Há não muito tempo
atrás, um colega meu se mostrou bastante intrigado quando eu lhe disse que
nunca havia assistido nenhum dos filmes da franquia “Rocky”. “Como assim?!”,
ele disse, “Você não gosta de cinema?!”.
Pois é, por mais que
muitos tenham certo preconceito, quarenta anos depois de seu lançamento não dá
mais para negar que “Rocky - Um Lutador” é um clássico do cinema. Mas tenho que
admitir que eu próprio, quando resolvi assistir enfim o filme, fiquei em dúvida
se eu teria algo para falar sobre ele. Quero dizer, está bem, ganhou o Oscar de
Melhor Filme na época, mas será que não foi uma empolgação exagerada? Será que
o legado todo do filme não o tornou maior do que realmente é?
Aí assisti “Rocky”. E
como sinto muito por algum dia duvidar da qualidade desse filme!
A
história, a essa altura, todos já conhecem: Rocky, um boxeador talentoso, porém
fracassado em tudo o mais (interpretado por Sylvester Stallone, caso seja
necessário citar), consegue a uma e única chance de sua vida quando o campeão
mundial de boxe, Apollo Creed (interpretado por Carl Weathers), em uma jogada
de marketing, resolve colocar seu título à prova contra um lutador desconhecido,
escolhendo Rocky por critérios quase aleatórios.
Resumir
o filme todo a isso, porém, é desmerecê-lo completamente.
Por
que digo que é um desmerecimento? Porque chega a beirar ao ridículo chamar
“Rocky” de “apenas um filme de boxe” considerando que há apenas duas lutas no
filme inteiro, e elas ocupam apenas 10% de suas duas horas de duração. Ao invés
disso, temos um dos mais simples e, talvez justamente por isso, marcantes dramas
do cinema americano.
Sim,
“Rocky” é um drama. Não um filme de ação, como você muitas vezes vê sendo
classificado por aí. Vamos analisar o porquê.
Quando
o filme começa, Rocky é um zé-ninguém, vivendo em um apartamento fedido,
bagunçado e decrépito em um bairro pobre de Philadelphia. Apesar de ter
potencial para ser um bom boxeador, desperdiça isso trabalhando como “quebrador
de ossos” para um agiota local (interpretado por Joe Spinell), o que enfurece
seu treinador, Mickey (interpretado por Burgess Meredith), que chega a lhe
tirar seu armário na academia para favorecer outro boxeador mais dedicado.
Desprezado por quase todo mundo, sendo chamado na rua de “bum” (algo como
“vagabundo” em inglês), Rocky finge que não se importa com essa reputação,
embora percebe-se que de tanto ouvir isso ele chega a acreditar que seja de
fato um vagabundo. Os únicos com quem consegue conversar de forma mais aberta
são seu amigo Paulie (interpretado por Burt Young), que está bêbado em quase
toda cena em que aparece, e a irmã de Paulie, Adrian (interpretada por Talia
Shire), uma mulher extremamente tímida e pouco atraente, que trabalha em um pet
shop e por quem Rocky é apaixonado, o que ninguém consegue entender, nem mesmo
Paulie. Ele até tenta salvar outros de caírem na mesma desgraça que ele,
tentando convencer Paulie a não trabalhar para o agiota e dando um forte sermão
sobre ter uma má reputação para uma vizinha de 12 anos que está sempre em má
companhia, apenas para ser xingado por ela, o que deixa Rocky triste e se
perguntando quem ele é pra dar conselho.
Até aí, ele não é muito
diferente do personagem de Marlon Brando em “Sindicato de Ladrões”, Terry
Malloy, um ex-boxeador que trabalha como capanga para um mafioso, mas não deixa
de ser uma boa pessoa. Da mesma forma como Malloy se sente culpado quando um
homem que testemunharia contra seu chefe é assassinado, Rocky não gosta de
levar seu trabalho de “quebrador de ossos” até as últimas consequências,
evitando de fato bater em quem deve dinheiro caso não ache necessário. Rocky
também tem um carinho especial por animais, especialmente suas tartarugas de
estimação e um cachorro abandonado no pet shop, da mesma forma como Malloy
tinha carinho por sua criação de pombos.
Sim,
estou comparando Sylvester Stallone com Marlon Brando. E não me arrependo disso.

Eis
então uma das primeiras e principais coisas que tornam “Rocky” um grande filme:
Seu personagem principal, apesar de parecer e, de certa forma, ser, um brucutu,
é tão carismático quanto um cachorro. Sim, isso foi um elogio! Assim como um
cachorro, Rocky não é muito inteligente, e chega a admitir isso em seu encontro
com Adrian (“Eu sou burro, você é tímida, o que você acha, heim?”); porém, também
assim como um cachorro, isso não o impede de ter certa sensibilidade, não
apenas no sentido de ser sensível e emotivo, apesar de sua aparência exterior e
de sua atitude, mas também no sentido de compreender os sentimentos dos outros,
mesmo que não saiba o porque de sentirem o que sentem. É por isso que ele sabe
que Mickey o despreza, mas não entende o porquê, e é também por isso que ele vê
em Adrian algo que ninguém mais é capaz.
O
romance entre Rocky e Adrian, aliás, ocupa um espaço significativamente grande
do filme. Poderia se dizer que metade dele ou até mais gira em torno desses
dois personagens desajustados que de uma forma estranha se completam, e de como
o relacionamento deles evolui ao longo das conturbadas cinco semanas da vida de
Rocky que o filme mostra, entre Apollo Creed anunciar sua luta e esta de fato
acontecer. Chega a parecer estranho, pensando a respeito, o fato de quase toda
sinopse do filme (incluindo a dessa crítica, infelizmente) apresentar “Rocky”
como “um filme de boxe com um romance no meio”, e não o contrário!
Mas
“Rocky” não é apenas sobre um bom personagem. É também um filme que aborda
temas simples, porém de forma bem escrita (o que é surpreendente, considerando
que Stallone escreveu a primeira versão do roteiro em apenas três dias e meio).
Claro, há o tema óbvio e um tanto criticável da oportunidade, uma das partes
mais essenciais do pensamento americano. Quando Creed anuncia sua ideia de dar
a oportunidade para um desconhecido de disputar o título mundial, seu
patrocinador até enfatiza o quão americano isso é (ao que Creed responde “Não.
É inteligente.”). De fato, a promoção que o filme faz do sonho americano de
receber uma oportunidade de demonstrar seu talento e esforço e assim alcançar o
sucesso é tão forte que não é raro encontrar artigos por aí classificando-o
como um “filme-propaganda”.
Não irei, porém,
desconsiderar tanto o filme por isso. Não apenas porque eu acho um desperdício
desconsiderar um filme por ser um filme-propaganda (“Encouraçado Potemkin” é
abertamente um filme-propaganda, e é uma das obras mais geniais da história do
cinema), mas também porque “Rocky”, ao mesmo tempo que o promove, faz também
algumas sutis desconstruções ao sonho americano, mostrando que nem sempre as
oportunidades são justas. A principal dessas desconstruções pode ser percebida
quando Creed, que é negro, diz que sua jogada de marketing funcionará melhor se
a oportunidade de lutar contra ele for dada a um branco.
Há também outra leve,
mas poderosa desconstrução quando Rocky revela que nem está interessado em
ganhar, apenas em chegar ao final dos quinze rounds da luta e provar a todos que ele não é apenas mais um
vagabundo, o que vai contra os planos de Creed, que pretende apenas “brincar”
com Rocky por um tempo e então nocauteá-lo no terceiro round.
Nisso
chegamos ao segundo grande tema de “Rocky”: O da renovação. Embora mais sutil, esse
tema é tão importante ou até mais quanto o da oportunidade. Já na primeiríssima
cena ele é apresentado de forma “sutilmente explícita”, em que Rocky luta com
outro boxeador e uma imagem de Jesus aparece no fundo, com “ressureição”
escrito embaixo. Como dito antes, Rocky quer aproveitar a oportunidade que lhe
é dada para renovar sua reputação de vagabundo, mostrar que ele não é apenas
isso. Ele também se renova fisicamente, pois no começo, devido a seu potencial
desperdiçado, como diz Mickey, ele é um lutador bom, mas desajeitado e
destreinado demais para ser mais que isso. Embora no começo tente ignorar isso,
Rocky finalmente percebe que precisa melhorar suas habilidades físicas quando
se vê exausto tentando subir as escadarias do Museu de Arte de Philadelphia
após uma corrida matinal. Sua renovação se dá enfim na forma de uma das
montagens de treinamento mais icônicas de todos os tempos.
Mas
se você realmente quer prova de que a renovação é um dos, senão o, principal
tema de Rocky, é só acompanhar a trajetória de Adrian. Quando o filme começa, ela
é uma mulher de aparência sem graça e quase patologicamente tímida (um
personagem chega a chama-la de “retardada”). Depois que ela começa a namorar
Rocky, porém, ela vai se tornando cada vez mais autoconfiante e, devido a isso,
cada vez mais bonita (note como o cinza das roupas dela no começo do filme vai
sendo substituído pelo vermelho), a ponto de Rocky dizer que ela está “de parar
o trânsito”. De certa forma, pode-se dizer que Rocky mostrar que consegue ver
através de sua aparência e timidez inicial é a oportunidade que ela precisava
para criar coragem. A partir daí, é impressionante ver essa mulher antes tão
quietinha e incapaz de reagir até mesmo quando Rocky lhe contava uma piada transformar-se
em alguém capaz de reagir e gritar quando seu irmão a acusa injustamente de “não
ser boa com ele”. Tenho que dar os merecidos parabéns a Talia Shire por tal
performance!

Outro
que merece meus parabéns é o diretor do filme, John G. Avildsen, que chegou a
ganhar o Oscar de Melhor Diretor por esse filme. O ritmo que ele dá ao filme é
tão gostoso de assistir que quando acaba nem se percebe que duas horas se
passaram. De certa forma, a direção dele me lembrou muito (sei que é um
anacronismo, mas que seja) a de Hayao Miyazaki: As cenas fluem no seu próprio ritmo,
sem pressa, permitindo que o público não apenas assista o filme, mas também
observe, aprecie os momentos da vida de Rocky enquanto ele (e o público) espera
e se prepara para sua tão aguardada luta. Ao mesmo tempo, o filme não chega a
de fato “testar a paciência do público”; não é um filme lento demais, nem rápido
demais. Quando uma cena se prolonga, não é por mera encheção de linguiça, e sim
para construir melhor os personagens.
Sim,
estou comparando “Rocky” com um filme de Miyazaki. E continuo não me
arrependendo.
Pegue, por exemplo, a
cena logo nos primeiros cinco minutos do filme, quando aparecem os créditos
iniciais. Após uma luta, vemos Rocky andando de noite pela rua, brincando com
uma bola de borracha, assobiando, parecendo de fato um vagabundo que não faz
nada de útil; ao passar pelo pet shop, porém, vemos ele brincar pela vidraça
com um filhote de cachorro, mostrando que apesar dessa aparência ele é uma boa
pessoa. É uma cena lenta, sem música, mas que nos introduz de forma simples a
esse personagem que até então só havíamos visto socando outro cara.
Outra
cena que serve como um bom exemplo é a em que Rocky leva Adrian para uma pista
de patinação no gelo prestes a fechar. Mais uma vez, não há música, e por três
minutos tudo o que se vê é Rocky e Adrian conversando enquanto dão uma volta
pela pista vazia. Algo aparentemente tão banal, porém, revela-se um momento
importante do filme, pois vemos esses dois personagens desajustados e que não
parecem saber conversar direito agindo de forma natural quando um com o outro, tendo
um legítimo encontro sem quaisquer exageros românticos, Rocky se abrindo e
Adrian rindo de uma forma como não fazem com nenhum outro personagem.
Há
também uma terceira cena, mais curta, quando Rocky finalmente recebe a oferta
de lutar contra Creed. Enquanto o patrocinador lhe diz que é uma chance que ele
não pode recusar, a câmera se aproxima do rosto de Rocky, e quando o outro para
de falar, ela foca no rosto de Stallone por ainda alguns segundos e este olha
direto para a lente, como se estivesse perguntando para o público, sem dizer uma
única palavra, “E agora, o que você me diz? Aceito ou não?”.
Mas
o verdadeiro gênio de Avildsen se revela nas duas cenas mais icônicas do filme:
A montagem de treinamento ao som de “Gonna Fly Now” e a brutal luta entre Rocky
e Creed.
Quanto
à primeira, mais uma vez o ritmo é parte importante, pois o público já havia
visto Rocky treinando antes. Naquela cena, porém, o ritmo havia sido mais
lento, pois o próprio Rocky estava mais lento, despreparado. Agora, porém, ele
está mais forte, mais resistente, e as cenas voam da mesma forma como ele
parece voar por sobre os degraus da escadaria do museu.
E
então temos a luta final. Após uma entrada espalhafatosa de Creed (com uma
reação de Rocky que não irei colocar aqui, pois é uma expressão preciosa demais
para ser colocada em uma imagem fora de contexto), a luta começa devagar e a
câmera se mantém afastada do ringue, como uma transmissão esportiva, com
direito até a uma narração. A câmera, porém, vai aos poucos entrando no ringue
e ficando mais próxima dos lutadores à medida que os rounds passam e a luta vai ficando mais brutal.
E então o terceiro round chega. Aí o ritmo já muda. Não há
mais narração. Ao invés disso, temos uma das músicas mais arrepiantes do filme,
enquanto Rocky e Creed agora lutam para valer. A câmera e a edição já usam mais
recursos cinematográficos, enquanto a brutalidade da luta vai aumentando e
aumentando. Os rostos de Rocky e Creed são agora duas massas inchadas, roxas,
sangrando. Creed já não está mais brincando, mas Rocky continua a luta, porque
ele quer chegar até o fim, até o fim, até o fim... E aí já não conto mais nada
para não estragar o filme. Mas é uma luta de tal brutalidade que é possível
quase sentir cada um dos golpes (curiosidade: Stallone e Weathers se machucaram
de verdade durante as filmagens, Stallone machucando as costelas e Weather
danificando o nariz. Fãs do filme entenderão a ironia). E isso se estende por
quase dez minutos! Chega-se a ficar surpreso com ambos os personagens estarem
ainda vivos no final da luta!
Por
fim, mas não menos importante, há o uso da trilha sonora, composta por Bill
Conti. Claro que músicas como “Gonna Fly Now” e “Going the Distance” entraram
para a história do cinema, sendo tantas vezes parodiadas, mas o filme possui
mais do que isso. A maior parte do tempo, curiosamente, não há trilha sonora,
apenas sons ambientes, o que dá ao filme um tom mais dramático e sério, sem
breguices. Mas quando ela aparece, ela não é apenas bombástica, épica e inspiradora,
como os dois exemplos anteriores. Ela pode também ter pequenos peças de piano,
e emotivas como as compostas por Joe Hisaishi, mesmo compositor dos filmes de
Miyazaki. Aliás, (sei que isso é outro anacronismo, mas de novo que seja) há
muito de Joe Hisaishi nessa trilha sonora, devido principalmente às oitavas altas
delicadas e uso constante de si e mi bemol, que Hisaishi usou bastante em
algumas de suas trilhas sonoras, como a de “Princesa Mononoke”. Sim, eu
procurei e comparei as partituras para comprovar isso. Por favor, me deem um
prêmio.
Avaliação: Vale a pena. Esqueçam o
preconceito e assistam! Merece o status de clássico. Agora chega que passei o dia inteiro escrevendo isso!
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