segunda-feira, 18 de julho de 2016

Má Educação

            Eu juro que é coincidência eu estar criticando um filme de Pedro Almodóvar justamente quando há um novo dele nos cinemas! Podem acreditar em mim ou não, mas este filme já estava na minha programação de críticas há alguns meses!
            Ah, Pedro Almodóvar... A mera citação do nome deste diretor espanhol já invoca um forte fluxo de memórias em quem assistiu seus filmes. Para alguns, são memórias sensuais, coloridas, ao mesmo tempo engraçadas e trágicas; enquanto que para outros são memórias de horror e estranheza, principalmente pela forma como Almodóvar trata temas polêmicos e extremamente chocantes com a mais absoluta indiferença. Para cada um que se impressionou pela forma como “Tudo Sobre Minha Mãe” esbanja mais cores que um quadro de Picasso, há alguém que saiu em asco no meio da sessão enquanto assistia “A Pele que Habito”. De uma forma ou de outra, Almodóvar é um diretor que está sempre disposto a maravilhar e a chocar seus espectadores, e mesmo em seus filmes considerados mais fracos exibe total controle sobre sua obra, com tramas onde cada pequeno detalhe ou diálogo possui sua importância para a conclusão final.
            Falemos, assim, de “Má Educação”.

            Lançado em 2004, “Má Educação” é um exemplo tão extremo de uma trama “almodovariana” que chega a ser difícil sequer saber por onde começar sua sinopse. Isso porque o enredo faz tantas reviravoltas e lida com temas tão pesados que o menor dos passos em falso que eu der aqui já pode estragar o final. Como se não bastasse não saber por onde começar, é também difícil definir onde parar: Embora tenha apenas 105 minutos de duração, o filme possui tantos detalhes de extrema importância que ao final a impressão que se tem é de que pelo menos umas cinco horas se passaram!
            Mas, criei este blog justamente com a intenção de me desafiar como crítico, então tentarei fazer aqui o que bons críticos de verdade deveriam fazer: Não estragar a experiência de assistir o filme e ao invés disso trazer novas abordagens que façam o público ver a obra de uma forma diferente. Vejamos então o quanto serei capaz de fracassar...

            O filme começa nos introduzindo a Enrique Goded (interpretado por Fele Martínez), um cineasta em ascensão que, no momento, está sofrendo de um bloqueio criativo, e em busca de inspiração passa o dia recortando notícias de tabloides. Eis que, porém, bate à porta de seu escritório um homem (interpretado por Gael García Bernal. Aliás, um adendo para elogiar a atuação camaleônica dele. Quando ao final do filme você percebe todas as cenas em que ele esteve presente e a complexidade de seu papel, não há como não se impressionar) querendo falar com ele. A princípio o homem é dispensado, mas Enrique em seguida quase lhe implora para entrar quando este diz ser Ignacio, ex-colega e primeiro amor de Enrique do tempo em que ambos estudavam em um internato católico.
            Ignacio diz que atualmente é ator (atendendo pelo nome artístico de Ángel), e que escreveu uma história que gostaria que Enrique lesse e adaptasse para filme. A história é dividida em duas partes: Uma “verídica”, narrando a relação entre Enrique e Ignacio quando pré-adolescentes e a interferência de Manolo (interpretado por Daniel Giménez Cacho), padre e professor de literatura do internato, pedófilo que se sente atraído por Ignacio; e uma “fictícia”, com Ignacio, já adulto e vivendo como a travesti Zahara, reencontrando por acaso Enrique e depois retornando ao internato para chantagear padre Manolo, ameaçando revelar seu abuso se este não lhe der dinheiro para uma cirurgia de mudança de sexo.
            Eeeeee acho que paro por aqui. Desculpe, mas é que a partir daí a história se resume a uma enorme reviravolta atrás da outra.

            Uma característica que se mantém nos bons filmes de Almodóvar é que quase sempre há algo (e, geralmente, mais de um único “algo”) que não é o que parece. É por isso que ele continua sendo um diretor tão admirado entre os fãs de cinema cult, com cada filme exigindo a máxima atenção do público e reservando uma surpresa que põe por água abaixo as expectativas e previsões de quem o assiste: Dois personagens que parecem possuir uma determinada relação entre si, de repente é revelado que a relação entre eles é completamente diferente, geralmente mais sombria; um breve comentário que um personagem faz e que poderia ser facilmente descartado por um espectador menos atencioso de repente se revela uma dica essencial para se entender um drama pessoal que o personagem quer manter em segredo.
            O mesmo acontece, não raramente, com o gênero de seus filmes. Muitas vezes eles parecem pertencer a certo gênero, mas uma análise um pouco mais atenciosa (ou nem tanto, já que Almodóvar adora dar pequenas marteladas de brincadeira aqui e ali) revela que o filme assistido na verdade possui muito mais em comum com outro gênero que a princípio não teria nada a ver com o estilo do filme. “A Pele que Habito”, por exemplo, a princípio parece ser um “simples” drama com certos toques sombrios, mas à medida que a trama se revela ele se mostra um digno conto de terror gótico moderno. O mesmo acontece em “Má Educação”: Parece um drama com alguns toques de comédia, mas ao assisti-lo com mais atenção e alguma noção de história do cinema, percebe-se que ele está muito mais próximo do que se imagina de um filme noir.

            Se você já assistiu o filme, talvez tenha notado essa semelhança por conta própria, e nesse caso nada do que direi aqui será novidade. Mas, só e apenas para satisfazer meu ego, partirei do princípio de que você está agora se perguntando “Sério? Um filme noir? Aqueles filmes de detetive em preto-e-branco cheios de sombras? O que c*****o que um filme super colorido e sem nenhum detetive do Almodóvar teria a ver com um filme noir?”. Neste caso, minha resposta é: Mais do que você imagina! Vejamos algumas características no cinema noir e analisemos como elas se encaixam em “Má Educação”.
            Em primeiro lugar, o cinema noir possui alguns arquétipos de personagens muito bem estabelecidos: O protagonista que procura a verdade (geralmente um detetive); o personagem que, independente se é com razão ou não, é perseguido ao longo do filme; e, claro, não vamos esquecer da femme fatale, a mulher que se utiliza de sua sensualidade e habilidade em mentir para conseguir o que quer.
Em “Má Educação”, não é preciso ir muito longe para se perceber quem é que procura a verdade: Enrique, embora não seja um detetive, assim que percebe que algumas coisas não batem começa a fazer investigações por conta própria, por mais longe que ele tenha que ir. Literalmente: Em um dado momento do filme, ele viaja metade da Espanha até um vilarejo na Galícia apenas para confirmar algo.
Por outro lado, Padre Manolo definitivamente ocupa o lugar daquele que é perseguido. Não que ele seja inocente, longe disso; até queremos que ele seja perseguido. Porém o lugar ocupado por este arquétipo no cinema noir é o daquele que o destino não perdoa pelos crimes que cometeu no passado, numa demonstração de fatalismo existencialista extremamente presente no gênero. E é exatamente isso que acontece com Manolo, jamais perdoado pelo que fez com Ignacio (embora, honestamente, o que ele fez seja de fato imperdoável).

            Quanto à Femme fatale... Almodóvar faz uma curiosa desconstrução deste arquétipo, considerando que, ao contrário da maioria de seus filmes, “Má Educação” não possui nenhuma personagem feminina realmente importante (pelo menos, nenhuma personagem feminina cisgênero). Mas isso não impede de haver um personagem específico muito esperto e ótimo mentiroso, que tem tamanha noção de sua própria sensualidade que é capaz de usa-la como uma arma para fazer os outros de gato e sapato e conseguir o que quer, dominando o jogo entre os protagonistas e passando por cima dos outros (literalmente, em um dado momento que não vou dizer qual é, mas que envolve água). Não vou dizer quem é, embora vocês provavelmente já tenham uma ideia. Mas o interessante em “Má Educação” não é tanto descobrir quem é a femme fatale, mas sim como este arquétipo é realizado ao longo do filme. Acreditem em mim, não é da maneira como inicialmente parece ser.
            Falando assim, parece que os mocinhos e bandidos em “Má Educação” são muito bem definidos. Pois bem... Não. Pois, como nos melhores filmes noir, todos os personagens são moralmente ambíguos. Tão ambíguos que, ao melhor estilo dos filmes de Almodóvar, ao final, quando as verdadeiras relações entre os personagens são reveladas, o espectador fica embasbacado pensando “Gente, mas todo mundo neste filme é completamente louco!”.

            Uma coincidência de arquétipos, porém, não é o suficiente para classificar “Má Educação” como um filme noir (ou, pelo menos, neo-noir). Afinal, filmes noir são facilmente reconhecíveis devido ao fato de terem um visual bastante específico e único ao gênero. De fato, no quesito visual “Má Educação” não traz de imediato a palavra “noir” à mente de quem o assiste: A iluminação é completamente diferente da padrão do gênero, sem sombras, luzes frias e contornos bem demarcados. Pelo contrário: Tudo em “Má Educação” é muito bem iluminado e cheio de luzes e cores quentes.
            A semelhança visual, porém, encontra-se na fotografia. O noir foi o gênero que introduziu ao cinema americano as posições de câmera peculiares e não-naturais antes usadas no expressionismo alemão (o que não é à toa, considerando que boa parte dos diretores noir eram justamente alemães fugindo do nazismo, mas isso é outra história). E nisso “Má Educação” não esconde sua influência, o exemplo máximo sendo uma tomada em “contra-plongée” (para quem não fala cinemês, é quando a câmera, próxima do chão, aponta para cima para mostrar o personagem) que faz um personagem específico parecer um gigante divino, mostrando todo o poder que ele possui sobre outro sem que este o saiba. E, mesmo que não utilize tanto as sombras, há uma cena em que elas são muito bem utilizadas, quando o esquema da femme fatale é revelado, fazendo-a de repente parecer pequena e indefesa (e, como se não bastasse, a posição da câmera desta vez transfere o poder para outro personagem).
            Seria possível escrever uma tese inteira citando todos os elementos que fazem de “Má Educação” um filme neo-noir: Os flashbacks, as narrações dos personagens mostrando seus pontos de vista sobre as situações, a presença em certo ponto do “clichê” do crime perfeito, o fatalismo e a força inevitável do passado, a corrupção, a lista vai loooooonge... Mas se nada disso os convencer... Então não se preocupem, porque Almodóvar deixará sua influência tão clara quanto a parte branca de um ovo quando dois personagens vão a um cinema onde está passando um festival de filmes noir e, ao saírem, um deles diz “É como se todos os filmes falassem de nós”.
            É, talvez isso conte um pouco contra o filme. Almodóvar adora brincar em suas obras, mas aqui as brincadeiras vêm um pouco à custa de sutileza. As reviravoltas continuam chocantes, isso é verdade, mas Almodóvar parece aqui até um pouco desesperado para que entendamos aonde ele quer chegar... Embora, para o crédito dele, o diretor usa essas dicas óbvias mais como uma pista para que reflitamos sobre as pistas mais sutis. Como, por exemplo, as notícias de tabloide: Ao longo do filme, Enrique é visto recortando duas notícias. A segunda é sobre uma mulher que morreu abraçada a um crocodilo enquanto era devorada. E Almodóvar imediatamente nos conta, da forma mais explícita possível, o significado simbólico que isso tem para o filme. Mas... E a primeira notícia? Não vou dizer aqui qual que é, mas o filme nunca chega a nos dizer de forma explícita seu significado. É como se Almodóvar estivesse dizendo “Pronto, já entreguei o significado da segunda notícia pra vocês saberem que elas são importantes. Agora reflitam sobre o significado da primeira!” E não é que, ao se pensar sobre o conteúdo da notícia e do filme, faz sentido?!

Avaliação: Vale a pena

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