sexta-feira, 8 de julho de 2016

Close-Up

            Como é que em todos esses anos de cinéfilo nunca assisti um único filme do recém-falecido cineasta iraniano Abbas Kiarostami?!

            Quero dizer, está certo que também não assisti tantos filmes iranianos assim, logo eu não teria muito como conhecer a obra dele, mas quando vi na capa do Estadão uma chamada com uma foto enorme de Kiarostami avisando sobre o falecimento dele, tive que saciar minha curiosidade. E aparentemente ele não apenas é considerado um dos maiores diretores iranianos de todos os tempos, como foi um verdadeiro figurão no mundo do cinema cult! 23 longas-metragens, 15 curtas, vencedor de uma Palma de Ouro em Cannes e indicado mais de uma vez ao Leão de Ouro em Veneza, diversos de seus filmes em listas de “melhores filmes de todos os tempos”... Como é que deixei ele passar batido por tanto tempo?!
            Mas, a vantagem de ser um cinéfilo curioso é que sempre é possível se redimir dessas coisas. E para isso, acabei por escolher como filme da vez um de seus primeiros longas-metragens a terem certo reconhecimento no ocidente: “Close-Up”, de 1990.

            Para descrever o enredo deste filme, é preciso também descrever um pouco o estilo de Kiarostami (ou, pelo menos, o que li a respeito em minhas pesquisas).
            Em primeiro lugar, mesmo quando não dirigia documentários, seus filmes eram muitas vezes feitos ao mesmo estilo de um. Em “Close-Up”, porém, ele leva isso a outro nível ao transformar a própria realidade em um filme de ficção, com o filme girando em torno do caso real de Hossain Sabzian, um homem pobre e divorciado que foi preso por fraude e tentativa de estelionato após fingir para uma família, os Ahankhah, que era o diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf, cujos filmes eram bastante apreciados no Irã, e a partir disso convencê-los que queria estrela-los em seu novo filme.

            Até aí, nada demais, centenas de filmes já foram feitos em cima de histórias reais. Mas eis a reviravolta que “Close-Up” faz: Não só a história é real, mas também Kiarostami conseguiu convencer todos os envolvidos no caso (Sabzian, os Ahankhah, o repórter que confirmou que o homem não era Makhmalbaf, enfim, todo mundo) a reencenar os momentos importantes, como a prisão de Sabzian e o momento em que este primeiro entrou na vida da família. Não são atores, nem apenas meros relatos: São as pessoas sobre as quais a história se trata voltando atrás para nos mostrar o que elas passaram. Não só isso, como também quando Kiarostami soube do caso, Sabzian estava ainda aguardando seu julgamento, então o diretor conseguiu permissão para filmar o processo. Ou seja, tudo no filme é real... Mas não necessariamente é. O filme não chega a ser um documentário, mas também é difícil dizer aonde que começa a ficção. Afinal, o filme é baseado em interpretações e reencenações, ou seja, não necessariamente o que vemos ou ouvimos é o que de fato aconteceu.
            Eis aí um grande tema do filme: A natureza da verdade. Afinal, o quanto do que é reencenado de fato aconteceu como é visto no filme? Não necessariamente eles terão dito ou feito as mesmas coisas da mesma forma. E mesmo em cenas como, por exemplo, o encontro de Sabzian com Kiarostami, ou quando o diretor pede para o juiz mudar a data do julgamento, é difícil dizer se são “verídicas” ou reencenações.
Em alguns momentos o filme propositalmente testa a capacidade do público de crer no que está vendo, o maior exemplo sendo a sequência inicial, na qual durante quinze minutos o filme se foca não em Sabzian ou nos Ahankhah, mas sim em personagens absolutamente secundários: O repórter, os dois policiais que prenderam Sabzian e o taxista que levou os três até a casa dos Ahankhah. Em um momento durante esta sequência, o taxista, se vendo sozinho, aproxima-se de uma pilha de folhas e tira de lá algumas flores, formando um buquê. Revirando mais, encontra uma lata de spray, que joga na rua, e a câmera acompanha enquanto ela lentamente desce uma ladeira. É uma cena de tal teor poético que não há como não partir do princípio de que é fictícia, de que não aconteceu assim.
            Será? Não será? Kiarostami constantemente brinca com isso ao longo do filme.

            Mas esta brincadeira, no final das contas, não é fora de propósito. O filme gira em torno do julgamento de Sabzian, cujo rosto a câmera devora em um close-up (daí o nome do filme) que, entre um corte e outro, dura quase metade do filme, pegando cada detalhe de seu rosto (e, eventualmente, o dos outros envolvidos no caso), cada fala sua, como se Kiarostami quisesse usar sua câmera para entrar na alma deste homem.
 Tal proximidade intimista faz o público se perguntar quem afinal Sabzian é e, como o juiz constantemente pergunta, porque ele resolveu fingir que era Mohsen Makhmalbaf: Afinal, ele é um picareta que contou essa mentira apenas para tentar rouba-los, como primeiro se suspeitou? Ele é um louco? Ou, como o próprio Sabzian justifica, é apenas um homem pobre e solitário que, tendo sempre sido fascinado pelo cinema, ressentido de não poder se dedicar à arte por ser pobre demais, e se identificando com os filmes de Makhmalbaf (que possuem fortes críticas sociais como temas centrais), ao dizer ser o diretor que tanto admira, consegue em parte realizar seu grande sonho (ou pelo menos fingir para si mesmo que realiza)? Em um dado momento, o mais novo dos Ahankhah diz ao ser perguntado pelo juiz se perdoa Sabzian: “Se ele tivesse mostrado alguma honestidade não haveria inconveniente. Mas ao escutá-lo, me deu a impressão de que ele ainda está interpretando um papel, mesmo que seja um minimamente diferente”. É essa a dúvida que em nós, como público, fica.

            Como se não bastasse esse comentário filosófico a respeito da natureza da verdade, “Close-Up” está cheio de breves comentários e críticas à situação econômica e social do Irã. Logo a sequência inicial, mais uma vez, não é ao acaso, mostrando os dois policiais indo prender Sabzian de táxi, o que faz o taxista perguntar a eles se a polícia não tem seus próprios veículos; e, mais tarde, vemos o repórter batendo de porta em porta desesperado em busca de um gravador, sem conseguir achar ninguém que tenha um, apesar de estar em uma boa vizinhança de Teerã. Como se não bastasse, quando o próprio Kiarostami enfim aparece em cena (apropriadamente de costas) e começa a se envolver no caso, vemos que ninguém sequer contou para Sabzian quando será seu julgamento, que poderá demorar ainda um bom tempo já que os juízes pouco se importam com crimes pequenos como tentativa de estelionato. Sem falar que o julgamento de Sabzian frequentemente bate no ponto de que ele é apenas um pobre empregado ocasional em uma gráfica, o que não apenas foi a causa de seu divórcio, mas o faz se sentir extremamente impotente e incapaz de realizar seus sonhos (“Um diretor não pode ser pobre. Deve ter dinheiro. Não pode ser tão pobre que não pode comprar um agrado para seu filho”).
            Nisso, a história real de Sabzian acaba por se encaixar em uma segunda característica importante não apenas do cinema de Abbas Kiarostami, mas de todo o movimento da Nova Onda Iraniana do qual ele fez parte: O uso de histórias como alegorias para problemas filosóficos (a questão da identidade humana e o conceito de realidade) e sociais (as difíceis condições de vida das pessoas mais pobres e o que alguém é capaz de fazer para se sentir respeitado). Mesmo que a alegoria, neste caso, seja uma história real. Há também, no caso particular deste filme, certo questionamento metalinguístico sobre a própria natureza do cinema, o que faz ou não dele um retrato da realidade, e qual é afinal o papel da arte na vida das pessoas, considerando que Sabzian constantemente repete que assiste os filmes de Makhmalbaf, especialmente o então mais recente do diretor, “O Ciclista” (sobre um refugiado afegão que anda de bicicleta sem parar por sete dias para conseguir dinheiro e pagar a cirurgia de sua esposa), e se identifica com o sofrimento dos protagonistas.

            Há outros elementos aparentemente típicos de Kiarostami que são possíveis de serem notados, como a conversa inicial entre o repórter, o taxista e os soldados, que acontece inteiramente dentro de um carro com uma câmera fixa instalada ao lado do painel; e diálogos de certo teor poético, como quando Sabzian diz que lamenta o que fez e não se arrepende de sua estadia na prisão, pois “a prisão é boa para os bons, e má para os maus. Ensina aos bons uma lição, mas se põe difícil para os maus”.
            Está certo que “Close-Up” não é exatamente um filme perfeito. E o problema principal é, infelizmente, um que era quase inevitável para Kiarostami dar maior realismo ao filme: Ao decidir filmar os acontecimentos descritos no filme enquanto estes ainda aconteciam, o diretor acaba não dando a devida profundidade a seus personagens. Queremos saber mais sobre Sabzian, que é um personagem bastante interessante de ser estudado, porém tal estudo acaba se resumindo apenas aos pontos colocados em pauta durante o julgamento, e ao final a impressão é de que ainda há muito que se conhecer a seu respeito, que Kiarostami escolheu não mostrar para se focar nos temas que o levaram a se envolver no caso em primeiro lugar.

            Mas, mais uma vez, fica a dúvida quanto a se Kiarostami tinha ou não noção disso e resolver manter esse problema de propósito. Afinal, um filme jamais será capaz de abordar toda a realidade de um fato em toda a sua profundidade, e Abbas Kiarostami, de uma forma bastante curiosa, propositalmente mantém certas falhas técnicas em “Close-Up” para mostrar que, no frigir dos ovos, isto é um filme: Seja em certos cortes de edição óbvios demais para não serem notados; seja na pobre qualidade da imagem durante o julgamento; seja, no que é possivelmente a cena mais famosa do filme, a sequência final envolvendo o Mohsen Makhmalbaf de verdade, em que o áudio constantemente cai e a cena fica muda (então não achem que há algo de errado com sua TV quando forem assistir o filme), mais uma vez deixando a dúvida quanto a se essa falha é real ou não, se é proposital ou não, mais uma pulga que Abbas Kiarostami discretamente coloca atrás da nossa orelha.


Avaliação: Vale a pena.

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