domingo, 24 de julho de 2016

Os Sete: Filmes Favoritos de Billy Wilder

Bora fazer algo diferente?
            Algum tempo atrás, em um dia de preguiça em que eu não queria assistir filme algum, publiquei neste blog um trabalho que eu tinha escrito para a faculdade sobre Billy Wilder. Porém, depois de publicá-lo, pensei comigo mesmo que... Os filmes de Wilder são realmente muito bons! Ele é um dos poucos diretores que me deixaram literalmente paralisado enquanto assistia a um filme seu, pois eu não ousava mover um único músculo, como se isso fosse macular a perfeição do que eu estava assistindo. É sério! E mesmo para aqueles que não curtem filmes antigos ou cult, os melhores filmes de Wilder possuem um apelo que acaba prendendo mesmo o cinéfilo mais mainstream (digo isso por experiência própria!).
            Sendo assim, considerando que ele dirigiu 27 filmes, e considerando quantos destes filmes são considerados clássicos, achei que criticar um único deles não seria o suficiente. Juntando isso à minha vontade de fazer algo um pouco diferente, resolvi então aproveitar estas férias para assistir os filmes que me faltavam e fazer aqui uma postagem um pouco mais longa que meu normal com uma lista dos meus sete filmes favoritos de Billy Wilder, e com isso inaugurar o que, com sorte, pode se tornar um novo bloco deste blog, “Os Sete”. Por que sete? Porque gosto deste número, só isso. E por que não “Top Sete”? Porque este não é um top. Tanto que irei listar os filmes em ordem cronológica, sem definir qual deles eu gosto mais. São apenas os sete filmes de Billy Wilder que mais acho que valem a pena. Pode ser que você não concorde com esta lista, que haja algo que você queira mudar? Lógico. Mas ei, não é assim com toda lista de filmes?

#1: Pacto de Sangue (1944)

Sinopse: Um vendedor de seguros (Fred MacMurray) se apaixona pela esposa de um de seus clientes (Barbara Stanwyck) e juntos armam um esquema para matar o marido dela e conseguir uma enorme indenização. O plano inicialmente funciona, porém a seguradora, não querendo pagar a indenização, começa a encontrar alguns furos na “morte acidental”, ao mesmo tempo em que a relação entre os dois amantes fica cada vez mais tensa.

            O noir para dar inveja a todos os outros noirs. Ao iniciar o filme com o protagonista, com um tiro no ombro, nos contando que o plano deu errado, Wilder aqui nos leva a um tipo de suspense fora do comum: O que importa não é se o plano deu errado, mas sim como. Cena após cena, uma nova ameaça surge, algo que parece que vai pôr tudo por água abaixo, como se o filme estivesse jogando um jogo de batata-quente consigo mesmo: Afinal, quando é que essa bomba vai explodir? Ao mesmo tempo, todos os personagens parecem ter seus papeis desconstruídos: O personagem de MacMurray, embora seja confiante, inteligente e pareça ter tudo sob controle, não percebe o quanto ele próprio está sendo controlado; a femme fatale de Stanwyck não é uma mulher particularmente sensual, seu rostinho parecendo inocente e indefeso o suficiente para enganar aqueles ao seu redor; e, ao invés de detetives, os investigadores do filme são de uma seguradora que apenas investiga o caso para não precisar perder dinheiro.
            Como se não bastasse uma grande narrativa, os aspectos mais técnicos de “Pacto de Sangue” são impecáveis: As atuações memoráveis, os jogos de luz e sombra dos quais Wilder faz grande uso ao longo do filme, dando o devido tom sombrio à história, e não vamos esquecer a poderosa e dramática trilha sonora de Miklós Rózsa, que logo nos créditos iniciais dá à simples sombra de um homem de muletas a impressão de algo muito maior que a própria vida (se tiverem a chance, assistam este filme na tela grande, nem que seja apenas por esta tomada inicial).


#2: Farrapo Humano (1945)

Sinopse: Don Birnam (Ray Milland) é um escritor fracassado que tenta afogar suas frustrações na bebida, tornando-se um alcoólatra. Quando se atrasa para uma viagem por ter perdido a hora no bar, ele então passa um longo fim de semana sozinho com seus demônios.

            Poucas vezes exclamei “Santo Deus!” ao terminar de assistir um filme. Esta foi uma delas. Durante o clímax, meu rosto estava quase colado na tela, de tanto que eu estava (literalmente!) sendo sugado pela intensidade do drama. E intensidade é a palavra que melhor define “Farrapo Humano”: Wilder aqui aborda o alcoolismo sem maquiagem alguma, com uma sinceridade que filme algum antes (e pouquíssimos depois) ousou abordar. A agonia pela qual Birnam passa toda vez que é privado de beber; a forma como ele mente, rouba e faz qualquer coisa para conseguir seu precioso uísque; e sua euforia uma vez que fica enfim bêbado e se sente capaz de fazer qualquer coisa, apenas para perceber que não consegue fazer nada (o que o faz querer encher a cara ainda mais); tudo isso é retratado através de um combo entre alguns dos melhores monólogos da história do cinema e a atuação de Milland, que dá tudo, absolutamente tudo de si neste papel, com seu rosto, suas mãos, seu corpo inteiro expressando a angústia de seu personagem.
            A direção de Wilder, aqui, é de uma força quase física, cada cena sendo sentida como um soco no estômago. O resultado é uma experiência audiovisual que te faz entrar na pele do protagonista e sentir o que ele sente: O torpor, a dor, e a constante sensação de se estar vivendo um sonho, ou, melhor dizendo, um pesadelo (reforçada mais uma vez pela trilha sonora de Rózsa e o inteligente uso que ele faz do teremim), que pode assumir até mesmo formas definidas, nas agonizantes e, ainda hoje, chocantes cenas em que o filme aborda o delírio alcoólico. Uma coisa eu digo, após assistir (ou, melhor dizendo, sentir) este filme, demorará um pouco pra você pegar de volta num copo de álcool.


#3: Crepúsculo dos Deuses (1950)

Sinopse: Um roteirista sem sucesso (William Holden), fugindo daqueles que querem retomar seu carro, entra por acaso na mansão de Norma Desmond (Gloria Swanson), uma antiga estrela do cinema mudo. Ao saber que ele é roteirista, Norma o contrata para escrever o roteiro do filme que a levará de volta às telas, porém com o tempo ela cria uma paixão obsessiva pelo homem mais jovem.

Já assisti a este filme um milhão de vezes, mas de alguma forma ele continua me deixando arrepiado. Wilder aqui não teve medo de morder a mão que o alimentava ao fazer um dos retratos mais cínicos até então vistos de Hollywood: Não como uma fábrica de sonhos, mas como uma destruidora dos mesmos; seja dos jovens iniciantes que mesmo com todo o esforço do mundo não conseguem fazer suas carreiras decolarem, seja dos veteranos que de um dia para o outro se veem esquecidos pelo público e ignorados pelos estúdios. Nisso, Swanson “rouba” a cena, como esta mulher extremamente orgulhosa e melodramática, que se recusa a deixar para trás os dias em que foi tratada como uma deusa. Coloco roubar entre aspas porque o filme é de fato dela, a fotografia e a trilha sonora tornando-a uma verdadeira diva, transmitindo uma aura de poder e loucura.
A aura, aliás, é uma parte importante do impacto deste filme, transmitindo ao mesmo tempo a elegância exagerada do estilo de vida de Norma e o mistério que está sempre pairando no ar: Quando o personagem de Holden entra pela primeira vez na mansão quase abandonada, a impressão que se tem beira à de um filme de terror! “Crepúsculo dos Deuses”, porém, não se esquece de utilizar da insanidade de seus personagens (mesmo o protagonista, mordazmente cínico, se deixa levar pela loucura que o cerca) como uma forte crítica à insanidade geral da indústria cinematográfica hollywoodiana, que pouco se preocupa com as pessoas nela envolvidas e seus sonhos individuais: Enquanto a máquina continuar funcionando e dando dinheiro, qualquer um é dispensável.


#4: Inferno Número 17 (1953)

Sinopse: Durante a 2ª Guerra Mundial, um grupo de sargentos americanos é mantido cativo no campo de prisioneiros alemão Stalag 17. Em uma das barracas, os prisioneiros constantemente tentam fugir e/ou sabotar a segurança, porém todas as suas tentativas falham, indicando a presença de um traidor entre eles.

            Quem diria que um filme sobre prisioneiros de guerra seria tão engraçado! O que poderia parecer uma situação desesperadora é aqui tratado com tamanha leveza e escárnio que é difícil não rir junto com este grupo de militares que mais parecem saídos dos Looney Tunes, aproveitando da melhor maneira possível o pouco que um campo de prisioneiros nazista lhes oferece: Tentando espiar as prisioneiras russas enquanto elas tomam banho, bebendo o que quer que saia de um alambique improvisado, apostando em corridas de ratos e, claro, aproveitando toda e qualquer chance para tirar sarro dos guardas alemães (especialmente em uma cena envolvendo o “Mein Kampf” que me fez rir muito alto). As atuações são comicamente exageradas na medida certa, tornando memoráveis cada um dos muitos personagens do filme, e os atores interagem muito bem entre si, como verdadeiros companheiros.
            Toda a comédia, porém, não deixa de lado o drama em cima do qual a trama se desenrola: O do traidor entre os prisioneiros, e do sargento que todos consideram estar vendendo informações e que, após ser espancado, tenta descobrir por conta própria quem é o verdadeiro traidor. E quando o filme decide se focar no drama, este pode por vezes ser bastante intenso. Por mais ridículos e estúpidos que os guardas nazistas pareçam em alguns momentos, quando Wilder quer que eles sejam ameaçadores, eles conseguem ser realmente ameaçadores! Tal drama, porém, de uma forma curiosa ajuda a tornar as cenas cômicas ainda mais engraçadas, pois o alívio oferecido pelo humor é maior. “Inferno Número 17”, assim, fica como uma prova da versatilidade do diretor em lidar tanto com a comédia quanto com o drama.


#5: Testemunha de Acusação (1957)

Sinopse: Após sair de um coma, um advogado idoso e com problemas de saúde (Charles Laughton) aceita defender um homem (Tyrone Power) acusado de matar uma senhora. A única testemunha que poderia ajudar é a esposa do réu (Marlene Dietrich), porém esta não parece muito interessada em defender seu marido.

            Coloque um roteiro de teatro da rainha do crime Agatha Christie nas mãos de um dos diretores mais competentes de todos os tempos, e o resultado é uma obra-prima não só entre filmes de tribunal, mas do cinema em si. Como se não bastasse Wilder mostrar total domínio sobre alguns poucos cenários bem limitados, ainda consegue extrair o absoluto melhor de todos os atores, especialmente do trio principal, do qual é difícil dizer qual se saiu melhor, cada um parecendo nascido para o papel que interpreta. Como se não bastasse as excelentes atuações, o roteiro ajuda a tornar cada personagem carismático à sua própria maneira, não apenas por se focar em um pequeno número deles, mas também devido à trama girar inteiramente no drama deles, sem grandes pretensões. Acabamos, assim, nos conectando bastante com os protagonistas, apesar de e, talvez até, devido a seus defeitos (Laughton sendo cínico a um nível insuportável àqueles ao seu redor, Power sendo um idiota que não tem noção da situação em que se meteu, e Dietrech sendo fria como uma pedra de gelo e disposta a contar qualquer mentira).
            Tal foco sem pretensões, porém, não significa que “Testemunha de Acusação” tem uma trama simples. Oh, não, senhor(a): Além de diversos flashbacks, o enredo possui uma reviravolta atrás da outra, tornando o final praticamente imprevisível (a ponto de os créditos possuírem uma “nota do diretor” pedindo para os espectadores não revelarem o final àqueles que ainda não assistiram o filme). Mas uma trama tão densa surpreendentemente não soa pesada demais, graças aos toques de humor negro colocados aqui e ali que tornam o filme, além de muito bom, também divertido.


#6: Quanto Mais Quente Melhor (1959)

Sinopse: Em 1929, dois músicos (Tony Curtis e Jack Lemmon) testemunham uma chacina da máfia. Para fugirem, disfarçam-se de mulheres e entram em uma banda feminina em turnê para a Flórida, onde acabam se apaixonando por outra membra da banda (Marylin Monroe).

            Há bons motivos para esta ser considerada uma das melhores comédias de todos os tempos: Além de manter um ritmo rápido até mesmo comparado ao que temos atualmente, Wilder aborda temas “sexuais” com extrema ousadia (ainda mais considerando a época em que o filme foi feito) sem, porém, soar vulgar. Aqui, temos comédia para todos os gostos, da considerada de mais “alta classe”, baseada em diálogos e situações, até a mais pastelão, com pessoas caindo e perseguições que parecem saídas de um episódio de Scooby-Doo. Há tanto personagens espertos sempre prontos para uma frase de efeito cínica quanto completos idiotas que sorriem mesmo nas situações mais absurdas, para o desespero daqueles ao seu redor. Por vezes, os dois extremos do humor alternam-se um ao outro de forma tão rápida e escrachada que isso por si só acaba sendo hilário.
            Os atores também parecem estar se divertindo montes com o filme. Mesmo Marylin Monroe, que Wilder odiava a ponto de dizer que ela tinha “peitos como granito e cérebro como queijo suíço”, tem seus momentos de brilho como a garota tonta e ingênua que só quer pelo menos uma vez na vida se dar bem (apenas imagino a cara de satisfação de Wilder ao filmar a cena em que Monroe monologa sobre o quão burra ela é). Curtis e Lemmon também têm uma grande química entre si como a velha dupla “espertalhão/covarde”, cada um interpretando seu papel com maestria apesar de todas as exigências impostas pelo roteiro, especialmente Curtis, que se vê tendo que ser convincente em três personalidades completamente diferentes. Não que Lemmon não brilhe nas cenas mais “pastelão”, especialmente a perseguição no clímax, em que ele corre pra lá e pra cá de salto alto.


#7: Se Meu Apartamento Falasse (1960)

Sinopse: C. C. Baxter (Jack Lemmon) aceita emprestar seu apartamento aos seus superiores para que estes tenham lá seus casos extraconjugais, na esperança de assim conseguir ser promovido. Ao mesmo tempo, é apaixonado por Fran, a operadora do elevador do prédio onde trabalha (Shirley MacLaine), porém mal sabe ele que ela é amante do diretor da empresa (Fred MacMurray).

            Se os outros filmes desta lista provaram tanto a capacidade dramática quanto cômica de Wilder, esta é a maior prova de sua sensibilidade. Não importa o quanto você ri ou chora ao assisti-lo, acima de tudo “Se Meu Apartamento Falasse” é um dos mais sensíveis filmes românticos já feitos. Wilder deixa aqui um pouco de lado seu típico estilo cínico para contar uma história de amor que te acerta em cheio direto no coração. Não que ele não esteja totalmente fora do filme: O diretor ainda retrata de forma bastante maldosa os superiores de Baxter, que pouco se importam com o pobre-coitado e ameaçam demiti-lo caso ele não lhes ofereça a residência como motel grátis. Mas este não é o foco do filme. O foco está de fato no tímido Baxter e em sua paixão platônica por Fran. Ambos os personagens se deixam serem usados pelos outros sem nada em troca (Baxter por seus superiores que não o respeitam, e Fran por seu amante que não a ama), e embora isso inicialmente seja tratado de forma cômica, assume ao longo do filme um tom cada vez mais trágico, de forma que possamos sentir o máximo de empatia pelo “casal” e queiramos com todas as nossas forças que eles fiquem juntos. E embora a forma inusitada como Baxter consegue enfim ter um momento a sós com Fran tenha sido bastante repetida em filmes posteriores, nenhum conseguiu alcançar a ternura de “Se Meu Apartamento Falasse”.

            Ternura, aliás, é definitivamente a palavra que melhor define este filme, do começo ao fim passando aquele calor gostoso no coração que nos faz suspirar, reforçada pela linda trilha sonora de Adolph Deutsch.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Má Educação

            Eu juro que é coincidência eu estar criticando um filme de Pedro Almodóvar justamente quando há um novo dele nos cinemas! Podem acreditar em mim ou não, mas este filme já estava na minha programação de críticas há alguns meses!
            Ah, Pedro Almodóvar... A mera citação do nome deste diretor espanhol já invoca um forte fluxo de memórias em quem assistiu seus filmes. Para alguns, são memórias sensuais, coloridas, ao mesmo tempo engraçadas e trágicas; enquanto que para outros são memórias de horror e estranheza, principalmente pela forma como Almodóvar trata temas polêmicos e extremamente chocantes com a mais absoluta indiferença. Para cada um que se impressionou pela forma como “Tudo Sobre Minha Mãe” esbanja mais cores que um quadro de Picasso, há alguém que saiu em asco no meio da sessão enquanto assistia “A Pele que Habito”. De uma forma ou de outra, Almodóvar é um diretor que está sempre disposto a maravilhar e a chocar seus espectadores, e mesmo em seus filmes considerados mais fracos exibe total controle sobre sua obra, com tramas onde cada pequeno detalhe ou diálogo possui sua importância para a conclusão final.
            Falemos, assim, de “Má Educação”.

            Lançado em 2004, “Má Educação” é um exemplo tão extremo de uma trama “almodovariana” que chega a ser difícil sequer saber por onde começar sua sinopse. Isso porque o enredo faz tantas reviravoltas e lida com temas tão pesados que o menor dos passos em falso que eu der aqui já pode estragar o final. Como se não bastasse não saber por onde começar, é também difícil definir onde parar: Embora tenha apenas 105 minutos de duração, o filme possui tantos detalhes de extrema importância que ao final a impressão que se tem é de que pelo menos umas cinco horas se passaram!
            Mas, criei este blog justamente com a intenção de me desafiar como crítico, então tentarei fazer aqui o que bons críticos de verdade deveriam fazer: Não estragar a experiência de assistir o filme e ao invés disso trazer novas abordagens que façam o público ver a obra de uma forma diferente. Vejamos então o quanto serei capaz de fracassar...

            O filme começa nos introduzindo a Enrique Goded (interpretado por Fele Martínez), um cineasta em ascensão que, no momento, está sofrendo de um bloqueio criativo, e em busca de inspiração passa o dia recortando notícias de tabloides. Eis que, porém, bate à porta de seu escritório um homem (interpretado por Gael García Bernal. Aliás, um adendo para elogiar a atuação camaleônica dele. Quando ao final do filme você percebe todas as cenas em que ele esteve presente e a complexidade de seu papel, não há como não se impressionar) querendo falar com ele. A princípio o homem é dispensado, mas Enrique em seguida quase lhe implora para entrar quando este diz ser Ignacio, ex-colega e primeiro amor de Enrique do tempo em que ambos estudavam em um internato católico.
            Ignacio diz que atualmente é ator (atendendo pelo nome artístico de Ángel), e que escreveu uma história que gostaria que Enrique lesse e adaptasse para filme. A história é dividida em duas partes: Uma “verídica”, narrando a relação entre Enrique e Ignacio quando pré-adolescentes e a interferência de Manolo (interpretado por Daniel Giménez Cacho), padre e professor de literatura do internato, pedófilo que se sente atraído por Ignacio; e uma “fictícia”, com Ignacio, já adulto e vivendo como a travesti Zahara, reencontrando por acaso Enrique e depois retornando ao internato para chantagear padre Manolo, ameaçando revelar seu abuso se este não lhe der dinheiro para uma cirurgia de mudança de sexo.
            Eeeeee acho que paro por aqui. Desculpe, mas é que a partir daí a história se resume a uma enorme reviravolta atrás da outra.

            Uma característica que se mantém nos bons filmes de Almodóvar é que quase sempre há algo (e, geralmente, mais de um único “algo”) que não é o que parece. É por isso que ele continua sendo um diretor tão admirado entre os fãs de cinema cult, com cada filme exigindo a máxima atenção do público e reservando uma surpresa que põe por água abaixo as expectativas e previsões de quem o assiste: Dois personagens que parecem possuir uma determinada relação entre si, de repente é revelado que a relação entre eles é completamente diferente, geralmente mais sombria; um breve comentário que um personagem faz e que poderia ser facilmente descartado por um espectador menos atencioso de repente se revela uma dica essencial para se entender um drama pessoal que o personagem quer manter em segredo.
            O mesmo acontece, não raramente, com o gênero de seus filmes. Muitas vezes eles parecem pertencer a certo gênero, mas uma análise um pouco mais atenciosa (ou nem tanto, já que Almodóvar adora dar pequenas marteladas de brincadeira aqui e ali) revela que o filme assistido na verdade possui muito mais em comum com outro gênero que a princípio não teria nada a ver com o estilo do filme. “A Pele que Habito”, por exemplo, a princípio parece ser um “simples” drama com certos toques sombrios, mas à medida que a trama se revela ele se mostra um digno conto de terror gótico moderno. O mesmo acontece em “Má Educação”: Parece um drama com alguns toques de comédia, mas ao assisti-lo com mais atenção e alguma noção de história do cinema, percebe-se que ele está muito mais próximo do que se imagina de um filme noir.

            Se você já assistiu o filme, talvez tenha notado essa semelhança por conta própria, e nesse caso nada do que direi aqui será novidade. Mas, só e apenas para satisfazer meu ego, partirei do princípio de que você está agora se perguntando “Sério? Um filme noir? Aqueles filmes de detetive em preto-e-branco cheios de sombras? O que c*****o que um filme super colorido e sem nenhum detetive do Almodóvar teria a ver com um filme noir?”. Neste caso, minha resposta é: Mais do que você imagina! Vejamos algumas características no cinema noir e analisemos como elas se encaixam em “Má Educação”.
            Em primeiro lugar, o cinema noir possui alguns arquétipos de personagens muito bem estabelecidos: O protagonista que procura a verdade (geralmente um detetive); o personagem que, independente se é com razão ou não, é perseguido ao longo do filme; e, claro, não vamos esquecer da femme fatale, a mulher que se utiliza de sua sensualidade e habilidade em mentir para conseguir o que quer.
Em “Má Educação”, não é preciso ir muito longe para se perceber quem é que procura a verdade: Enrique, embora não seja um detetive, assim que percebe que algumas coisas não batem começa a fazer investigações por conta própria, por mais longe que ele tenha que ir. Literalmente: Em um dado momento do filme, ele viaja metade da Espanha até um vilarejo na Galícia apenas para confirmar algo.
Por outro lado, Padre Manolo definitivamente ocupa o lugar daquele que é perseguido. Não que ele seja inocente, longe disso; até queremos que ele seja perseguido. Porém o lugar ocupado por este arquétipo no cinema noir é o daquele que o destino não perdoa pelos crimes que cometeu no passado, numa demonstração de fatalismo existencialista extremamente presente no gênero. E é exatamente isso que acontece com Manolo, jamais perdoado pelo que fez com Ignacio (embora, honestamente, o que ele fez seja de fato imperdoável).

            Quanto à Femme fatale... Almodóvar faz uma curiosa desconstrução deste arquétipo, considerando que, ao contrário da maioria de seus filmes, “Má Educação” não possui nenhuma personagem feminina realmente importante (pelo menos, nenhuma personagem feminina cisgênero). Mas isso não impede de haver um personagem específico muito esperto e ótimo mentiroso, que tem tamanha noção de sua própria sensualidade que é capaz de usa-la como uma arma para fazer os outros de gato e sapato e conseguir o que quer, dominando o jogo entre os protagonistas e passando por cima dos outros (literalmente, em um dado momento que não vou dizer qual é, mas que envolve água). Não vou dizer quem é, embora vocês provavelmente já tenham uma ideia. Mas o interessante em “Má Educação” não é tanto descobrir quem é a femme fatale, mas sim como este arquétipo é realizado ao longo do filme. Acreditem em mim, não é da maneira como inicialmente parece ser.
            Falando assim, parece que os mocinhos e bandidos em “Má Educação” são muito bem definidos. Pois bem... Não. Pois, como nos melhores filmes noir, todos os personagens são moralmente ambíguos. Tão ambíguos que, ao melhor estilo dos filmes de Almodóvar, ao final, quando as verdadeiras relações entre os personagens são reveladas, o espectador fica embasbacado pensando “Gente, mas todo mundo neste filme é completamente louco!”.

            Uma coincidência de arquétipos, porém, não é o suficiente para classificar “Má Educação” como um filme noir (ou, pelo menos, neo-noir). Afinal, filmes noir são facilmente reconhecíveis devido ao fato de terem um visual bastante específico e único ao gênero. De fato, no quesito visual “Má Educação” não traz de imediato a palavra “noir” à mente de quem o assiste: A iluminação é completamente diferente da padrão do gênero, sem sombras, luzes frias e contornos bem demarcados. Pelo contrário: Tudo em “Má Educação” é muito bem iluminado e cheio de luzes e cores quentes.
            A semelhança visual, porém, encontra-se na fotografia. O noir foi o gênero que introduziu ao cinema americano as posições de câmera peculiares e não-naturais antes usadas no expressionismo alemão (o que não é à toa, considerando que boa parte dos diretores noir eram justamente alemães fugindo do nazismo, mas isso é outra história). E nisso “Má Educação” não esconde sua influência, o exemplo máximo sendo uma tomada em “contra-plongée” (para quem não fala cinemês, é quando a câmera, próxima do chão, aponta para cima para mostrar o personagem) que faz um personagem específico parecer um gigante divino, mostrando todo o poder que ele possui sobre outro sem que este o saiba. E, mesmo que não utilize tanto as sombras, há uma cena em que elas são muito bem utilizadas, quando o esquema da femme fatale é revelado, fazendo-a de repente parecer pequena e indefesa (e, como se não bastasse, a posição da câmera desta vez transfere o poder para outro personagem).
            Seria possível escrever uma tese inteira citando todos os elementos que fazem de “Má Educação” um filme neo-noir: Os flashbacks, as narrações dos personagens mostrando seus pontos de vista sobre as situações, a presença em certo ponto do “clichê” do crime perfeito, o fatalismo e a força inevitável do passado, a corrupção, a lista vai loooooonge... Mas se nada disso os convencer... Então não se preocupem, porque Almodóvar deixará sua influência tão clara quanto a parte branca de um ovo quando dois personagens vão a um cinema onde está passando um festival de filmes noir e, ao saírem, um deles diz “É como se todos os filmes falassem de nós”.
            É, talvez isso conte um pouco contra o filme. Almodóvar adora brincar em suas obras, mas aqui as brincadeiras vêm um pouco à custa de sutileza. As reviravoltas continuam chocantes, isso é verdade, mas Almodóvar parece aqui até um pouco desesperado para que entendamos aonde ele quer chegar... Embora, para o crédito dele, o diretor usa essas dicas óbvias mais como uma pista para que reflitamos sobre as pistas mais sutis. Como, por exemplo, as notícias de tabloide: Ao longo do filme, Enrique é visto recortando duas notícias. A segunda é sobre uma mulher que morreu abraçada a um crocodilo enquanto era devorada. E Almodóvar imediatamente nos conta, da forma mais explícita possível, o significado simbólico que isso tem para o filme. Mas... E a primeira notícia? Não vou dizer aqui qual que é, mas o filme nunca chega a nos dizer de forma explícita seu significado. É como se Almodóvar estivesse dizendo “Pronto, já entreguei o significado da segunda notícia pra vocês saberem que elas são importantes. Agora reflitam sobre o significado da primeira!” E não é que, ao se pensar sobre o conteúdo da notícia e do filme, faz sentido?!

Avaliação: Vale a pena

sábado, 16 de julho de 2016

Pixote - A Lei do Mais Fraco

            2016 não está sendo um ano fácil...
            Apenas uma semana depois do falecimento de Abbas Kiarostami, é a vez de nos despedirmos de outro grande cineasta do cenário cult: Héctor Babenco, nascido na Argentina e naturalizado brasileiro, falecido aos 70 anos. Embora tenha dirigido apenas 10 filmes, teve ainda assim uma das melhores e mais bem-recebidas carreiras do cinema nacional, chegando até a ser indicado ao Oscar de Melhor Diretor. Fica difícil, portanto, escolher um único filme para criticar como homenagem a ele. Mas, ao final, me voltarei para um de seus primeiros filmes a chocar espectadores não apenas no Brasil, mas também ao redor do mundo no início dos anos 80: “Pixote – A Lei do Mais Fraco”.

            Um dos primeiros filmes nacionais a ousarem falar sobre o envolvimento de crianças e jovens no crime organizado – e isso durante a era das pornochanchadas! -, “Pixote” serviu de forte inspiração para boa parte dos filmes de crítica social que o seguiram, como o tão celebrado “Cidade de Deus”. Babenco aqui não teve nenhum medo ou pudor em mostrar a realidade cruel dessas crianças, além de fazer duras críticas a órgãos como a Febem e a polícia.
            O filme começa ao estilo de um documentário, com o próprio Héctor Babenco, em frente a uma favela de São Paulo, dando dados sobre a vida das então 28 milhões de crianças (quase um quarto da população brasileira da época) que viviam em situação abaixo das normas exigidas pelos Direitos Internacionais da Criança das Nações Unidas, 3 milhões das quais não tinham lar ou família. Por estarem abaixo da maioridade penal, estas crianças acabam sendo atraídas pelos adultos ao mundo do crime, que sabem que caso elas sejam pegas serão enviadas a um reformatório, que pode coloca-las em liberdade após alguns meses por simples falta de vagas. Babenco então nos apresenta ao ator principal do filme, Fernando Ramos da Silva, que como o diretor conta vive em uma casa na favela com sua mãe e nove irmãos; e explica que as crianças que atuam no filme pertencem à mesma classe social de seus personagens (mais ou menos, mas falo melhor sobre isso daqui a pouco).

            O filme então de fato começa, dividido em duas partes distintas, ambas focadas na vida de Pixote, o personagem-título interpretado por Fernando. Na primeira parte, Pixote, um menino de rua de apenas 10 anos, é pego em uma ronda policial e enviado à Febem. Através dele, vemos a dura vida dos garotos que são mandados para o reformatório: Onde novatos são estuprados e forçados a negociar sua segurança em troca de drogas; onde guardas sádicos não veem problema em espancar os jovens que consideram incômodos, por vezes até a morte; onde a polícia frequentemente leva alguns dos meninos para receberem “tratamento de adulto”, eventualmente matando um ou outro; onde a culpa por qualquer morte logo é jogada nos próprios jovens, em um jogo de corrupção que livra as mãos da diretoria da Febem de qualquer responsabilidade pelo que lá acontece; onde tudo é muito bem escondido para que a mídia nada tenha para denunciar; enfim, onde os únicos refúgios dos jovens estão na maconha e na cola, às quais Pixote logo é introduzido.
            Na segunda parte, Pixote e outros jovens da Febem conseguem fugir, e ele passa a viver com três amigos que lá fez: Chico (interpretado por Zenildo Santos), Dito (interpretado por Gilberto Moura) e a transexual Lilica (interpretada por Jorge Julião). Os quatro vivem como trombadinhas e, após um tempo, são contratados para venderem drogas por Cristal (interpretado por Tony Tornado), um antigo amante de Lilica. Com isso, eles vão para o Rio de Janeiro. Após algumas negociações mal sucedidas (que levam à morte de um dos integrantes do grupo), conseguem finalmente arrumar o que parece ser um bom negócio como cafetões da prostituta Sueli (interpretada por Marília Pera). Mas não demora para mais tensões surgirem.

            A forma como Hector Babenco inspirou-se diretamente no neo-realismo italiano ao dirigir e co-escrever (junto com Jorge Durán) “Pixote” já foi tão abordada por críticos e especialistas em cinema ao longo das décadas que eu fazer esta comparação não será nem um pouco original. Ainda assim, é uma comparação necessária para se entender não tanto como Babenco desenvolveu este filme (algo que também já escreveram páginas e páginas), mas principalmente o que ele queria ao fazê-lo desta forma.
            Embora o filme não seja um documentário, e embora a cena inicial dê a falsa ideia de que será ao estilo de um, “Pixote” é de um realismo que mais de uma vez revira o estômago de quem o assiste. As cenas de violência, maus-tratos e humilhações vivenciadas por Pixote e seus companheiros são de um impacto visual que possivelmente nenhuma produção hollywoodiana jamais teria coragem de alcançar, não sem dar alguma suavizada, algo que faça aquilo não parecer tão real. Não é o caso de “Pixote”: Nos piores momentos, não há trilha sonora, não há efeitos de pós-produção, e a câmera só se afasta uma vez que o público já não estiver mais suportando o que vê. Uma coisa é certa, “Pixote” não é um filme para os fracos e sensíveis! E mesmo quando não mostra nada explícito, o filme inteiro transmite uma constante sensação de angústia, principalmente devido às diferentes situações desesperadoras em que os personagens se encontram cena após cena, sem qualquer esperança de melhora. É o apelo emocional (não necessariamente negativo) que os críticos tanto gostam de chamar de “Pathos”. Mesmo as cenas mais “felizes” possuem sempre algo de “errado”, algo que não as faz parecer propriamente um alívio. Uma das cenas mais alegres, em que os jovens se divertem na praia, não deixa a angústia de lado ao mostrar uma Lilica cabisbaixa ao saber que em um mês vai fazer 18 anos, e o futuro não reserva nada de bom para uma, nas suas próprias palavras, “bicha” (tente não sentir o coração pesado quando ela em seguida canta “Força Estranha” de Caetano Veloso). Embora, como se percebe ao final do filme, o futuro não reserve nada de bom para nenhum dos meninos.

            Para reforçar esta ideia neo-realista de retratar “a vida como ela é”, sem filtros que a suavizem, há a famosa escolha de elenco de Babenco. Embora a maioria dos personagens adultos sejam interpretados por atores profissionais, os jovens são todos interpretados por crianças e adolescentes que Babenco basicamente encontrou por aí. E embora nem todos fossem, como o diretor diz na cena inicial, “crianças que pertencem a esta origem social” (Jorge Julião, por exemplo, era estudante universitário e já havia atuado em peças de teatro), o trabalho que ele faz com estes atores iniciantes é impecável, todos eles mostrando-se perfeitamente capazes de transmitir emoções e não se deixarem desaparecer diante dos adultos mais experientes, entre os quais Marília Pera se destaca e brilha como a prostituta depressiva cuja vida a deixou à beira da loucura. Ao mesmo, tempo, porém, por não serem rostos conhecidos, os jovens não tentam se destacar individualmente, agindo e falando como jovens pobres e anônimos agiriam e falariam.
            Mas a verdadeira revelação fica para o principal Fernando Ramos da Silva. Mesmo tendo apenas 12 anos, sem nenhuma experiência como ator e semianalfabeto, ele não mostra grandes problemas ao representar um simples menino cuja inocência infantil é forçadamente endurecida como pedra pela vida. Pixote mais de uma vez parece não ter muita noção em se tratando de sexo ou violência (conte quantas vezes alguém diz “ninguém te ensinou...?”), porém é obrigado a conviver com ambos o tempo todo, tornando-o um estranho “menino-homem” que chega a ser perturbador, especialmente quando Sueli entra em cena e Pixote se mostra confuso entre vê-la como uma prostituta e possível amante ou como uma figura materna, resultando no final do filme em uma cena à qual muitos provavelmente não saberão como sequer reagir. Ainda assim, sua presença é tão realista que até hoje é difícil separar o personagem Pixote do trágico destino que Fernando teve na vida real (sem se dar bem como ator, envolveu-se com a criminalidade, e morreu aos 19 anos durante um tiroteio).

            Não é apenas Pixote, porém, que se vê confuso entre o espírito de criança e a vida de adulto. Esta é uma confusão que é notada em quase todos os personagens, capazes de brincar em uma cena e logo em seguida falarem de sexo como se ambos pertencessem ao mesmo mundo. Em uma cena emblemática, os garotos da Febem brincam de tortura e assalto. A câmera move-se ao longo da cena como se tudo fosse de verdade, a ponto de, se não fosse pelo fato de as armas serem meros pedaços de madeira, seria possível se deixar enganar que é tudo verdade. E em um momento Dito, o mais velho da brincadeira, leva-a a sério demais quando Pixote diz seu nome durante o “assalto”. O único motivo por eles estarem brincando disso é porque é a única coisa que eles conhecem, e Babenco em certo momento do filme chega a mostrar o quanto que a brincadeira possui um toque de realidade.
            Ao mesmo tempo em que mostra a confusão destes jovens entre a vida de criança e a de adulto, “Pixote” também aproveita seu tempo para mostrar os laços entre os personagens, que podem ao mesmo tempo ser extremamente fortes e extremamente efêmeros. Isso é mais explorado em Lilica, capaz de chorar desesperada e causar uma revolta por seu amante morto, para assim que foge da Febem ter um caso apaixonado com Dito, e ao mesmo tempo que ama o jovem reviver sua relação com Cristal. Apesar de o tempo todo trocar de amante, porém, o filme mostra que todos eles são importantes para Lilica, que sente ciúmes de Dito quando este fica mais próximo de Sueli. Essa relação complicada se estende, de certa forma, para todos os personagens, que formam laços entre si sem que o público entenda muito bem o porque, mas enquanto estes laços duram eles são mais fortes que os de família.

            Tai laços entre os personagens mostram também um lado triste da vida dos personagens de “Pixote”: Suas relações são tão efêmeras e fortes justamente porque tudo pode acabar a qualquer momento. A ameaça de alguém ser morto ou preso está sempre presente, e isso se revela bastante na estrutura narrativa do filme, que ao invés de tentar contar uma única história com começo, meio e fim, foca-se principalmente em episódios da vida de Pixote que vão se sucedendo uns aos outros, dando a impressão de que o filme pode acabar a qualquer momento e, ao mesmo tempo, que pode se estender pra sempre. A própria Sueli, uma personagem extremamente importante, só aparece na última meia hora. E mais de uma vez personagens simplesmente desaparecem para jamais serem vistos novamente. O que pode parecer um ponto negativo, porém, não é feito sem um propósito.
            “Pixote – A Lei do Mais Fraco” foi definitivamente um filme à frente de seu tempo, porém Hector Babenco soube como transformar uma ideia ousada em um filme bem-feito, capaz de influencia até hoje a forma como cineastas brasileiros fazem filmes, ao mesmo tempo que continua nos chocando. Embora, quando se para pra pensar, o próprio fato de o cartaz do filme mostrar o personagem-título completamente nu já é um choque inicial que deixa o espectador preparado para o que está por vir.


Avaliação: Vale muito a pena.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Vale a Zoeira: Dungeons & Dragons - A Aventura Começa Agora

Faz um bom tempo que não posto um “Vale a Zoeira”! Curioso, considerando que este bloco foi uma ideia que eu queria pôr em prática desde antes de criar meu blog... Apesar de estas postagens raramente serem boas.
            Afinal, o que é que me fascina tanto em filmes ruins? Está certo que há aqueles filmes que são simplesmente chatos e sem graça, e portanto não há qualquer motivo para assisti-los; mas há também aqueles filmes tão bizarros, tão incompetentes, que não dá pra não rir ao assisti-los! É o que muitos chamam de “tão ruim que é bom”, e essa não é uma definição errônea: Ao final a ruindade do que você está vendo é tão óbvia, tão escrachada, que você acaba se divertindo, incrédulo enquanto se pergunta como é que ninguém durante a produção virou-se e disse “Sabem, talvez isso seja uma má ideia”.
            Com isso dito, vamos a “Dungeons & Dragons – A Aventura Começa Agora”.

            Sim, mais cedo ou mais tarde eu precisava trazer este filme à mesa. E o motivo é bem simples: Este é um daqueles belos exemplos de um filme que fez absolutamente tudo errado. Em 107 minutos de duração, não é possível encontrar uma única qualidade que o redima... E mesmo assim, o que “Dungeons & Dragons” faz de errado, ele faz gloriosamente errado! É como se todo mundo envolvido tivesse simplesmente chutado o balde e dito “Quer saber?! F#d@-se! Esse filme já não vai ser bom, vamos então dar ao público algo que eles jamais esquecerão!”
            Antes de falar sobre o filme em si, é preciso dizer algumas palavras sobre o RPG de tabuleiro no qual ele é baseado. Embora nunca tenha de fato o jogado, tenho pelo menos um mínimo de noção sobre o jogo, então, para aqueles que não sabem do que estou falando, eis um resumo: Dungeons & Dragons é um dos jogos mais populares e influentes de todos os tempos. Basicamente, há um mundo de fantasia com algumas regras e conceitos pré-estabelecidos, e a partir disso um grupo de jogadores joga uma campanha, o que basicamente quer dizer que cada um cria um personagem e eles inventam juntos uma aventura, com possibilidades quase ilimitadas, e quase sempre dependendo da colaboração entre os jogadores para que eles sejam bem-sucedidos. Porém, como eu disse, nunca de fato joguei o jogo, então tentarei não me meter aonde não fui chamado e manter as comparações dentro do mínimo ao longo desta crítica.

            O filme consegue o feito de já começar ruim com uma narração explicando que a história se passa no império de Izmir, onde os magos formam a elite governante, e todos aqueles que não sabem usar magia são pouco mais que escravos. Escrevendo assim, não parece haver muito problema... Até você perceber que todas as informações dadas nessa narração inicial poderiam facilmente ser deduzidas ao longo do filme por um espectador minimamente inteligente. Ela até chega a explicar que magos são usuários de magia, como se isso não fosse óbvio! Além disso, considerando que o filme é “diretamente baseado” (com aspas bem grandes) no jogo, está querendo mesmo me dizer que alguém começaria uma campanha como “pouco mais que escravo”?
            Mas que seja, uma vez terminada esta narração, chegamos ao ponto máximo do filme, aquilo que uma vez visto jamais será esquecido... Senhoras e senhores, eu lhes apresento... Jeremy Irons, interpretando o vilão Profion!!!!

            Simplesmente não há palavras que descrevam sua atuação neste filme. Mas como este blog se baseia inteiramente em palavras, terei que ser criativo... Hum... Sabe aquela festa em que você sabe que vai perder a dignidade, mas vai mesmo assim simplesmente porque quer perde-la? Essa é a atuação de Jeremy Irons neste filme! É como se ao oferecerem o papel pra ele, ele tivesse simplesmente dito pra si mesmo “Quer saber? Eu mereço umas férias! Não preciso fazer filmes bons o tempo todo, preciso? Já ganhei meu Oscar, não ficarei desempregado por isso. Mas já que vou fazer um filme m&rd@, vou garantir que eu me divirta nele!”.
            Se quiserem saber minha sincera opinião, vale a pena assistir “Dungeons & Dragons” apenas pela atuação absolutamente enlouquecida de Irons. É um dos espetáculos mais bizarros já vistos em um filme, e dá até pra ver os outros atores que contracenam com ele fazendo biquinho pra controlar o riso em alguns momentos! Há tantas cenas que eu gostaria de lhes mostrar como exemplo, e é até possível encontrar por aí uma coletânea de melhores momentos de Jeremy Irons em “Dungeons & Dragons” se pesquisarem, mas para dar uma amostra do que esperar, eis o link para uma cena no YouTube:
            Agora imaginem ele atuando desse mesmo jeito durante o filme inteiro, ao mesmo tempo em que faz expressões como

E

E minha favorita

            Ah, aliás, estão vendo este cara careca ao lado de Irons (ou, melhor dizendo, Profion) na última imagem? Bom, este é outro ponto alto do filme: Damodar, o braço direito de Profion, interpretado por Bruce Payne. E não, vocês não estão ficando daltônicos: Ele de fato passa o filme inteiro com batom azul na boca.
            Eu... Realmente não entendo o motivo pra isso. Até onde eu sei, o jogo de Dungeons & Dragons não tem nenhuma raça que seja igual aos humanos exceto pelos lábios azuis, e se ao menos ele tivesse algo mais que chamasse a atenção talvez não ficássemos tão distraídos por isso. Mas não: Ele é apenas um cara normal que comeu tortas de smurfs demais.

            Mas batom azul à parte, Bruce Payne é outro além de Jeremy Irons que parece ter perfeita noção do filme ridículo em que se meteu. Em determinado momento de “Dungeons & Dragons”, Damodar falha em uma missão e Profion, para ensinar-lhe uma lição, coloca dois vermes mágicos em sua cabeça, que se mexem dentro dela causando-lhe muita dor... Porém apenas imaginem a expressão de “dor” que Payne faz durante essa cena sem os vermes computadorizados adicionados na pós-produção e tentem, apenas tentem não rir. Aliás, qualquer cena envolvendo estes vermes fica um tanto engraçada se tirar os efeitos computadorizados, mesmo uma envolvendo uma tortura!
            Quanto ao enredo, Profion, com a ajuda de Damodar, deseja destronar a jovem imperatriz de Izmir (aparentemente porque ela quer fazer certas reformas sociais que tiram os privilégios dos magos, mas honestamente, quem se importa?). Para isso, ele quer um cetro capaz de controlar dragões.
            E como os dragões do filme se parecem?

            Com designs extremamente genéricos e feitos com algumas das piores imagens computadorizadas que já vi. Ok, está certo, “Dungeons & Dragons” foi lançado em 2000, não dá pra esperar a mesma qualidade gráfica que deu vida a Rocket Raccoon; mas isso só quer dizer que o filme, que foi distribuído pela New Line Cinema, foi lançado apenas um ano antes da mesma companhia lançar “O Senhor dos Aneis”. Então não há desculpa para efeitos especiais tão ruins!
            Ah, e o sangue dos dragões aparentemente faz a água pegar fogo. Apenas aceitem, dói menos...
            Enfim, Profion quer mais especificamente um cetro capaz de controlar dragões vermelhos. Este cetro secreto está escondido em uma masmorra secreta, que por sua vez só pode ser aberta com um rubi secreto, cuja função só é revelada caso se decifre um pergaminho secreto (aja segredos!)...  E no meio disso tudo somos apresentados através de uma série de acasos aos heróis do filme... Ou como você queira chama-los, porque a maior parte do tempo eles são completamente inúteis. Vamos começar pelo que é de longe o mais irritante deles: O ladrão Snails, interpretado por Marlon Wayans.

            Quem? Apenas... Quem que teve a ideia de contratar Marlon Wayans em um filme de “Dungeons & Dragons”?! Quer contratar um dos Wayans? Tudo bem! Contrate Damon então, ele seria uma escolha mais apropriada, possivelmente! Mas Marlon... A pura presença dele neste filme soa errada. Apenas veja-o em “Dungeons & Dragons” e tente não se lembrar de Jar Jar Binks em “A Ameaça Fantasma”. Sim, é nesse nível de errada sua presença! E, como se não bastasse, ela é completamente desnecessária. As únicas coisas que ele faz são despreocupadamente dar em cima de uma elfa enquanto seus companheiros estão presos dentro do pergaminho secreto (grande amigo...); ficar preso em um tapete movediço (sim, aparentemente o filme tem isso); e se sacrificar (ops, spoilers! Embora honestamente, quem se importa?) para devolver a seus companheiros aquele mesmo pergaminho, sacrifício que, parando pra pensar, é totalmente inútil, pois neste ponto do filme eles já o decifraram!
            Uma vez falado sobre ele, falemos sobre outro personagem: O anão, interpretado por Lee Arenberg.

            Chamo-o apenas de anão porque é assim que o chamam durante o filme inteiro, apesar de os créditos especificarem seu nome. A única coisa que ele faz de útil é começar uma briga de bar, ou, melhor dizendo, de taberna (porque afinal este filme tem que ter uma taberna). E para um anão, ele nem é particularmente baixo.
            Depois do anão, temos a maga Marina, interpretada por Zoe McLellan.

            Eh, nada que valha a pena ser destacado. Próximo!
            Ah, sim, o próximo... Profion e Damodar podem ser ridículos, e Snails pode ser irritante, mas este personagem é o que por mim merece o prêmio de escolha mais estúpida feita em “Dungeons & Dragons”: O protagonista do filme, Ridley, ladrão e melhor amigo de Snails, interpretado por Justin Whalin.

            Por que digo que ele é uma escolha estúpida? Porque os criadores do filme devem ter feito muita, mas muita musculação pra conseguirem forçar o protagonismo de Ridley do jeito que forçam! O filme inteiro este personagem é colocado como o herói escolhido salvador do mundo, porém ao mesmo tempo não nos é dada nenhuma explicação ou motivo para isso! Simplesmente... Ele é! Como é que um ladrão que nunca aprendeu magia decifra em segundos um pergaminho que magos vem tentando decifrar a anos? Ah, magos são tão idiotas! Por que ninguém ajuda a ele e Snails quando eles invadem um castelo pra pegar o pergaminho de volta? Ah, essa missão eles devem completar sozinhos! Ridley entra em uma masmorra e de repente uma parede mágica impede seus companheiros de entrarem juntos? Ah, apenas ele deve passar! Como que ele deve quebrar o feitiço do cetro que controla dragões vermelhos? Ah, isso ele que tem que descobrir por conta própria! ALGUÉM ME EXPLICA POR QUE DEVO ACHAR ESTE PERSONAGEM TÃO ESPECIAL?!?!?!?!
            Mas sabem o que é pior neste tratamento especial que o filme dá a Ridley? É que ele vai totalmente contra os princípios do jogo. Mesmo conhecendo-o apenas pelo que me contaram a respeito, uma coisa pude notar: Dungeons & Dragons é um jogo que só é bem jogado quando todos os jogadores se ajudam entre si, cada um exercendo um papel essencial para o progresso da campanha. É por isso que ele continua imensamente popular até hoje, formando inúmeros laços de amizade e companheirismo. E o que o filme de “Dungeons & Dragons” faz? Bota um único personagem para ser o salvador da pátria, tornando todos os outros heróis praticamente inúteis e rebaixados durante a maior parte do tempo apenas à função de apoio moral! Não é a toa que fãs do jogo mesmo tantos anos depois continuam odiando este filme, é como se este estivesse propositalmente tentando enfurece-los!

            Mas afinal, mesmo que você não tenha a mínima noção da existência do jogo, vale a pena assistir um filme ruim assim? Bom... Totalmente! “Dungeons & Dragons” é um legítimo exercício sobre como NÃO fazer um filme de fantasia e, no geral, como não fazer um filme, ponto. Alguns de seus problemas beiram à legítima incompetência, como uma cena em que Marina tenta pegar o pergaminho do chão e Damodar a impede pisando ao lado do pergaminho (por acaso a bateria da câmera acabou pra não poderem refilmar a cena de forma a Damodar pisar em cima?!). E isso sem falar em todos os inúmeros problemas que podem ser encontrados minuto por minuto no roteiro, cheio de clichês pelo simples motivo de que alguém achou que eles deviam ser incluídos no filme, não importa se não há explicação para a presença deles, ou se o contexto lhes tira qualquer sentido: Em um dado momento, Damodar faz os companheiros de Ridley de reféns, propondo poupá-los em troca do cetro, porém logo após a troca ser feita os heróis facilmente se libertam por conta própria. Alguém me explica por que não fizeram isso antes?!
            Ainda assim, esses detalhes que poderiam facilmente irritar quem os assiste acabam aqui se tornando surpreendentemente hilários pelo quanto que o filme não tenta fazer segredo deles. Pelo contrário, mostra seus erros e problemas em toda a sua glória! Se duvidarem, assistam o trailer, está tudo lá: Péssimos efeitos especiais, péssimas atuações, péssimos figurinos, péssima comédia, péssimos diálogos... O trailer até mostra com certo orgulho Jeremy Irons gritando por aí, como se dissesse “Sim, é isso que temos a oferecer! Vai encarar?!”. O filme tem noção do quão ruim que é, e por isso decide fazer seu trabalho malfeito da forma mais exagerada possível, chegando por vezes a parecer um desenho animado ruim de tanto que se nega a usar qualquer coisa que possa parecer inteligente. Tudo, do enredo às atuações, possui um tom tão ridículo e estúpido que não dá pra não dar umas boas gargalhadas. Se você e seus amigos são fãs de assistirem e rirem juntos de um bom besteirol, de filmes “tão ruins que são bons”, este é um que definitivamente irá diverti-los.


Avaliação: Vale a zoeira

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Close-Up

            Como é que em todos esses anos de cinéfilo nunca assisti um único filme do recém-falecido cineasta iraniano Abbas Kiarostami?!

            Quero dizer, está certo que também não assisti tantos filmes iranianos assim, logo eu não teria muito como conhecer a obra dele, mas quando vi na capa do Estadão uma chamada com uma foto enorme de Kiarostami avisando sobre o falecimento dele, tive que saciar minha curiosidade. E aparentemente ele não apenas é considerado um dos maiores diretores iranianos de todos os tempos, como foi um verdadeiro figurão no mundo do cinema cult! 23 longas-metragens, 15 curtas, vencedor de uma Palma de Ouro em Cannes e indicado mais de uma vez ao Leão de Ouro em Veneza, diversos de seus filmes em listas de “melhores filmes de todos os tempos”... Como é que deixei ele passar batido por tanto tempo?!
            Mas, a vantagem de ser um cinéfilo curioso é que sempre é possível se redimir dessas coisas. E para isso, acabei por escolher como filme da vez um de seus primeiros longas-metragens a terem certo reconhecimento no ocidente: “Close-Up”, de 1990.

            Para descrever o enredo deste filme, é preciso também descrever um pouco o estilo de Kiarostami (ou, pelo menos, o que li a respeito em minhas pesquisas).
            Em primeiro lugar, mesmo quando não dirigia documentários, seus filmes eram muitas vezes feitos ao mesmo estilo de um. Em “Close-Up”, porém, ele leva isso a outro nível ao transformar a própria realidade em um filme de ficção, com o filme girando em torno do caso real de Hossain Sabzian, um homem pobre e divorciado que foi preso por fraude e tentativa de estelionato após fingir para uma família, os Ahankhah, que era o diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf, cujos filmes eram bastante apreciados no Irã, e a partir disso convencê-los que queria estrela-los em seu novo filme.

            Até aí, nada demais, centenas de filmes já foram feitos em cima de histórias reais. Mas eis a reviravolta que “Close-Up” faz: Não só a história é real, mas também Kiarostami conseguiu convencer todos os envolvidos no caso (Sabzian, os Ahankhah, o repórter que confirmou que o homem não era Makhmalbaf, enfim, todo mundo) a reencenar os momentos importantes, como a prisão de Sabzian e o momento em que este primeiro entrou na vida da família. Não são atores, nem apenas meros relatos: São as pessoas sobre as quais a história se trata voltando atrás para nos mostrar o que elas passaram. Não só isso, como também quando Kiarostami soube do caso, Sabzian estava ainda aguardando seu julgamento, então o diretor conseguiu permissão para filmar o processo. Ou seja, tudo no filme é real... Mas não necessariamente é. O filme não chega a ser um documentário, mas também é difícil dizer aonde que começa a ficção. Afinal, o filme é baseado em interpretações e reencenações, ou seja, não necessariamente o que vemos ou ouvimos é o que de fato aconteceu.
            Eis aí um grande tema do filme: A natureza da verdade. Afinal, o quanto do que é reencenado de fato aconteceu como é visto no filme? Não necessariamente eles terão dito ou feito as mesmas coisas da mesma forma. E mesmo em cenas como, por exemplo, o encontro de Sabzian com Kiarostami, ou quando o diretor pede para o juiz mudar a data do julgamento, é difícil dizer se são “verídicas” ou reencenações.
Em alguns momentos o filme propositalmente testa a capacidade do público de crer no que está vendo, o maior exemplo sendo a sequência inicial, na qual durante quinze minutos o filme se foca não em Sabzian ou nos Ahankhah, mas sim em personagens absolutamente secundários: O repórter, os dois policiais que prenderam Sabzian e o taxista que levou os três até a casa dos Ahankhah. Em um momento durante esta sequência, o taxista, se vendo sozinho, aproxima-se de uma pilha de folhas e tira de lá algumas flores, formando um buquê. Revirando mais, encontra uma lata de spray, que joga na rua, e a câmera acompanha enquanto ela lentamente desce uma ladeira. É uma cena de tal teor poético que não há como não partir do princípio de que é fictícia, de que não aconteceu assim.
            Será? Não será? Kiarostami constantemente brinca com isso ao longo do filme.

            Mas esta brincadeira, no final das contas, não é fora de propósito. O filme gira em torno do julgamento de Sabzian, cujo rosto a câmera devora em um close-up (daí o nome do filme) que, entre um corte e outro, dura quase metade do filme, pegando cada detalhe de seu rosto (e, eventualmente, o dos outros envolvidos no caso), cada fala sua, como se Kiarostami quisesse usar sua câmera para entrar na alma deste homem.
 Tal proximidade intimista faz o público se perguntar quem afinal Sabzian é e, como o juiz constantemente pergunta, porque ele resolveu fingir que era Mohsen Makhmalbaf: Afinal, ele é um picareta que contou essa mentira apenas para tentar rouba-los, como primeiro se suspeitou? Ele é um louco? Ou, como o próprio Sabzian justifica, é apenas um homem pobre e solitário que, tendo sempre sido fascinado pelo cinema, ressentido de não poder se dedicar à arte por ser pobre demais, e se identificando com os filmes de Makhmalbaf (que possuem fortes críticas sociais como temas centrais), ao dizer ser o diretor que tanto admira, consegue em parte realizar seu grande sonho (ou pelo menos fingir para si mesmo que realiza)? Em um dado momento, o mais novo dos Ahankhah diz ao ser perguntado pelo juiz se perdoa Sabzian: “Se ele tivesse mostrado alguma honestidade não haveria inconveniente. Mas ao escutá-lo, me deu a impressão de que ele ainda está interpretando um papel, mesmo que seja um minimamente diferente”. É essa a dúvida que em nós, como público, fica.

            Como se não bastasse esse comentário filosófico a respeito da natureza da verdade, “Close-Up” está cheio de breves comentários e críticas à situação econômica e social do Irã. Logo a sequência inicial, mais uma vez, não é ao acaso, mostrando os dois policiais indo prender Sabzian de táxi, o que faz o taxista perguntar a eles se a polícia não tem seus próprios veículos; e, mais tarde, vemos o repórter batendo de porta em porta desesperado em busca de um gravador, sem conseguir achar ninguém que tenha um, apesar de estar em uma boa vizinhança de Teerã. Como se não bastasse, quando o próprio Kiarostami enfim aparece em cena (apropriadamente de costas) e começa a se envolver no caso, vemos que ninguém sequer contou para Sabzian quando será seu julgamento, que poderá demorar ainda um bom tempo já que os juízes pouco se importam com crimes pequenos como tentativa de estelionato. Sem falar que o julgamento de Sabzian frequentemente bate no ponto de que ele é apenas um pobre empregado ocasional em uma gráfica, o que não apenas foi a causa de seu divórcio, mas o faz se sentir extremamente impotente e incapaz de realizar seus sonhos (“Um diretor não pode ser pobre. Deve ter dinheiro. Não pode ser tão pobre que não pode comprar um agrado para seu filho”).
            Nisso, a história real de Sabzian acaba por se encaixar em uma segunda característica importante não apenas do cinema de Abbas Kiarostami, mas de todo o movimento da Nova Onda Iraniana do qual ele fez parte: O uso de histórias como alegorias para problemas filosóficos (a questão da identidade humana e o conceito de realidade) e sociais (as difíceis condições de vida das pessoas mais pobres e o que alguém é capaz de fazer para se sentir respeitado). Mesmo que a alegoria, neste caso, seja uma história real. Há também, no caso particular deste filme, certo questionamento metalinguístico sobre a própria natureza do cinema, o que faz ou não dele um retrato da realidade, e qual é afinal o papel da arte na vida das pessoas, considerando que Sabzian constantemente repete que assiste os filmes de Makhmalbaf, especialmente o então mais recente do diretor, “O Ciclista” (sobre um refugiado afegão que anda de bicicleta sem parar por sete dias para conseguir dinheiro e pagar a cirurgia de sua esposa), e se identifica com o sofrimento dos protagonistas.

            Há outros elementos aparentemente típicos de Kiarostami que são possíveis de serem notados, como a conversa inicial entre o repórter, o taxista e os soldados, que acontece inteiramente dentro de um carro com uma câmera fixa instalada ao lado do painel; e diálogos de certo teor poético, como quando Sabzian diz que lamenta o que fez e não se arrepende de sua estadia na prisão, pois “a prisão é boa para os bons, e má para os maus. Ensina aos bons uma lição, mas se põe difícil para os maus”.
            Está certo que “Close-Up” não é exatamente um filme perfeito. E o problema principal é, infelizmente, um que era quase inevitável para Kiarostami dar maior realismo ao filme: Ao decidir filmar os acontecimentos descritos no filme enquanto estes ainda aconteciam, o diretor acaba não dando a devida profundidade a seus personagens. Queremos saber mais sobre Sabzian, que é um personagem bastante interessante de ser estudado, porém tal estudo acaba se resumindo apenas aos pontos colocados em pauta durante o julgamento, e ao final a impressão é de que ainda há muito que se conhecer a seu respeito, que Kiarostami escolheu não mostrar para se focar nos temas que o levaram a se envolver no caso em primeiro lugar.

            Mas, mais uma vez, fica a dúvida quanto a se Kiarostami tinha ou não noção disso e resolver manter esse problema de propósito. Afinal, um filme jamais será capaz de abordar toda a realidade de um fato em toda a sua profundidade, e Abbas Kiarostami, de uma forma bastante curiosa, propositalmente mantém certas falhas técnicas em “Close-Up” para mostrar que, no frigir dos ovos, isto é um filme: Seja em certos cortes de edição óbvios demais para não serem notados; seja na pobre qualidade da imagem durante o julgamento; seja, no que é possivelmente a cena mais famosa do filme, a sequência final envolvendo o Mohsen Makhmalbaf de verdade, em que o áudio constantemente cai e a cena fica muda (então não achem que há algo de errado com sua TV quando forem assistir o filme), mais uma vez deixando a dúvida quanto a se essa falha é real ou não, se é proposital ou não, mais uma pulga que Abbas Kiarostami discretamente coloca atrás da nossa orelha.


Avaliação: Vale a pena.