terça-feira, 30 de agosto de 2016

A Hora do Pesadelo

            É curioso como que, mais do que em qualquer outro gênero, as franquias de terror tomam rumos completamente diferentes do inicialmente proposto pelo filme original. Pegue, por exemplo, a franquia “Sexta-Feira 13”: Que imagens vêm à cabeça de quem nunca assistiu aos filmes ao ouvir dela? Obviamente elas envolverão um zumbi assassino vestindo uma máscara de hóquei sobre o rosto e de facão na mão, com um ódio particular por adolescentes. É uma imagem tão forte em nosso imaginário coletivo que ficamos surpresos ao assistir pela primeira vez o “Sexta-Feira 13” original e ver que ele é completamente diferente desta imagem.
            O mesmo acontece com o que é considerada a grande rival da franquia “Sexta-Feira 13”, “A Hora do Pesadelo”: De tão acostumados com o que ficou estabelecido como sendo conceitos essenciais a ela, ficamos até um pouco confusos com o quão vagamente estes mesmos são abordados no primeiro filme.
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            Claro que a discrepância aqui não é tão grande quanto a de seu rival. Afinal, os elementos considerados essenciais à franquia ainda estão todos lá: Um grupo de adolescentes se vê assombrado em seus pesadelos por um homem desfigurado chamado Freddy Krueger. Sempre que este os ataca, porém, as marcas e ferimentos permanecem no mundo real ao acordarem, e não demora muito para eles perceberem que a mesma lógica se aplica caso Freddy os mate em seus sonhos.
            Tal premissa, porém, não é feita da forma como o espectador atual esperaria.
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            Em uma era em que todo filme com uma premissa minimamente absurda tem que expor sua lógica nos mínimos detalhes com medo de deixar para trás algum furo no enredo que deixe o público confuso, “A Hora do Pesadelo” nos dá um soco na cara e nos retorna aos velhos tempos (mais conhecidos como anos 80) em que filmes jamais expunham sua própria lógica, ao invés disso nos jogando direto em uma cova dos leões sem de fato qualquer pé nem cabeça, nenhuma explicação sendo realmente dada, e a pouca que aparece vindo lentamente ao longo do filme; uma época em que quarenta minutos de história de origem de um super-herói podiam ser resumidos apenas em “Faço isso porque ninguém mais faz” (sim, estou falando de você, Nolan).
            “A Hora do Pesadelo” não é diferente: Demora quase metade do filme para sequer descobrirmos o nome da figura misteriosa que persegue os protagonistas, e mesmo assim há um hiato antes de nos ser revelado quem ele é. Quaisquer “porquês” ou “comos”, porém, são deixados completamente de lado: Jamais ficamos sabendo como é que Freddy Krueger consegue entrar nos sonhos de suas vítimas, ou porque ele só passou a ataca-las a partir do momento em que o filme começa, e não antes. Nosso trabalho é apenas aceitar que é assim e ponto, qualquer explicação sendo deixada a cargo do próprio espectador... Ou então das continuações.
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            Então como é que um filme com um aspecto narrativo que pesa tão contra ele (afinal, vamos admitir que ser jogado na cova dos leões pode até ser interessante, mas está longe de ser uma experiência agradável) consegue não apenas se salvar, mas ainda ser considerado um dos melhores e mais importantes filmes de terror de todos os tempos? Bom, pelo simples motivo de que sua premissa permite isso. Mais do que permite: Incentiva isso! Afinal, não vamos esquecer que a premissa de “A Hora do Pesadelo” gira em torno de sonhos. O que são sonhos que não momentos em que somos justamente jogados em mundos cuja lógica está muito além de nossa explicação racional? Não é isso que os tem tornado tão fascinantes à humanidade por milênios?
            E é assim, meus caros, que “A Hora do Pesadelo” deixa de ser um filme vago e até meio confuso e torna-se inteligente, talvez até genial.
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            Em primeiro lugar, há a ambientação do filme, sobre a qual muito já se falou. É preciso ao falar disso se lembrar que “A Hora do Pesadelo” foi lançado em 1984, época em que, após o fim da onda hippie nos anos 60, as pessoas voltavam enfim a questionar o “sonho americano” (preparem-se para os trocadilhos, pois há muitos outros por vir). Sendo assim, os protagonistas iniciam o filme como adolescentes tão comuns como adolescentes podem ser, sem nenhum grande problema, vivendo em um subúrbio aparentemente perfeito de uma cidade aparentemente perfeita em Ohio (embora tenha sido filmado inteiramente em Los Angeles, mas que seja). A vida deles é o ideal com o qual a classe média americana tanto sonhava, uma bolha onde a maior preocupação é ter um passe para andar pelos corredores da escola.
            Porém, assim que os pesadelos começam, os adolescentes enfim passam a escavar mais a fundo e descobrir, com o perdão da palavra, as m&rd@s que sustentam a bolha em que vivem, especialmente alguns eventos sombrios nos quais seus pais se envolveram para protege-los e que esconderam justamente para manter essa bolha de aparente perfeição, e dos quais Freddy Krueger retorna nos pesadelos literalmente como um fantasma do passado. Falando em pesadelos, ao serem assombrados por Krueger os adolescentes passam a também perceber os próprios pesadelos de suas vidas familiares dos quais estavam até então completamente alienados, especialmente na forma de seus pais, que vão se revelando como alcoólatras, negligentes e/ou necessitando de remédios psicoativos. Em outras palavras, é Freddy Krueger que faz com que eles saiam de seu mundo de sonhos e acordem para a realidade.
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            Eis aí também outro ponto interessante do primeiro filme de “A Hora do Pesadelo”: A forma como ele retrata Freddy Krueger. Claro que, fisicamente, ele é igual a como o reconhecemos no imaginário popular, com seu chapéu, sua blusa de listras vermelhas e verdes, seu rosto que mais parece uma pizza de pepperoni e, claro, não vamos esquecer de sua temível luva com lâminas nos dedos. Tão famosa quanto sua aparência ficou também sua personalidade sarcástica e espirituosa que parece nunca envelhecer.
            Então eis a surpresa quando se percebe que pouco disso aparece em “A Hora do Pesadelo”. Claro que eventualmente vemos seu rosto queimado, produto da genial maquiagem de David Miller, porém a maior parte do tempo Krueger permanece nas sombras, aterrorizando suas vítimas com sua silhueta e o angustiante arranhar de suas lâminas. Como se isso não bastasse, vemos pouco de sua personalidade espirituosa, tendo no máximo duas ou três falas de maior efeito, a maior parte do tempo apenas rindo maliciosamente – embora eu tenha que admitir que o ator Robert Englund seja realmente muito bom nisso: Sempre que ele ri enquanto corre atrás de suas vítimas, sabemos que elas não têm para onde escapar – e que ele também sabe disso. Como se não bastasse, sua contagem de mortes ao longo do filme é consideravelmente baixa se comparada com a de outros vilões de filmes slasher, e só duas delas possuem o teor gráfico digno do gênero. Toda essa pouca presença faz com que Freddy Krueger seja até menos que um personagem em “A Hora do Pesadelo”, exercendo mais o papel de um bicho-papão.
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            E de uma forma muito curiosa... É exatamente isso que faz com que ele funcione dentro do contexto do filme. Afinal, não vamos esquecer que Freddy ataca suas vítimas dentro de seus sonhos. E tirando algumas exceções, sonhos raramente são coisas muito bem definidas ou desenvolvidas. Sendo assim, é perfeitamente condizente o vilão de “A Hora do Pesadelo” aparecer pouco e falar menos ainda, e não ter muita explicação dada para suas aparições ou seus poderes. Afinal, tente se lembrar dos pesadelos eu você já teve: Você sente que há algo te observando, mas ao olhar para trás não vê nada; você ouve um arranhar de metal ou uma risada, mas não consegue identificar de onde vem; talvez você até veja uma criatura ameaçadora vindo te atacar, mas é difícil descrevê-la muito bem, geralmente sendo apenas algo como uma sombra ou até algo que muda um pouco de forma; e, o mais importante de tudo, os monstros que te perseguem em seus pesadelos não são muito complexos, não precisam de motivos para te atacar ou de explicações, eles apenas aparecem em seus sonhos, te atacam e isso é tudo.
            É exatamente assim que Freddy Krueger age no primeiro “A Hora do Pesadelo”: Não como um personagem complexo, com uma presença marcante, mas devidamente como a criatura que te assombra quando você dorme.
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            “Ah, mas isso não é um sonho de verdade, é um filme. E filmes devem ter nem que seja um mínimo de lógica ou explicação!”. Eu até concordaria com isso... Se não fosse por uma pequena pergunta: Onde é que termina o sonho e começa o filme em “A Hora do Pesadelo”?
            Eis aí a grande genialidade deste filme. Se você achou o final de “A Origem” ambíguo quanto a o que é sonho e o que é realidade, é porque Christopher Nolan tinha muito o que aprender com “A Hora do Pesadelo” (nota: Me refiro ao filme e não ao pessoalmente ao diretor Wes Craven porque a maior ambiguidade foi uma exigência do estúdio... O que por uma vez foi algo positivo!). Quando o filme começa, os limites entre o sonho e a realidade parecem bem definidos: Quando eles estão acordados, tudo está bem, e quando eles deitam e fecham os olhos eles começam a sonhar e Freddy Krueger ataca. Porém à medida que o filme progride, essa linha entre sonho e realidade vai ficando cada vez mais tênue: Dois personagens estão conversando entre si, no que parece bastante real, mas de repente nos é revelado que isso não passava de um sonho. Algum tempo mais tarde, no que você jura que é a realidade, Freddy Krueger surge do nada! Pera aí, mas quando que a personagem dormiu?! Onde é que começa o sonho?! E onde é que ele termina?!
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São perguntas que vão te assombrando cada vez mais, até que você finalmente chega ao ponto de questionar a própria realidade aparentemente perfeita em que os personagens vivem, e se o filme inteiro não passa de um grande sonho! Dentro desse contexto, não é até melhor que o filme seja vago e propositalmente confuso? Sei que não é algo que necessariamente agradará a todo mundo, e a alguns talvez até espante mais que o rosto queimado de Freddy Krueger, porém ainda assim o fato de tal questionamento ser deixado em aberto, e caber a cada espectador decidir o que é real em “A Hora do Pesadelo” e o que não é, dá a ele uma inteligência que poucos filmes slasher possuem... Algo que suas continuações arruinariam, mas essa, meus caros, é outra história.


Avaliação: Vale a pena.

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