sábado, 12 de março de 2016

Rocky - Um Lutador

Há não muito tempo atrás, um colega meu se mostrou bastante intrigado quando eu lhe disse que nunca havia assistido nenhum dos filmes da franquia “Rocky”. “Como assim?!”, ele disse, “Você não gosta de cinema?!”.
Pois é, por mais que muitos tenham certo preconceito, quarenta anos depois de seu lançamento não dá mais para negar que “Rocky - Um Lutador” é um clássico do cinema. Mas tenho que admitir que eu próprio, quando resolvi assistir enfim o filme, fiquei em dúvida se eu teria algo para falar sobre ele. Quero dizer, está bem, ganhou o Oscar de Melhor Filme na época, mas será que não foi uma empolgação exagerada? Será que o legado todo do filme não o tornou maior do que realmente é?
Aí assisti “Rocky”. E como sinto muito por algum dia duvidar da qualidade desse filme!

            A história, a essa altura, todos já conhecem: Rocky, um boxeador talentoso, porém fracassado em tudo o mais (interpretado por Sylvester Stallone, caso seja necessário citar), consegue a uma e única chance de sua vida quando o campeão mundial de boxe, Apollo Creed (interpretado por Carl Weathers), em uma jogada de marketing, resolve colocar seu título à prova contra um lutador desconhecido, escolhendo Rocky por critérios quase aleatórios.
            Resumir o filme todo a isso, porém, é desmerecê-lo completamente.

                Por que digo que é um desmerecimento? Porque chega a beirar ao ridículo chamar “Rocky” de “apenas um filme de boxe” considerando que há apenas duas lutas no filme inteiro, e elas ocupam apenas 10% de suas duas horas de duração. Ao invés disso, temos um dos mais simples e, talvez justamente por isso, marcantes dramas do cinema americano.
            Sim, “Rocky” é um drama. Não um filme de ação, como você muitas vezes vê sendo classificado por aí. Vamos analisar o porquê.

            Quando o filme começa, Rocky é um zé-ninguém, vivendo em um apartamento fedido, bagunçado e decrépito em um bairro pobre de Philadelphia. Apesar de ter potencial para ser um bom boxeador, desperdiça isso trabalhando como “quebrador de ossos” para um agiota local (interpretado por Joe Spinell), o que enfurece seu treinador, Mickey (interpretado por Burgess Meredith), que chega a lhe tirar seu armário na academia para favorecer outro boxeador mais dedicado. Desprezado por quase todo mundo, sendo chamado na rua de “bum” (algo como “vagabundo” em inglês), Rocky finge que não se importa com essa reputação, embora percebe-se que de tanto ouvir isso ele chega a acreditar que seja de fato um vagabundo. Os únicos com quem consegue conversar de forma mais aberta são seu amigo Paulie (interpretado por Burt Young), que está bêbado em quase toda cena em que aparece, e a irmã de Paulie, Adrian (interpretada por Talia Shire), uma mulher extremamente tímida e pouco atraente, que trabalha em um pet shop e por quem Rocky é apaixonado, o que ninguém consegue entender, nem mesmo Paulie. Ele até tenta salvar outros de caírem na mesma desgraça que ele, tentando convencer Paulie a não trabalhar para o agiota e dando um forte sermão sobre ter uma má reputação para uma vizinha de 12 anos que está sempre em má companhia, apenas para ser xingado por ela, o que deixa Rocky triste e se perguntando quem ele é pra dar conselho.
Até aí, ele não é muito diferente do personagem de Marlon Brando em “Sindicato de Ladrões”, Terry Malloy, um ex-boxeador que trabalha como capanga para um mafioso, mas não deixa de ser uma boa pessoa. Da mesma forma como Malloy se sente culpado quando um homem que testemunharia contra seu chefe é assassinado, Rocky não gosta de levar seu trabalho de “quebrador de ossos” até as últimas consequências, evitando de fato bater em quem deve dinheiro caso não ache necessário. Rocky também tem um carinho especial por animais, especialmente suas tartarugas de estimação e um cachorro abandonado no pet shop, da mesma forma como Malloy tinha carinho por sua criação de pombos.
            Sim, estou comparando Sylvester Stallone com Marlon Brando. E não me arrependo disso.

            Eis então uma das primeiras e principais coisas que tornam “Rocky” um grande filme: Seu personagem principal, apesar de parecer e, de certa forma, ser, um brucutu, é tão carismático quanto um cachorro. Sim, isso foi um elogio! Assim como um cachorro, Rocky não é muito inteligente, e chega a admitir isso em seu encontro com Adrian (“Eu sou burro, você é tímida, o que você acha, heim?”); porém, também assim como um cachorro, isso não o impede de ter certa sensibilidade, não apenas no sentido de ser sensível e emotivo, apesar de sua aparência exterior e de sua atitude, mas também no sentido de compreender os sentimentos dos outros, mesmo que não saiba o porque de sentirem o que sentem. É por isso que ele sabe que Mickey o despreza, mas não entende o porquê, e é também por isso que ele vê em Adrian algo que ninguém mais é capaz.
            O romance entre Rocky e Adrian, aliás, ocupa um espaço significativamente grande do filme. Poderia se dizer que metade dele ou até mais gira em torno desses dois personagens desajustados que de uma forma estranha se completam, e de como o relacionamento deles evolui ao longo das conturbadas cinco semanas da vida de Rocky que o filme mostra, entre Apollo Creed anunciar sua luta e esta de fato acontecer. Chega a parecer estranho, pensando a respeito, o fato de quase toda sinopse do filme (incluindo a dessa crítica, infelizmente) apresentar “Rocky” como “um filme de boxe com um romance no meio”, e não o contrário!

            Mas “Rocky” não é apenas sobre um bom personagem. É também um filme que aborda temas simples, porém de forma bem escrita (o que é surpreendente, considerando que Stallone escreveu a primeira versão do roteiro em apenas três dias e meio). Claro, há o tema óbvio e um tanto criticável da oportunidade, uma das partes mais essenciais do pensamento americano. Quando Creed anuncia sua ideia de dar a oportunidade para um desconhecido de disputar o título mundial, seu patrocinador até enfatiza o quão americano isso é (ao que Creed responde “Não. É inteligente.”). De fato, a promoção que o filme faz do sonho americano de receber uma oportunidade de demonstrar seu talento e esforço e assim alcançar o sucesso é tão forte que não é raro encontrar artigos por aí classificando-o como um “filme-propaganda”.
Não irei, porém, desconsiderar tanto o filme por isso. Não apenas porque eu acho um desperdício desconsiderar um filme por ser um filme-propaganda (“Encouraçado Potemkin” é abertamente um filme-propaganda, e é uma das obras mais geniais da história do cinema), mas também porque “Rocky”, ao mesmo tempo que o promove, faz também algumas sutis desconstruções ao sonho americano, mostrando que nem sempre as oportunidades são justas. A principal dessas desconstruções pode ser percebida quando Creed, que é negro, diz que sua jogada de marketing funcionará melhor se a oportunidade de lutar contra ele for dada a um branco.
Há também outra leve, mas poderosa desconstrução quando Rocky revela que nem está interessado em ganhar, apenas em chegar ao final dos quinze rounds da luta e provar a todos que ele não é apenas mais um vagabundo, o que vai contra os planos de Creed, que pretende apenas “brincar” com Rocky por um tempo e então nocauteá-lo no terceiro round.

            Nisso chegamos ao segundo grande tema de “Rocky”: O da renovação. Embora mais sutil, esse tema é tão importante ou até mais quanto o da oportunidade. Já na primeiríssima cena ele é apresentado de forma “sutilmente explícita”, em que Rocky luta com outro boxeador e uma imagem de Jesus aparece no fundo, com “ressureição” escrito embaixo. Como dito antes, Rocky quer aproveitar a oportunidade que lhe é dada para renovar sua reputação de vagabundo, mostrar que ele não é apenas isso. Ele também se renova fisicamente, pois no começo, devido a seu potencial desperdiçado, como diz Mickey, ele é um lutador bom, mas desajeitado e destreinado demais para ser mais que isso. Embora no começo tente ignorar isso, Rocky finalmente percebe que precisa melhorar suas habilidades físicas quando se vê exausto tentando subir as escadarias do Museu de Arte de Philadelphia após uma corrida matinal. Sua renovação se dá enfim na forma de uma das montagens de treinamento mais icônicas de todos os tempos.
            Mas se você realmente quer prova de que a renovação é um dos, senão o, principal tema de Rocky, é só acompanhar a trajetória de Adrian. Quando o filme começa, ela é uma mulher de aparência sem graça e quase patologicamente tímida (um personagem chega a chama-la de “retardada”). Depois que ela começa a namorar Rocky, porém, ela vai se tornando cada vez mais autoconfiante e, devido a isso, cada vez mais bonita (note como o cinza das roupas dela no começo do filme vai sendo substituído pelo vermelho), a ponto de Rocky dizer que ela está “de parar o trânsito”. De certa forma, pode-se dizer que Rocky mostrar que consegue ver através de sua aparência e timidez inicial é a oportunidade que ela precisava para criar coragem. A partir daí, é impressionante ver essa mulher antes tão quietinha e incapaz de reagir até mesmo quando Rocky lhe contava uma piada transformar-se em alguém capaz de reagir e gritar quando seu irmão a acusa injustamente de “não ser boa com ele”. Tenho que dar os merecidos parabéns a Talia Shire por tal performance!

            Outro que merece meus parabéns é o diretor do filme, John G. Avildsen, que chegou a ganhar o Oscar de Melhor Diretor por esse filme. O ritmo que ele dá ao filme é tão gostoso de assistir que quando acaba nem se percebe que duas horas se passaram. De certa forma, a direção dele me lembrou muito (sei que é um anacronismo, mas que seja) a de Hayao Miyazaki: As cenas fluem no seu próprio ritmo, sem pressa, permitindo que o público não apenas assista o filme, mas também observe, aprecie os momentos da vida de Rocky enquanto ele (e o público) espera e se prepara para sua tão aguardada luta. Ao mesmo tempo, o filme não chega a de fato “testar a paciência do público”; não é um filme lento demais, nem rápido demais. Quando uma cena se prolonga, não é por mera encheção de linguiça, e sim para construir melhor os personagens.
            Sim, estou comparando “Rocky” com um filme de Miyazaki. E continuo não me arrependendo.
Pegue, por exemplo, a cena logo nos primeiros cinco minutos do filme, quando aparecem os créditos iniciais. Após uma luta, vemos Rocky andando de noite pela rua, brincando com uma bola de borracha, assobiando, parecendo de fato um vagabundo que não faz nada de útil; ao passar pelo pet shop, porém, vemos ele brincar pela vidraça com um filhote de cachorro, mostrando que apesar dessa aparência ele é uma boa pessoa. É uma cena lenta, sem música, mas que nos introduz de forma simples a esse personagem que até então só havíamos visto socando outro cara.

                Outra cena que serve como um bom exemplo é a em que Rocky leva Adrian para uma pista de patinação no gelo prestes a fechar. Mais uma vez, não há música, e por três minutos tudo o que se vê é Rocky e Adrian conversando enquanto dão uma volta pela pista vazia. Algo aparentemente tão banal, porém, revela-se um momento importante do filme, pois vemos esses dois personagens desajustados e que não parecem saber conversar direito agindo de forma natural quando um com o outro, tendo um legítimo encontro sem quaisquer exageros românticos, Rocky se abrindo e Adrian rindo de uma forma como não fazem com nenhum outro personagem.
            Há também uma terceira cena, mais curta, quando Rocky finalmente recebe a oferta de lutar contra Creed. Enquanto o patrocinador lhe diz que é uma chance que ele não pode recusar, a câmera se aproxima do rosto de Rocky, e quando o outro para de falar, ela foca no rosto de Stallone por ainda alguns segundos e este olha direto para a lente, como se estivesse perguntando para o público, sem dizer uma única palavra, “E agora, o que você me diz? Aceito ou não?”.

            Mas o verdadeiro gênio de Avildsen se revela nas duas cenas mais icônicas do filme: A montagem de treinamento ao som de “Gonna Fly Now” e a brutal luta entre Rocky e Creed.
            Quanto à primeira, mais uma vez o ritmo é parte importante, pois o público já havia visto Rocky treinando antes. Naquela cena, porém, o ritmo havia sido mais lento, pois o próprio Rocky estava mais lento, despreparado. Agora, porém, ele está mais forte, mais resistente, e as cenas voam da mesma forma como ele parece voar por sobre os degraus da escadaria do museu.

                E então temos a luta final. Após uma entrada espalhafatosa de Creed (com uma reação de Rocky que não irei colocar aqui, pois é uma expressão preciosa demais para ser colocada em uma imagem fora de contexto), a luta começa devagar e a câmera se mantém afastada do ringue, como uma transmissão esportiva, com direito até a uma narração. A câmera, porém, vai aos poucos entrando no ringue e ficando mais próxima dos lutadores à medida que os rounds passam e a luta vai ficando mais brutal.
E então o terceiro round chega. Aí o ritmo já muda. Não há mais narração. Ao invés disso, temos uma das músicas mais arrepiantes do filme, enquanto Rocky e Creed agora lutam para valer. A câmera e a edição já usam mais recursos cinematográficos, enquanto a brutalidade da luta vai aumentando e aumentando. Os rostos de Rocky e Creed são agora duas massas inchadas, roxas, sangrando. Creed já não está mais brincando, mas Rocky continua a luta, porque ele quer chegar até o fim, até o fim, até o fim... E aí já não conto mais nada para não estragar o filme. Mas é uma luta de tal brutalidade que é possível quase sentir cada um dos golpes (curiosidade: Stallone e Weathers se machucaram de verdade durante as filmagens, Stallone machucando as costelas e Weather danificando o nariz. Fãs do filme entenderão a ironia). E isso se estende por quase dez minutos! Chega-se a ficar surpreso com ambos os personagens estarem ainda vivos no final da luta!

            Por fim, mas não menos importante, há o uso da trilha sonora, composta por Bill Conti. Claro que músicas como “Gonna Fly Now” e “Going the Distance” entraram para a história do cinema, sendo tantas vezes parodiadas, mas o filme possui mais do que isso. A maior parte do tempo, curiosamente, não há trilha sonora, apenas sons ambientes, o que dá ao filme um tom mais dramático e sério, sem breguices. Mas quando ela aparece, ela não é apenas bombástica, épica e inspiradora, como os dois exemplos anteriores. Ela pode também ter pequenos peças de piano, e emotivas como as compostas por Joe Hisaishi, mesmo compositor dos filmes de Miyazaki. Aliás, (sei que isso é outro anacronismo, mas de novo que seja) há muito de Joe Hisaishi nessa trilha sonora, devido principalmente às oitavas altas delicadas e uso constante de si e mi bemol, que Hisaishi usou bastante em algumas de suas trilhas sonoras, como a de “Princesa Mononoke”. Sim, eu procurei e comparei as partituras para comprovar isso. Por favor, me deem um prêmio.
           

Avaliação: Vale a pena. Esqueçam o preconceito e assistam! Merece o status de clássico. Agora chega que passei o dia inteiro escrevendo isso!

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