terça-feira, 16 de agosto de 2016

X-Men: O Filme

            A essa altura do campeonato, é quase impossível falar de “X-Men: O Filme” sem contar uma breve história dos filmes de super-heróis. Isso porque o filme foi um verdadeiro marco ao mostrar ao mundo até onde a qualidade destes filmes podia chegar.

            Não que não tivessem sido lançados filmes de super-heróis bons antes: Eu gosto dos primeiros filmes do Superman, e os filmes do Batman dirigidos por Tim Burton provaram que é possível unir o gênero a certo senso artístico. Porém, após o lançamento de “Batman – O Retorno” em 1992, parece que algo se perdeu nos anos seguintes, no que alguns chegam a considerar como a “década perdida dos filmes de super-heróis”. O motivo pelo qual os dois exemplos que dei acima são até hoje elogiados é porque tratam seus materiais-fontes com respeito, se aprofundando na subestimada complexidade de seus personagens. Assim, um homem que voa com a cueca vermelha pra fora da calça não parece uma figura ridícula, e a ideia de um bilionário que sai de noite combatendo o crime fantasiado de morcego soa problemática e sombria.
Na década de 90, porém, por algum motivo os grandes estúdios já não viam mais motivo em tratar os filmes de super-heróis com respeito e seriedade; “afinal, são meros filmes de super-heróis!”, eles pensavam. Assim, os filmes do gênero foram cada vez mais se aproximando da paródia, tendo enredos cada vez mais genéricos e personagens cada vez mais superficiais, tudo culminando no desastre que foi “Batman & Robin”, um filme que parecia fazer de tudo para ofender os fãs de seu personagem principal ao tirar dele qualquer seriedade e no lugar tirando sarro dele, tratando como algo ridículo a figura sombria que viu os próprios pais sendo assassinados quando criança e desde então luta sozinho uma guerra aparentemente sem esperanças para limpar uma cidade corrupta e decadente do crime. Mesmo os poucos filmes que tentaram tratar super-heróis de forma mais adulta e com mais estilo artístico, como “Blade”, fracassaram devido a enredos excessivamente vagos e previsíveis, e um estilo que embora para a época soasse “moderninho”, atualmente se percebe o quão datado e brega que é.
Então, tudo mudou quando a Fox atacou (para aqueles que entenderam a referência: Não te conheço, mas já te amo!). E em 2000 “X-Men” foi lançado.

            “X-Men” foi um fenômeno quando lançado (e ainda é) precisamente por enfim fazer certo tudo o que os filmes de super-herói dos oito anos anteriores fizeram errado. Claro, o filme ainda possui sua dose de pequenos detalhes problemáticos, como uma ou outra atuação abaixo do padrão (vulgo Halle Berry como Tempestade e sua tentativa fracassada de imitar um sotaque africano), e os efeitos computadorizados definitivamente não envelheceram bem, porém de resto mantém-se um filme sério, inteligente, com respeito ao seu material-fonte, e que mesmo 16 anos depois continua tão atual, temática e estilisticamente, que parece ter sido lançado ontem.
            A bem da verdade, quando se analisa os quadrinhos no qual é baseado, “X-Men” é um filme que se não fosse para ser feito de forma séria, nem valeria a pena fazê-lo. A começar, os X-Men possuem uma premissa bastante complexa se comparada à de outras histórias em quadrinhos, ambientada em uma versão alternativa do nosso mundo em que alguns humanos, devido a mutações genéticas, desenvolvem os mais variados superpoderes. Ao mesmo tempo em que os humanos comuns sentem um enorme preconceito contra estes mutantes, querendo que sejam excluídos da sociedade, os próprios mutantes, como reação a isso, dividem-se em duas facções: Os X-Men, liderados por Professor X (no filme interpretado por Patrick Stewart), que querem educar os humanos a não temerem os poderes dos mutantes e permitir que ambos coexistam pacificamente; e a Irmandade de Mutantes, liderada por Magneto (Ian McKellen), que acreditam que humanos e mutantes jamais serão capazes de coexistir, e que só uma guerra contra a humanidade permitiria aos mutantes prosperarem. É uma premissa que a princípio é bastante difícil de ser adaptada para um filme, que além de introduzir uma infinidade de personagens teria que mostrar as complicadas e instáveis relações de aliança e inimizidade entre os X-Men, a Irmandade de Mutantes e os humanos, ora se protegendo uns aos outros, ora lutando uns contra os outros, ora ambos ao mesmo tempo.

            O que parece apenas uma premissa interessante, porém, ganha um total novo significado ao se perceber que não está tão longe da nossa realidade. Afinal, pensem bem: Os quadrinhos dos X-Men surgiram pela primeira vez em plenos anos 60, época em que ainda reinava nos EUA a política de segregação racial, e o movimento pelos direitos civis da população afro-americana estava dividido entre aqueles que acreditavam no avanço de seus direitos através de protestos e atos de resistência não-violentos (representados por Martin Luther King Jr.) e aqueles que não acreditavam que uma integração dos negros à sociedade branca seria possível e queriam portanto uma total e efetiva separação entre ambas as raças (representados por Malcolm X). Acho que a metáfora ficou bastante óbvia, não?
            Ao adaptar os quadrinhos para filme, porém, o diretor Bryan Singer resolveu atualizar a premissa tornando-a mais “atemporal”, estendendo sua metáfora para todo tipo de preconceito e perseguição a um grupo específico da sociedade: A primeiríssima cena mostra justamente um jovem Magneto sendo afastado de seus pais em um campo de concentração nazista, o que o leva a revelar seu poder de controlar metal pela primeira vez. E embora esta história de origem esteja também presente nos quadrinhos, o fato de ela ser a primeira cena do filme mostra que Singer queria tornar o tema de consequências do preconceito o mais universal possível.

Como se não bastasse isso, Singer, que é abertamente bissexual, propositalmente resolveu tomar certas liberdades com os quadrinhos originais para representar de forma alegórica a homofobia no filme, principalmente ao escolher a X-Men Vampira (Anna Paquin) como uma das protagonistas. Nos quadrinhos, Vampira possui o poder de absorver a força vital de qualquer um que toque. No filme, isso faz com que, após seu primeiro beijo (que leva seu namorado ao coma), ela fuja de casa achando que é uma aberração e com medo do que possa acontecer, proibindo-se de tocar outras pessoas e assim isolando-se até mesmo dos outros mutantes, que também evitam aproximar-se dela. Preciso dizer mais?! O filme até propositalmente ignora que os outros poderes de Vampira incluem voo e superforça apenas para facilitar a alegoria. Tais alegorias, porém, não chegam a ser explicitadas, permitindo que elas se incorporem naturalmente ao enredo. Essa maturidade ajuda em muito para que o público menos acostumado não considere ridículas coisas como, por exemplo, o fato de os personagens terem codinomes como Tempestade, Ciclope e Dente de Sabre. Aliás, uma cena entre Vampira e Wolverine (Hugh Jackman) até trata essa questão dos codinomes com surpreendente seriedade ao mostrar o quanto os mutantes se importam com eles, sentindo-se de certa forma protegidos ao utiliza-los.
Mas não adianta um filme ter boas intenções se ao final sua trama e personagens continuam genéricos. Eis então outro ponto onde “X-Men” rompe com os filmes de super-heróis anteriores e mostra sua inteligência, ao não ter mocinhos e bandidos tão bem definidos, e fazer disso um ponto importante da trama, cujo ponto de partida é um projeto de lei americano que obrigaria mutantes a se registrarem publicamente e revelarem suas habilidades, o que permitiria, entre outras coisas, que crianças mutantes fossem banidas das escolas.
Magneto, como um sobrevivente do Holocausto, sabe na pele (literalmente) o que acontece quando um governo decide classificar e registrar à força uma parte de sua população, e por isso resolve tomar medidas para que o projeto não seja aprovado. Professor X e os X-Men também querem tomar medidas para isso, porém apenas acontece que as medidas de Magneto são um pouco mais... Radicais. Por outro lado, o criador do projeto de lei, o senador Robert Kelly (Bruce Davison), que é basicamente um McCarthy moderno, ao final percebe o quanto que seu preconceito é fundado em pura e simples ignorância (aliás, crédito para o roteirista David Hayter, que deu a Kelly algumas falas que qualquer um que já sofreu algum tipo de preconceito com certeza já ouviu em algum momento de sua vida). E mesmo entre os próprios X-Men, que idealizam uma convivência pacífica entre mutantes e humanos, há aqueles que não se sentem totalmente à vontade em proteger justamente aqueles que mais os desprezam. Tempestade, em uma cena, até admite que sente medo dos humanos, o que a faz por vezes odiá-los.
Mas e quanto aos aspectos mais, digamos, “cinematográficos” do filme? Bom, não seria possível falar de “X-Men” sem citar seu elenco surpreendentemente engajado, que incluía desde veteranos como Patrick Stewart (que já tinha experiência em representar um líder calmo e bondoso em “Jornada nas Estrelas: A Nova Geração”) e Ian McKellen (cujas origens no teatro shakespeareano realmente o ajudam a interpretar um vilão “humano”, porém ao mesmo tempo imponente e maior que a vida, sempre de coluna reta exigindo respeito), até atores praticamente desconhecidos como James Marsden (que interpreta o X-Men Ciclope) e, como não poderíamos esquecer, Hugh Jackman como Wolverine. Não há qualquer dúvida de que é este ator australiano, que até então nunca havia pisado em Hollywood e foi uma escolha de última hora, que rouba a cena ao longo do filme, encarnando o papel do homem-criatura que é Wolverine, ao mesmo tempo animalesco e humano, grosseiro e bondoso, e acima de tudo confuso devido à sua falta de memória.

            Além disso, mesmo que os efeitos computadorizados do filme já estejam ultrapassados, o fato de Singer equilibra-los com efeitos práticos e maquiagem evita que o olho se canse deles. Caso tenha assistido o filme: Sim, Mística foi feita usando “apenas” nove horas de maquiagem, e Wolverine exigiu mais de 700 pares de garras ao longo das filmagens.
Por fim, não dá pra falar de um filme de super-heróis sem comentar sua ação. E embora esta não seja tão espetacular em “X-Men” quanto foi se tornando nos filmes seguintes da franquia, é interessante notar como que elas ajudam no desenvolvimento dos personagens. Não apenas muitas das sequências de ação, especialmente o clímax, exigem que os heróis trabalhem em equipe para vencer, como também mesmo quando o trabalho em equipe é deixado de lado percebe-se que ninguém é inútil no grupo: Ciclope e Jean Grey podem não ser páreos contra um determinado vilão, mas Tempestade pode; esta pode estar incapacitada de usar seus poderes devido às circunstâncias, mas as mesmas circunstâncias não impedem Wolverine de lutar; e se este não consegue derrotar alguém, Ciclope consegue. São sequências bem pensadas assim que evitam que o filme pareça algo como “Wolverine e sua turma”, e ao invés disso termos de fato uma verdadeira equipe onde todos acabam sendo necessários.

                É bem possível que, se “X-Men” não tivesse trazido de volta a maturidade aos filmes de super-heróis, jamais teríamos filmes como a trilogia do Cavaleiro das Trevas, nem sequer estaríamos no frenesi pelo gênero em que estamos atualmente, com pelo menos três ou quatro filmes de super-heróis sendo lançados todo ano, algo nunca antes visto. Talvez nãos seja o melhor filme de super-heróis já feito, mas sem dúvida alguma é um dos mais importantes.


Avaliação: Vale a pena

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