltar) Como se não bastasse, apesar de vários personagens aparecerem ao longo
do filme, é possível contar nos dedos quantos são de fato relevantes para a
trama. Inclusive, há uma cena em que um personagem que Clara conhecia quando
ele era criança aparece apenas para lhe dar um aviso nefasto, dizer uma frase
de efeito, e então nunca mais mostrar a
cara pelo resto do filme! Por que ele está lá?!
Ainda
assim, não fico tão furioso com esses momentos “inúteis” a ponto de dizer que
eles estragam o filme, pois de certa forma dá para entender o que Mendonça
queria com elas, com a maioria seguindo uma espécie de padrão: Algum objeto ou
pessoa é apresentado, e isso leva a uma intensa explosão de sentimentos que
Clara investiu naquilo ou naquela pessoa. Tais objetos ou pessoas não são
especiais pela importância que eles têm, mas pelas memórias a eles ligados,
pelas histórias pessoais que eles trazem consigo – Clara chega a dizer isso de
forma um tanto explícita em uma cena envolvendo um LP de John Lennon. Nisso,
essas cenas conseguem passar, com uma sutileza rara de se ver nos filmes
nacionais “intelectuais” (que por vezes, honestamente, chegam a parecer mais
com aulas de sociologia), a mensagem central do filme: O que nos falta, acima
de tudo, é esse senso de memória, de herança, de que as coisas e lugares valem
mais do que apenas seu valor material. Mais do que tudo, esse senso não é
importante por mera nostalgia – é ele que nos torna mais fortes, é ele que nos
faz importar com o que é nosso e lutar por isso, protestar quando alguém quer
tirar aquilo de nós, assim como Clara luta por seu apartamento. Se essa
mensagem possui alguma conotação política? Claro que sim! Mas essa
interpretação deixarei a vocês.
...
...
...
Mas
sério, 142 minutos?! Eu entendo o que você quer dizer, Mendonça, mas precisa
dizer tanto?!
...
Pensando bem, quem sou eu pra falar isso?
Avaliação: Vale a pena.
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