Eu
juro que é coincidência eu estar criticando um filme de Pedro Almodóvar
justamente quando há um novo dele nos cinemas! Podem acreditar em mim ou não,
mas este filme já estava na minha programação de críticas há alguns meses!
Ah,
Pedro Almodóvar... A mera citação do nome deste diretor espanhol já invoca um
forte fluxo de memórias em quem assistiu seus filmes. Para alguns, são memórias
sensuais, coloridas, ao mesmo tempo engraçadas e trágicas; enquanto que para
outros são memórias de horror e estranheza, principalmente pela forma como
Almodóvar trata temas polêmicos e extremamente chocantes com a mais absoluta
indiferença. Para cada um que se impressionou pela forma como “Tudo Sobre Minha
Mãe” esbanja mais cores que um quadro de Picasso, há alguém que saiu em asco no
meio da sessão enquanto assistia “A Pele que Habito”. De uma forma ou de outra,
Almodóvar é um diretor que está sempre disposto a maravilhar e a chocar seus
espectadores, e mesmo em seus filmes considerados mais fracos exibe total
controle sobre sua obra, com tramas onde cada pequeno detalhe ou diálogo possui
sua importância para a conclusão final.
Falemos,
assim, de “Má Educação”.
Lançado
em 2004, “Má Educação” é um exemplo tão extremo de uma trama “almodovariana”
que chega a ser difícil sequer saber por onde começar sua sinopse. Isso porque
o enredo faz tantas reviravoltas e lida com temas tão pesados que o menor dos
passos em falso que eu der aqui já pode estragar o final. Como se não bastasse
não saber por onde começar, é também difícil definir onde parar: Embora tenha
apenas 105 minutos de duração, o filme possui tantos detalhes de extrema
importância que ao final a impressão que se tem é de que pelo menos umas cinco
horas se passaram!
Mas,
criei este blog justamente com a intenção de me desafiar como crítico, então
tentarei fazer aqui o que bons críticos de verdade deveriam fazer: Não estragar
a experiência de assistir o filme e ao invés disso trazer novas abordagens que
façam o público ver a obra de uma forma diferente. Vejamos então o quanto serei
capaz de fracassar...

O
filme começa nos introduzindo a Enrique Goded (interpretado por Fele Martínez),
um cineasta em ascensão que, no momento, está sofrendo de um bloqueio criativo,
e em busca de inspiração passa o dia recortando notícias de tabloides. Eis que,
porém, bate à porta de seu escritório um homem (interpretado por Gael García
Bernal. Aliás, um adendo para elogiar a atuação camaleônica dele. Quando ao
final do filme você percebe todas as cenas em que ele esteve presente e a
complexidade de seu papel, não há como não se impressionar) querendo falar com
ele. A princípio o homem é dispensado, mas Enrique em seguida quase lhe implora
para entrar quando este diz ser Ignacio, ex-colega e primeiro amor de Enrique do
tempo em que ambos estudavam em um internato católico.
Ignacio
diz que atualmente é ator (atendendo pelo nome artístico de Ángel), e que
escreveu uma história que gostaria que Enrique lesse e adaptasse para filme. A
história é dividida em duas partes: Uma “verídica”, narrando a relação entre
Enrique e Ignacio quando pré-adolescentes e a interferência de Manolo
(interpretado por Daniel Giménez Cacho), padre e professor de literatura do
internato, pedófilo que se sente atraído por Ignacio; e uma “fictícia”, com
Ignacio, já adulto e vivendo como a travesti Zahara, reencontrando por acaso
Enrique e depois retornando ao internato para chantagear padre Manolo,
ameaçando revelar seu abuso se este não lhe der dinheiro para uma cirurgia de
mudança de sexo.
Eeeeee
acho que paro por aqui. Desculpe, mas é que a partir daí a história se resume a
uma enorme reviravolta atrás da outra.
Uma
característica que se mantém nos bons filmes de Almodóvar é que quase sempre há
algo (e, geralmente, mais de um único “algo”) que não é o que parece. É por
isso que ele continua sendo um diretor tão admirado entre os fãs de cinema
cult, com cada filme exigindo a máxima atenção do público e reservando uma
surpresa que põe por água abaixo as expectativas e previsões de quem o assiste:
Dois personagens que parecem possuir uma determinada relação entre si, de
repente é revelado que a relação entre eles é completamente diferente, geralmente
mais sombria; um breve comentário que um personagem faz e que poderia ser facilmente
descartado por um espectador menos atencioso de repente se revela uma dica
essencial para se entender um drama pessoal que o personagem quer manter em
segredo.
O
mesmo acontece, não raramente, com o gênero de seus filmes. Muitas vezes eles
parecem pertencer a certo gênero, mas uma análise um pouco mais atenciosa (ou
nem tanto, já que Almodóvar adora dar pequenas marteladas de brincadeira aqui e
ali) revela que o filme assistido na verdade possui muito mais em comum com
outro gênero que a princípio não teria nada a ver com o estilo do filme. “A
Pele que Habito”, por exemplo, a princípio parece ser um “simples” drama com
certos toques sombrios, mas à medida que a trama se revela ele se mostra um
digno conto de terror gótico moderno. O mesmo acontece em “Má Educação”: Parece
um drama com alguns toques de comédia, mas ao assisti-lo com mais atenção e
alguma noção de história do cinema, percebe-se que ele está muito mais próximo
do que se imagina de um filme noir.
Se
você já assistiu o filme, talvez tenha notado essa semelhança por conta
própria, e nesse caso nada do que direi aqui será novidade. Mas, só e apenas
para satisfazer meu ego, partirei do princípio de que você está agora se
perguntando “Sério? Um filme noir?
Aqueles filmes de detetive em preto-e-branco cheios de sombras? O que c*****o
que um filme super colorido e sem nenhum detetive do Almodóvar teria a ver com
um filme noir?”. Neste caso, minha
resposta é: Mais do que você imagina! Vejamos algumas características no cinema
noir e analisemos como elas se
encaixam em “Má Educação”.
Em
primeiro lugar, o cinema noir possui
alguns arquétipos de personagens muito bem estabelecidos: O protagonista que
procura a verdade (geralmente um detetive); o personagem que, independente se é
com razão ou não, é perseguido ao longo do filme; e, claro, não vamos esquecer
da femme fatale, a mulher que se
utiliza de sua sensualidade e habilidade em mentir para conseguir o que quer.
Em “Má Educação”, não é
preciso ir muito longe para se perceber quem é que procura a verdade: Enrique,
embora não seja um detetive, assim que percebe que algumas coisas não batem começa
a fazer investigações por conta própria, por mais longe que ele tenha que ir.
Literalmente: Em um dado momento do filme, ele viaja metade da Espanha até um
vilarejo na Galícia apenas para confirmar algo.
Por outro lado, Padre
Manolo definitivamente ocupa o lugar daquele que é perseguido. Não que ele seja
inocente, longe disso; até queremos
que ele seja perseguido. Porém o lugar ocupado por este arquétipo no cinema noir é o daquele que o destino não
perdoa pelos crimes que cometeu no passado, numa demonstração de fatalismo
existencialista extremamente presente no gênero. E é exatamente isso que
acontece com Manolo, jamais perdoado pelo que fez com Ignacio (embora,
honestamente, o que ele fez seja de fato imperdoável).
Quanto
à Femme fatale... Almodóvar faz uma
curiosa desconstrução deste arquétipo, considerando que, ao contrário da
maioria de seus filmes, “Má Educação” não possui nenhuma personagem feminina
realmente importante (pelo menos, nenhuma personagem feminina cisgênero). Mas
isso não impede de haver um personagem específico muito esperto e ótimo
mentiroso, que tem tamanha noção de sua própria sensualidade que é capaz de
usa-la como uma arma para fazer os outros de gato e sapato e conseguir o que
quer, dominando o jogo entre os protagonistas e passando por cima dos outros
(literalmente, em um dado momento que não vou dizer qual é, mas que envolve
água). Não vou dizer quem é, embora vocês provavelmente já tenham uma ideia.
Mas o interessante em “Má Educação” não é tanto descobrir quem é a femme fatale,
mas sim como este arquétipo é
realizado ao longo do filme. Acreditem em mim, não é da maneira como
inicialmente parece ser.
Falando
assim, parece que os mocinhos e bandidos em “Má Educação” são muito bem
definidos. Pois bem... Não. Pois, como nos melhores filmes noir, todos os personagens são moralmente ambíguos. Tão ambíguos
que, ao melhor estilo dos filmes de Almodóvar, ao final, quando as verdadeiras
relações entre os personagens são reveladas, o espectador fica embasbacado
pensando “Gente, mas todo mundo neste filme é completamente louco!”.
Uma
coincidência de arquétipos, porém, não é o suficiente para classificar “Má
Educação” como um filme noir (ou,
pelo menos, neo-noir). Afinal, filmes
noir são facilmente reconhecíveis
devido ao fato de terem um visual bastante específico e único ao gênero. De
fato, no quesito visual “Má Educação” não traz de imediato a palavra “noir” à mente de quem o assiste: A
iluminação é completamente diferente da padrão do gênero, sem sombras, luzes
frias e contornos bem demarcados. Pelo contrário: Tudo em “Má Educação” é muito
bem iluminado e cheio de luzes e cores quentes.
A
semelhança visual, porém, encontra-se na fotografia. O noir foi o gênero que introduziu ao cinema americano as posições de
câmera peculiares e não-naturais antes usadas no expressionismo alemão (o que
não é à toa, considerando que boa parte dos diretores noir eram justamente alemães fugindo do nazismo, mas isso é outra
história). E nisso “Má Educação” não esconde sua influência, o exemplo máximo
sendo uma tomada em “contra-plongée” (para quem não fala cinemês, é quando a
câmera, próxima do chão, aponta para cima para mostrar o personagem) que faz um
personagem específico parecer um gigante divino, mostrando todo o poder que ele
possui sobre outro sem que este o saiba. E, mesmo que não utilize tanto as sombras, há uma cena em que
elas são muito bem utilizadas, quando o esquema da femme fatale é revelado, fazendo-a de repente parecer pequena e
indefesa (e, como se não bastasse, a posição da câmera desta vez transfere o
poder para outro personagem).
Seria
possível escrever uma tese inteira citando todos os elementos que fazem de “Má
Educação” um filme neo-noir: Os
flashbacks, as narrações dos personagens mostrando seus pontos de vista sobre
as situações, a presença em certo ponto do “clichê” do crime perfeito, o
fatalismo e a força inevitável do passado, a corrupção, a lista vai
loooooonge... Mas se nada disso os convencer... Então não se preocupem, porque
Almodóvar deixará sua influência tão clara quanto a parte branca de um ovo
quando dois personagens vão a um cinema onde está passando um festival de
filmes noir e, ao saírem, um deles
diz “É como se todos os filmes falassem de nós”.
É,
talvez isso conte um pouco contra o filme. Almodóvar adora brincar em suas
obras, mas aqui as brincadeiras vêm um pouco à custa de sutileza. As
reviravoltas continuam chocantes, isso é verdade, mas Almodóvar parece aqui até
um pouco desesperado para que entendamos aonde ele quer chegar... Embora, para
o crédito dele, o diretor usa essas dicas óbvias mais como uma pista para que
reflitamos sobre as pistas mais sutis. Como, por exemplo, as notícias de
tabloide: Ao longo do filme, Enrique é visto recortando duas notícias. A
segunda é sobre uma mulher que morreu abraçada a um crocodilo enquanto era
devorada. E Almodóvar imediatamente
nos conta, da forma mais explícita possível, o significado simbólico que isso
tem para o filme. Mas... E a primeira notícia? Não vou dizer aqui qual que é,
mas o filme nunca chega a nos dizer de forma explícita seu significado. É como
se Almodóvar estivesse dizendo “Pronto, já entreguei o significado da segunda
notícia pra vocês saberem que elas são importantes. Agora reflitam sobre o
significado da primeira!” E não é que, ao se pensar sobre o conteúdo da notícia
e do filme, faz sentido?!
Avaliação: Vale a pena
Nenhum comentário:
Postar um comentário