É
curioso como que, mais do que em qualquer outro gênero, as franquias de terror
tomam rumos completamente diferentes do inicialmente proposto pelo filme
original. Pegue, por exemplo, a franquia “Sexta-Feira 13”: Que imagens vêm à
cabeça de quem nunca assistiu aos filmes ao ouvir dela? Obviamente elas
envolverão um zumbi assassino vestindo uma máscara de hóquei sobre o rosto e de
facão na mão, com um ódio particular por adolescentes. É uma imagem tão forte
em nosso imaginário coletivo que ficamos surpresos ao assistir pela primeira
vez o “Sexta-Feira 13” original e ver que ele é completamente diferente desta imagem.
O
mesmo acontece com o que é considerada a grande rival da franquia “Sexta-Feira
13”, “A Hora do Pesadelo”: De tão acostumados com o que ficou estabelecido como
sendo conceitos essenciais a ela, ficamos até um pouco confusos com o quão
vagamente estes mesmos são abordados no primeiro filme.
Claro
que a discrepância aqui não é tão grande quanto a de seu rival. Afinal, os
elementos considerados essenciais à franquia ainda estão todos lá: Um grupo de
adolescentes se vê assombrado em seus pesadelos por um homem desfigurado
chamado Freddy Krueger. Sempre que este os ataca, porém, as marcas e ferimentos
permanecem no mundo real ao acordarem, e não demora muito para eles perceberem
que a mesma lógica se aplica caso Freddy os mate em seus sonhos.
Tal
premissa, porém, não é feita da forma como o espectador atual esperaria.
Em
uma era em que todo filme com uma premissa minimamente absurda tem que expor
sua lógica nos mínimos detalhes com medo de deixar para trás algum furo no
enredo que deixe o público confuso, “A Hora do Pesadelo” nos dá um soco na cara
e nos retorna aos velhos tempos (mais conhecidos como anos 80) em que filmes
jamais expunham sua própria lógica, ao invés disso nos jogando direto em uma
cova dos leões sem de fato qualquer pé nem cabeça, nenhuma explicação sendo
realmente dada, e a pouca que aparece vindo lentamente ao longo do filme; uma
época em que quarenta minutos de história de origem de um super-herói podiam
ser resumidos apenas em “Faço isso porque ninguém mais faz” (sim, estou falando
de você, Nolan).
“A
Hora do Pesadelo” não é diferente: Demora quase metade do filme para sequer
descobrirmos o nome da figura misteriosa que persegue os protagonistas, e mesmo
assim há um hiato antes de nos ser revelado quem ele é. Quaisquer “porquês” ou
“comos”, porém, são deixados completamente de lado: Jamais ficamos sabendo como
é que Freddy Krueger consegue entrar nos sonhos de suas vítimas, ou porque ele
só passou a ataca-las a partir do momento em que o filme começa, e não antes.
Nosso trabalho é apenas aceitar que é assim e ponto, qualquer explicação sendo
deixada a cargo do próprio espectador... Ou então das continuações.
Então
como é que um filme com um aspecto narrativo que pesa tão contra ele (afinal, vamos admitir que ser jogado na cova dos leões
pode até ser interessante, mas está longe de ser uma experiência agradável)
consegue não apenas se salvar, mas ainda ser considerado um dos melhores e mais
importantes filmes de terror de todos os tempos? Bom, pelo simples motivo de
que sua premissa permite isso. Mais do que permite: Incentiva isso! Afinal, não vamos esquecer que a premissa de “A
Hora do Pesadelo” gira em torno de sonhos. O que são sonhos que não momentos em
que somos justamente jogados em mundos cuja lógica está muito além de nossa
explicação racional? Não é isso que os tem tornado tão fascinantes à humanidade
por milênios?
E
é assim, meus caros, que “A Hora do Pesadelo” deixa de ser um filme vago e até
meio confuso e torna-se inteligente, talvez até genial.
Em
primeiro lugar, há a ambientação do filme, sobre a qual muito já se falou. É
preciso ao falar disso se lembrar que “A Hora do Pesadelo” foi lançado em 1984,
época em que, após o fim da onda hippie nos anos 60, as pessoas voltavam enfim
a questionar o “sonho americano” (preparem-se para os trocadilhos, pois há
muitos outros por vir). Sendo assim, os protagonistas iniciam o filme como
adolescentes tão comuns como adolescentes podem ser, sem nenhum grande
problema, vivendo em um subúrbio aparentemente perfeito de uma cidade
aparentemente perfeita em Ohio (embora tenha sido filmado inteiramente em Los
Angeles, mas que seja). A vida deles é o ideal com o qual a classe média
americana tanto sonhava, uma bolha onde a maior preocupação é ter um passe para
andar pelos corredores da escola.
Porém,
assim que os pesadelos começam, os adolescentes enfim passam a escavar mais a
fundo e descobrir, com o perdão da palavra, as m&rd@s que sustentam a bolha
em que vivem, especialmente alguns eventos sombrios nos quais seus pais se
envolveram para protege-los e que esconderam justamente para manter essa bolha
de aparente perfeição, e dos quais Freddy Krueger retorna nos pesadelos literalmente
como um fantasma do passado. Falando em pesadelos, ao serem assombrados por
Krueger os adolescentes passam a também perceber os próprios pesadelos de suas
vidas familiares dos quais estavam até então completamente alienados,
especialmente na forma de seus pais, que vão se revelando como alcoólatras,
negligentes e/ou necessitando de remédios psicoativos. Em outras palavras, é
Freddy Krueger que faz com que eles saiam de seu mundo de sonhos e acordem para
a realidade.
Eis
aí também outro ponto interessante do primeiro filme de “A Hora do Pesadelo”: A
forma como ele retrata Freddy Krueger. Claro que, fisicamente, ele é igual a
como o reconhecemos no imaginário popular, com seu chapéu, sua blusa de listras
vermelhas e verdes, seu rosto que mais parece uma pizza de pepperoni e, claro,
não vamos esquecer de sua temível luva com lâminas nos dedos. Tão famosa quanto
sua aparência ficou também sua personalidade sarcástica e espirituosa que
parece nunca envelhecer.
Então
eis a surpresa quando se percebe que pouco disso aparece em “A Hora do
Pesadelo”. Claro que eventualmente vemos seu rosto queimado, produto da genial
maquiagem de David Miller, porém a maior parte do tempo Krueger permanece nas
sombras, aterrorizando suas vítimas com sua silhueta e o angustiante arranhar
de suas lâminas. Como se isso não bastasse, vemos pouco de sua personalidade
espirituosa, tendo no máximo duas ou três falas de maior efeito, a maior parte
do tempo apenas rindo maliciosamente – embora eu tenha que admitir que o ator
Robert Englund seja realmente muito bom nisso: Sempre que ele ri enquanto corre
atrás de suas vítimas, sabemos que elas não têm para onde escapar – e que ele
também sabe disso. Como se não bastasse, sua contagem de mortes ao longo do
filme é consideravelmente baixa se comparada com a de outros vilões de filmes slasher, e só duas delas possuem o teor
gráfico digno do gênero. Toda essa pouca presença faz com que Freddy Krueger
seja até menos que um personagem em “A Hora do Pesadelo”, exercendo mais o
papel de um bicho-papão.
E
de uma forma muito curiosa... É exatamente isso que faz com que ele funcione
dentro do contexto do filme. Afinal, não vamos esquecer que Freddy ataca suas
vítimas dentro de seus sonhos. E tirando algumas exceções, sonhos raramente são
coisas muito bem definidas ou desenvolvidas. Sendo assim, é perfeitamente
condizente o vilão de “A Hora do Pesadelo” aparecer pouco e falar menos ainda,
e não ter muita explicação dada para suas aparições ou seus poderes. Afinal,
tente se lembrar dos pesadelos eu você já teve: Você sente que há algo te
observando, mas ao olhar para trás não vê nada; você ouve um arranhar de metal
ou uma risada, mas não consegue identificar de onde vem; talvez você até veja
uma criatura ameaçadora vindo te atacar, mas é difícil descrevê-la muito bem,
geralmente sendo apenas algo como uma sombra ou até algo que muda um pouco de
forma; e, o mais importante de tudo, os monstros que te perseguem em seus
pesadelos não são muito complexos, não precisam de motivos para te atacar ou de
explicações, eles apenas aparecem em seus sonhos, te atacam e isso é tudo.
É
exatamente assim que Freddy Krueger age no primeiro “A Hora do Pesadelo”: Não
como um personagem complexo, com uma presença marcante, mas devidamente como a
criatura que te assombra quando você dorme.
“Ah,
mas isso não é um sonho de verdade, é um filme. E filmes devem ter nem que seja
um mínimo de lógica ou explicação!”. Eu até concordaria com isso... Se não
fosse por uma pequena pergunta: Onde é que termina o sonho e começa o filme em “A
Hora do Pesadelo”?
Eis
aí a grande genialidade deste filme. Se você achou o final de “A Origem”
ambíguo quanto a o que é sonho e o que é realidade, é porque Christopher Nolan
tinha muito o que aprender com “A Hora do Pesadelo” (nota: Me refiro ao filme e
não ao pessoalmente ao diretor Wes Craven porque a maior ambiguidade foi uma
exigência do estúdio... O que por uma vez
foi algo positivo!). Quando o filme começa, os limites entre o sonho e a
realidade parecem bem definidos: Quando eles estão acordados, tudo está bem, e
quando eles deitam e fecham os olhos eles começam a sonhar e Freddy Krueger
ataca. Porém à medida que o filme progride, essa linha entre sonho e realidade
vai ficando cada vez mais tênue: Dois personagens estão conversando entre si,
no que parece bastante real, mas de repente nos é revelado que isso não passava
de um sonho. Algum tempo mais tarde, no que você jura que é a realidade, Freddy
Krueger surge do nada! Pera aí, mas quando que a personagem dormiu?! Onde é que
começa o sonho?! E onde é que ele termina?!
São perguntas que vão
te assombrando cada vez mais, até que você finalmente chega ao ponto de
questionar a própria realidade aparentemente perfeita em que os personagens
vivem, e se o filme inteiro não passa
de um grande sonho! Dentro desse contexto, não é até melhor que o filme seja vago e propositalmente confuso? Sei que não
é algo que necessariamente agradará a todo mundo, e a alguns talvez até espante
mais que o rosto queimado de Freddy Krueger, porém ainda assim o fato de tal
questionamento ser deixado em aberto, e caber a cada espectador decidir o que é
real em “A Hora do Pesadelo” e o que não é, dá a ele uma inteligência que
poucos filmes slasher possuem... Algo
que suas continuações arruinariam, mas essa, meus caros, é outra história.
Avaliação: Vale a pena.