domingo, 27 de março de 2016

A Liberdade é Azul

            Ok, antes que falem qualquer coisa, irei direto ao ponto: Eu sei que vou me arrepender dessa crítica. Não estou dizendo isso achando que vão falar mal do jeito como a escrevi. Como se alguém se importasse de verdade com essa palhaçada toda, essa mistura de ideias já previamente escritas e nada originais apenas compiladas e escritas por um jovem inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico, que escreve sobre filmes velhos e já muito criticados porque tem medo de escrever sobre algo novo e dizer bobagem. Mas não é por isso que digo que sei (em itálico) que vou me arrepender dessa crítica. Eu digo que sei que vou me arrepender dessa crítica porque é um fato que pura e simplesmente não tenho como fazer uma boa crítica desse filme e dos que o seguem na trilogia que ele compõe. Como eu disse, sou um jovem inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico, que acha que na flor de seus 20 anos tem o “dever” de falar de um filme tão recheado de simbolismos e referências clássicas que só entenderei em toda sua complexidade provavelmente aos 40, e olhe lá! Ei, é provável que no meio do processo de escrever essa crítica eu entre em desespero e pesquise na internet o que é possível falar sobre esse filme! Ei, é ainda mais provável que eu tenha já feito isso antes mesmo de escrever esse parágrafo!
            Então, sem mais delongas, vamos mostrar uma imagem do cartaz de “A Liberdade é Azul” antes de escrever esse fiasco que chamo de crítica. Mas só amanhã, porque já é meia-noite e estou com sono. Já vi que será mais um domingo que passarei o dia inteiro trancado em meu quarto escrevendo e xingando mentalmente qualquer um que ouse cometer o crime de me chamar para almoçar. Ai, ai...

            Pronto, são 11 da manhã, o que quer dizer que provavelmente essa crítica irá sair lá por umas 9 da noite. Não que eu fique pensando e relendo e reescrevendo minhas críticas até achar que elas estão perfeitas. Quase nunca reescrevo minhas críticas. Demoro todo esse tempo porque passo horas apenas olhando para a tela do computador, dando uma pesquisada nas imagens do filme disponíveis no google, ouvindo música, de vez em quando dando uma stalkeada em alguém no facebook, enfim, procrastinando eternamente. Mas não ouse falar comigo. Direi que estou muito ocupado com minhas coisas e que não quero ninguém me interrompendo, sequer para comer. Nessas horas, eu quero apenas que o mundo desapareça e só exista eu, eu e essa crítica que eu escrevo.
            Enfim, “A Liberdade é Azul” é o primeiro filme da chamada “Trilogia das Cores”, do diretor polonês Krzysztof Kieslowski (embora o filme todo tenha sido filmado na França), três filmes com histórias separadas cujos temas giram em torno do lema nacional francês (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, para quem ainda não sabe). Ao invés de terem um sentido político, porém, nessa trilogia essas palavras são tratadas em seu sentido pessoal, íntimo. Assim, a liberdade que “A Liberdade é Azul” aborda é a liberdade de se isolar do resto da humanidade, de não fazer absolutamente nada por ninguém, de não ter passado, futuro, sequer presente.

            O filme conta a história de Julie (interpretada ninguém menos que Juliette Binoche, uma das maiores atrizes francesas vivas). Logo no começo do filme, durante uma viagem, sua família sofre um acidente de carro, no qual morrem seu marido, um famoso compositor que escrevia uma música em comemoração à unificação da Europa (o filme foi filmado em 1992, um ano após o fim da União Soviética), e sua filha de cinco anos (ou sete? Não consigo me lembrar agora e não sei francês para saber se a legenda estava correta). Julie até tenta cometer suicídio ao receber a notícia no hospital, mas não consegue engolir a overdose de pílulas. Mesmo assim, Julie está disposta a se desligar do resto do mundo, quase uma espécie de “suicídio em vida”, por assim dizer: Vende quase todos os pertences de sua casa, destrói as partituras da música inacabada de seu marido (que o filme sugere aqui e ali que foi ela que escreveu), e passa a morar sozinha em um apartamento em Paris sob seu sobrenome de solteira, evitando contato com todos os seus conhecidos e mantendo uma filosofia rígida de não se envolver em problemas alheios.
            Mas eis que esse plano de Julie vai dando cada vez mais errado, à medida que tudo vai forçando-a a aos poucos a se reconectar com o resto do mundo: Ao não assinar um abaixo-assinado para expulsar uma moradora do prédio que trabalha como prostituta, seguindo sua filosofia, ela acaba assim salvando a mulher, que passa a se sentir endividada com Julie; um jovem que presenciou o acidente que matou seu marido e filha finalmente a encontra para devolver-lhe um colar com uma cruz; uma infestação de ratos em seu apartamento a força a pedir emprestado o gato de seu agente imobiliário; e vários outros golpes que o destino lhe oferece para mostrar que não é tão fácil assim se livrar de tudo e viver em total isolamento, que é preciso “se segurar a algo”, como um personagem lhe diz em uma cena.

            Caso você não tenha ainda assistido esse filme, já vou avisando: Não espere dele muita ação ou sequer muita fala. A direção de Kieslowski é parada até mesmo para os padrões de cinema europeu. A impressão que dá à primeira vista é que cenas inteiras poderiam ser descritas em uma frase ou duas.
            Ou será que não?

            A palavra que melhor define “A Liberdade é Azul” é intimista: Por mais que pouca coisa aconteça no exterior, um verdadeiro turbilhão está acontecendo na mente de Julie, em sua luta por se ver livre de tudo e todos e, ao mesmo tempo, não ser capaz de cortar totalmente seus laços. Percebe-se isso em cada cena em que ela aparece. Mais do que percebe-se: Sente-se. Cada olhar de Julie, cada gesto de Julie, somos transportados para dentro de sua mente, dando a impressão de que não se está assistindo um filme, mas sim lendo um livro com páginas e páginas de monólogos interiores, flashbacks e descrições de objetos e o que eles significam para a personagem. O filme, porém, continua sendo um filme: Não há páginas em um filme. E, embora um filme possa ter um(a) narrador(a), esse não é o caso em “A Liberdade é Azul”. Todas essas páginas e páginas de monólogos interiores, flashbacks e descrições de objetos e o que eles significam para a personagem são apresentadas “apenas” como imagem e som. Se há um filme que prova o ditado popular “uma imagem vale mais que mil palavras”, é esse.
            E, sendo um filme, Kieslowski não seria capaz de se aprofundar na mente de sua personagem sem alguém que a atuasse bem o suficiente para expressar páginas e páginas de monólogos interiores, flashbacks etc. etc. em um único gesto. E Juliette Binoche merece todos os Globos de Ouro, Césars e Volpis (prêmio do Festival de Veneza) que recebeu por sua atuação nesse filme. Com pouquíssimas falas, sua atuação é principalmente física. E que desafio ela tinha em mãos para desenvolver de forma quase exclusivamente física! Julie é uma personagem que sofre de uma constante luta interna ao longo do filme, pois ao mesmo tempo que reprime suas emoções a todo e qualquer custo estas não deixam de estar lá, prontas para se jogarem para fora a qualquer momento. Sendo assim, Juliette Binoche está em uma constante divergência expressiva: Olhando seu rosto, seus olhos, ela está quase sempre com a mesma, perdoem-me a palavra, “cara de b#st@”, com o olhar distante, muitas vezes cabisbaixo, como se sua mente estivesse em qualquer outra dimensão (uma bem deprimente, aliás) que não essa, e como se qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que a perturbe desse estado quase vegetativo que ela tanto quer alcançar fosse um incômodo.

            Seus gestos, porém, estão constantemente traindo Julie. Se ela se esforça para manter uma eterna expressão neutra, a forma como ela se mexe, a forma como ela segura um objeto, anda, come, tudo mostra um turbilhão emocional que está acontecendo dentro dela, e que ela procura reprimir. Cada movimento é uma página desse enorme e profundo livro que é “A Liberdade é Azul”.
            Nisso, temos o que é provavelmente uma das minhas cenas favoritas, quando Julie tira tudo de dentro de sua bolsa e encontra entre as coisas uma espécie de doce azul, que ela procede em desembrulhar e comer. Já é a quarta vez que assisto esse filme, e toda vez me impressiono com essa cena. Se Binoche fosse uma atriz apenas 1% menos genial do que é, essa cena não funcionaria. Notem a forma como as mãos dela param ao ver o doce e, principalmente, a forma como ela o come. Não, comer não é o verbo certo: destruir com os dentes é mais apropriado. Mal vemos ela engolir o doce, apenas ouvimos o incessantes crac, crac, crac dele sendo quebrado dentro de sua boca.
            Estou com fome. Terei que ir em algum restaurante com meu pai. Pelo menos uma hora ou duas sem escrever. Mas por que agora não me sinto mais tão incomodado com isso quanto de manhã?
            De fato são 5 da tarde e só agora voltei a escrever. Mas qualquer chance de essa crítica seguir boa e consistente foi destruída. Estou alegre, acabei de assistir um vídeo no Youtube que me fez rir até a barriga doer. Era para eu estar triste, sério, para que eu pudesse fazer um paralelo entre o filme e meu estado emocional! Por que nem isso eu consigo?!
Mas enfim, voltando para a cena do doce. Notem o olhar de Binoche, distante, e ao mesmo tempo a forma como o queixo dela chega a tremer enquanto come, como quando estamos com muita, muita raiva, prontos para gritar. E a forma como chega a bufar enquanto morde o doce (algo parecido com um pirulito) até o cabo, que ela procede em jogar na lareira. A cena dura um minuto e não tem qualquer música, mas ao vê-la passa na cabeça toda a história do doce: Que ela o comprara no começo da viagem, como prêmio para a filha caso ela se comportasse, embora planejava dá-lo de qualquer jeito, pois não tinha dúvidas do bom comportamento da filha durante as longas horas no carro, que quando ela primeiro põe o doce na boca ela não o morde pois nunca o comeu, embora a filha gostasse, e queria saber qual era afinal o gosto... E nada disso é dito ou mostrado em cena! São meras suposições, histórias que são possíveis de se desenvolver na cabeça do público.
Esse é o tal efeito de livro de “A Liberdade é Azul”: Por justamente ter um ritmo tão lento e quieto, abre-se espaço para o público imaginar uma narração na cabeça e inventar suas próprias histórias de fundo que não são contadas no filme. Eu, por exemplo, imaginei essa porque foi o que veio à minha cabeça quando a vi. Mas outros podem “inventar” outras histórias. Alguém pode imaginar, enquanto Julie vê uma imagem de seu marido, que ele era o professor de música dela, que ele dizia que ela era sua aluna mais talentosa, que se casaram apenas um ano após se conhecerem... As possibilidades são ilimitadas, mas nada disso é mera viagem: É “real”, pois o filme propositalmente abre espaço para isso.
Querem ver? Peguem a cena em que Julie entra no “Quarto Azul”, já vazio e livre de qualquer mobília, e imaginem o que havia nesse quarto. Mas não apenas imaginem: narrem. Vão assistindo o filme e, ao chegarem nessa cena, comecem: “Julie entrou no Quarto Azul. De fato, como havia pedido, tudo já havia sido tirado lá de dentro, só restando a lâmpada no teto, com suas continhas de vidro azul penduradas. Veio-lhe à memória o dia em que ela e seu marido mandaram pintar aquele quarto...”. E veja a magia acontecer.

            Mas “A Liberdade é Azul” não é só feito de momentos silenciosos que abrem espaço para a reflexão do público. Há também trilha sonora, composta por Zbigniew Preisner. O interessante, porém, não é a trilha sonora em si, mas como ela se torna ao longo do filme praticamente uma personagem em si, participando de fato do filme, não sendo apenas um som de fundo. Isso porque a trilha sonora que ouvimos, dentro do universo do filme, existe de verdade, sendo a música que o marido de Julie compôs para comemorar a unificação da Europa. Sendo assim, ela aparece em momentos bastante específicos do filme, e nunca sem importância para o desenvolvimento da história e, principalmente, de Julie. Sempre que ela se vê sozinha com seus pensamentos, a música aparece, literalmente iluminando a tela em tons de azul. Quando alguém lhe faz uma pergunta que a incomoda e a força a sair de seu estado de letargia, a tela fica preta e um trecho específico é tocado antes de o filme seguir em frente. Há ainda uma das cenas mais musicalmente interessantes do filme, em que Julie e o colaborador e amigo de seu falecido amigo discutem um trecho da partitura e qual seria a melhor maneira de continua-lo: Quando alguém cita os violinos, estes tocam seguindo a partitura que aparece na tela; quando na partitura a percussão é incluída, esta começa a tocar; se alguém fala que percussão não ficaria boa neste trecho, esta se silencia, e a música retoma do mesmo ponto, mas sem ela; e assim vai.
            Ao final, na última cena, a música é tocada em sua integridade, com um coral cantando em grego. A letra, um trecho bíblico, pode ser encontrada na internet; mas não farei uma interpretação dela aqui, não apenas porque essa crítica já está na marca dos 13 mil caracteres mas também porque os níveis de interpretação dela dentro do contexto do filme são vários, que minha cabecinha de jovem inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico apenas começa a entender. Mas deixo aqui a sugestão para vocês a pesquisarem após assistirem o filme e encontrarem seus próprios sentidos para ela. Afinal, como já visto antes, como um bom filme intimista, “A Liberdade é Azul” o tempo todo abre espaço para o público fazer suas próprias interpretações, de acordo com seu próprio contexto emocional e de história de vida. Se é possível narrar histórias inteiras em cima de cenas de poucos minutos de duração, o mesmo poder pode ser encontrado na trilha sonora. Porque afinal, mais do que um filme intimista, “A Liberdade é Azul” é um filme íntimo. Discutindo-o com a pessoa que o assistiu ao seu lado, você verá que ao final vocês estarão falando mais de si mesmos e do que vocês sentem e pensam do que do que de qualquer coisa que o filme de fato mostra.


Avaliação: Vale muito a pena.

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