domingo, 27 de março de 2016

A Liberdade é Azul

            Ok, antes que falem qualquer coisa, irei direto ao ponto: Eu sei que vou me arrepender dessa crítica. Não estou dizendo isso achando que vão falar mal do jeito como a escrevi. Como se alguém se importasse de verdade com essa palhaçada toda, essa mistura de ideias já previamente escritas e nada originais apenas compiladas e escritas por um jovem inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico, que escreve sobre filmes velhos e já muito criticados porque tem medo de escrever sobre algo novo e dizer bobagem. Mas não é por isso que digo que sei (em itálico) que vou me arrepender dessa crítica. Eu digo que sei que vou me arrepender dessa crítica porque é um fato que pura e simplesmente não tenho como fazer uma boa crítica desse filme e dos que o seguem na trilogia que ele compõe. Como eu disse, sou um jovem inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico, que acha que na flor de seus 20 anos tem o “dever” de falar de um filme tão recheado de simbolismos e referências clássicas que só entenderei em toda sua complexidade provavelmente aos 40, e olhe lá! Ei, é provável que no meio do processo de escrever essa crítica eu entre em desespero e pesquise na internet o que é possível falar sobre esse filme! Ei, é ainda mais provável que eu tenha já feito isso antes mesmo de escrever esse parágrafo!
            Então, sem mais delongas, vamos mostrar uma imagem do cartaz de “A Liberdade é Azul” antes de escrever esse fiasco que chamo de crítica. Mas só amanhã, porque já é meia-noite e estou com sono. Já vi que será mais um domingo que passarei o dia inteiro trancado em meu quarto escrevendo e xingando mentalmente qualquer um que ouse cometer o crime de me chamar para almoçar. Ai, ai...

            Pronto, são 11 da manhã, o que quer dizer que provavelmente essa crítica irá sair lá por umas 9 da noite. Não que eu fique pensando e relendo e reescrevendo minhas críticas até achar que elas estão perfeitas. Quase nunca reescrevo minhas críticas. Demoro todo esse tempo porque passo horas apenas olhando para a tela do computador, dando uma pesquisada nas imagens do filme disponíveis no google, ouvindo música, de vez em quando dando uma stalkeada em alguém no facebook, enfim, procrastinando eternamente. Mas não ouse falar comigo. Direi que estou muito ocupado com minhas coisas e que não quero ninguém me interrompendo, sequer para comer. Nessas horas, eu quero apenas que o mundo desapareça e só exista eu, eu e essa crítica que eu escrevo.
            Enfim, “A Liberdade é Azul” é o primeiro filme da chamada “Trilogia das Cores”, do diretor polonês Krzysztof Kieslowski (embora o filme todo tenha sido filmado na França), três filmes com histórias separadas cujos temas giram em torno do lema nacional francês (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, para quem ainda não sabe). Ao invés de terem um sentido político, porém, nessa trilogia essas palavras são tratadas em seu sentido pessoal, íntimo. Assim, a liberdade que “A Liberdade é Azul” aborda é a liberdade de se isolar do resto da humanidade, de não fazer absolutamente nada por ninguém, de não ter passado, futuro, sequer presente.

            O filme conta a história de Julie (interpretada ninguém menos que Juliette Binoche, uma das maiores atrizes francesas vivas). Logo no começo do filme, durante uma viagem, sua família sofre um acidente de carro, no qual morrem seu marido, um famoso compositor que escrevia uma música em comemoração à unificação da Europa (o filme foi filmado em 1992, um ano após o fim da União Soviética), e sua filha de cinco anos (ou sete? Não consigo me lembrar agora e não sei francês para saber se a legenda estava correta). Julie até tenta cometer suicídio ao receber a notícia no hospital, mas não consegue engolir a overdose de pílulas. Mesmo assim, Julie está disposta a se desligar do resto do mundo, quase uma espécie de “suicídio em vida”, por assim dizer: Vende quase todos os pertences de sua casa, destrói as partituras da música inacabada de seu marido (que o filme sugere aqui e ali que foi ela que escreveu), e passa a morar sozinha em um apartamento em Paris sob seu sobrenome de solteira, evitando contato com todos os seus conhecidos e mantendo uma filosofia rígida de não se envolver em problemas alheios.
            Mas eis que esse plano de Julie vai dando cada vez mais errado, à medida que tudo vai forçando-a a aos poucos a se reconectar com o resto do mundo: Ao não assinar um abaixo-assinado para expulsar uma moradora do prédio que trabalha como prostituta, seguindo sua filosofia, ela acaba assim salvando a mulher, que passa a se sentir endividada com Julie; um jovem que presenciou o acidente que matou seu marido e filha finalmente a encontra para devolver-lhe um colar com uma cruz; uma infestação de ratos em seu apartamento a força a pedir emprestado o gato de seu agente imobiliário; e vários outros golpes que o destino lhe oferece para mostrar que não é tão fácil assim se livrar de tudo e viver em total isolamento, que é preciso “se segurar a algo”, como um personagem lhe diz em uma cena.

            Caso você não tenha ainda assistido esse filme, já vou avisando: Não espere dele muita ação ou sequer muita fala. A direção de Kieslowski é parada até mesmo para os padrões de cinema europeu. A impressão que dá à primeira vista é que cenas inteiras poderiam ser descritas em uma frase ou duas.
            Ou será que não?

            A palavra que melhor define “A Liberdade é Azul” é intimista: Por mais que pouca coisa aconteça no exterior, um verdadeiro turbilhão está acontecendo na mente de Julie, em sua luta por se ver livre de tudo e todos e, ao mesmo tempo, não ser capaz de cortar totalmente seus laços. Percebe-se isso em cada cena em que ela aparece. Mais do que percebe-se: Sente-se. Cada olhar de Julie, cada gesto de Julie, somos transportados para dentro de sua mente, dando a impressão de que não se está assistindo um filme, mas sim lendo um livro com páginas e páginas de monólogos interiores, flashbacks e descrições de objetos e o que eles significam para a personagem. O filme, porém, continua sendo um filme: Não há páginas em um filme. E, embora um filme possa ter um(a) narrador(a), esse não é o caso em “A Liberdade é Azul”. Todas essas páginas e páginas de monólogos interiores, flashbacks e descrições de objetos e o que eles significam para a personagem são apresentadas “apenas” como imagem e som. Se há um filme que prova o ditado popular “uma imagem vale mais que mil palavras”, é esse.
            E, sendo um filme, Kieslowski não seria capaz de se aprofundar na mente de sua personagem sem alguém que a atuasse bem o suficiente para expressar páginas e páginas de monólogos interiores, flashbacks etc. etc. em um único gesto. E Juliette Binoche merece todos os Globos de Ouro, Césars e Volpis (prêmio do Festival de Veneza) que recebeu por sua atuação nesse filme. Com pouquíssimas falas, sua atuação é principalmente física. E que desafio ela tinha em mãos para desenvolver de forma quase exclusivamente física! Julie é uma personagem que sofre de uma constante luta interna ao longo do filme, pois ao mesmo tempo que reprime suas emoções a todo e qualquer custo estas não deixam de estar lá, prontas para se jogarem para fora a qualquer momento. Sendo assim, Juliette Binoche está em uma constante divergência expressiva: Olhando seu rosto, seus olhos, ela está quase sempre com a mesma, perdoem-me a palavra, “cara de b#st@”, com o olhar distante, muitas vezes cabisbaixo, como se sua mente estivesse em qualquer outra dimensão (uma bem deprimente, aliás) que não essa, e como se qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que a perturbe desse estado quase vegetativo que ela tanto quer alcançar fosse um incômodo.

            Seus gestos, porém, estão constantemente traindo Julie. Se ela se esforça para manter uma eterna expressão neutra, a forma como ela se mexe, a forma como ela segura um objeto, anda, come, tudo mostra um turbilhão emocional que está acontecendo dentro dela, e que ela procura reprimir. Cada movimento é uma página desse enorme e profundo livro que é “A Liberdade é Azul”.
            Nisso, temos o que é provavelmente uma das minhas cenas favoritas, quando Julie tira tudo de dentro de sua bolsa e encontra entre as coisas uma espécie de doce azul, que ela procede em desembrulhar e comer. Já é a quarta vez que assisto esse filme, e toda vez me impressiono com essa cena. Se Binoche fosse uma atriz apenas 1% menos genial do que é, essa cena não funcionaria. Notem a forma como as mãos dela param ao ver o doce e, principalmente, a forma como ela o come. Não, comer não é o verbo certo: destruir com os dentes é mais apropriado. Mal vemos ela engolir o doce, apenas ouvimos o incessantes crac, crac, crac dele sendo quebrado dentro de sua boca.
            Estou com fome. Terei que ir em algum restaurante com meu pai. Pelo menos uma hora ou duas sem escrever. Mas por que agora não me sinto mais tão incomodado com isso quanto de manhã?
            De fato são 5 da tarde e só agora voltei a escrever. Mas qualquer chance de essa crítica seguir boa e consistente foi destruída. Estou alegre, acabei de assistir um vídeo no Youtube que me fez rir até a barriga doer. Era para eu estar triste, sério, para que eu pudesse fazer um paralelo entre o filme e meu estado emocional! Por que nem isso eu consigo?!
Mas enfim, voltando para a cena do doce. Notem o olhar de Binoche, distante, e ao mesmo tempo a forma como o queixo dela chega a tremer enquanto come, como quando estamos com muita, muita raiva, prontos para gritar. E a forma como chega a bufar enquanto morde o doce (algo parecido com um pirulito) até o cabo, que ela procede em jogar na lareira. A cena dura um minuto e não tem qualquer música, mas ao vê-la passa na cabeça toda a história do doce: Que ela o comprara no começo da viagem, como prêmio para a filha caso ela se comportasse, embora planejava dá-lo de qualquer jeito, pois não tinha dúvidas do bom comportamento da filha durante as longas horas no carro, que quando ela primeiro põe o doce na boca ela não o morde pois nunca o comeu, embora a filha gostasse, e queria saber qual era afinal o gosto... E nada disso é dito ou mostrado em cena! São meras suposições, histórias que são possíveis de se desenvolver na cabeça do público.
Esse é o tal efeito de livro de “A Liberdade é Azul”: Por justamente ter um ritmo tão lento e quieto, abre-se espaço para o público imaginar uma narração na cabeça e inventar suas próprias histórias de fundo que não são contadas no filme. Eu, por exemplo, imaginei essa porque foi o que veio à minha cabeça quando a vi. Mas outros podem “inventar” outras histórias. Alguém pode imaginar, enquanto Julie vê uma imagem de seu marido, que ele era o professor de música dela, que ele dizia que ela era sua aluna mais talentosa, que se casaram apenas um ano após se conhecerem... As possibilidades são ilimitadas, mas nada disso é mera viagem: É “real”, pois o filme propositalmente abre espaço para isso.
Querem ver? Peguem a cena em que Julie entra no “Quarto Azul”, já vazio e livre de qualquer mobília, e imaginem o que havia nesse quarto. Mas não apenas imaginem: narrem. Vão assistindo o filme e, ao chegarem nessa cena, comecem: “Julie entrou no Quarto Azul. De fato, como havia pedido, tudo já havia sido tirado lá de dentro, só restando a lâmpada no teto, com suas continhas de vidro azul penduradas. Veio-lhe à memória o dia em que ela e seu marido mandaram pintar aquele quarto...”. E veja a magia acontecer.

            Mas “A Liberdade é Azul” não é só feito de momentos silenciosos que abrem espaço para a reflexão do público. Há também trilha sonora, composta por Zbigniew Preisner. O interessante, porém, não é a trilha sonora em si, mas como ela se torna ao longo do filme praticamente uma personagem em si, participando de fato do filme, não sendo apenas um som de fundo. Isso porque a trilha sonora que ouvimos, dentro do universo do filme, existe de verdade, sendo a música que o marido de Julie compôs para comemorar a unificação da Europa. Sendo assim, ela aparece em momentos bastante específicos do filme, e nunca sem importância para o desenvolvimento da história e, principalmente, de Julie. Sempre que ela se vê sozinha com seus pensamentos, a música aparece, literalmente iluminando a tela em tons de azul. Quando alguém lhe faz uma pergunta que a incomoda e a força a sair de seu estado de letargia, a tela fica preta e um trecho específico é tocado antes de o filme seguir em frente. Há ainda uma das cenas mais musicalmente interessantes do filme, em que Julie e o colaborador e amigo de seu falecido amigo discutem um trecho da partitura e qual seria a melhor maneira de continua-lo: Quando alguém cita os violinos, estes tocam seguindo a partitura que aparece na tela; quando na partitura a percussão é incluída, esta começa a tocar; se alguém fala que percussão não ficaria boa neste trecho, esta se silencia, e a música retoma do mesmo ponto, mas sem ela; e assim vai.
            Ao final, na última cena, a música é tocada em sua integridade, com um coral cantando em grego. A letra, um trecho bíblico, pode ser encontrada na internet; mas não farei uma interpretação dela aqui, não apenas porque essa crítica já está na marca dos 13 mil caracteres mas também porque os níveis de interpretação dela dentro do contexto do filme são vários, que minha cabecinha de jovem inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico apenas começa a entender. Mas deixo aqui a sugestão para vocês a pesquisarem após assistirem o filme e encontrarem seus próprios sentidos para ela. Afinal, como já visto antes, como um bom filme intimista, “A Liberdade é Azul” o tempo todo abre espaço para o público fazer suas próprias interpretações, de acordo com seu próprio contexto emocional e de história de vida. Se é possível narrar histórias inteiras em cima de cenas de poucos minutos de duração, o mesmo poder pode ser encontrado na trilha sonora. Porque afinal, mais do que um filme intimista, “A Liberdade é Azul” é um filme íntimo. Discutindo-o com a pessoa que o assistiu ao seu lado, você verá que ao final vocês estarão falando mais de si mesmos e do que vocês sentem e pensam do que do que de qualquer coisa que o filme de fato mostra.


Avaliação: Vale muito a pena.

domingo, 20 de março de 2016

Sexta-Feira 13

Recentemente assisti “Nosferatu”. Um clássico do cinema, esse filme é uma referência para filmes de terror até os dias de hoje, com seu estilo expressionista, sua linguagem poética e uma fenomenal atuação por parte de Max Schreck como o vampiro Orlok. Seria de se imaginar que eu falaria então desse grande filme, que quase cem anos depois de lançado continua impressionando quem o assiste.
            Que bonitinhos... Não, ao invés disso vou falar de outro filme de terror influente... Embora nesse caso estou tentando entender o porque: “Sexta-Feira 13”.

            E quando digo que estou tentando entender o porquê, eu não estou brincando! Já assisti a esse filme umas três vezes e continuo não vendo o que fez com que ele tivesse o amplo sucesso que teve quando foi lançado, em 1980, arrecadando muito mais que filmes de terror muito melhores lançados no mesmo ano, como “O Iluminado”. Apenas o que é que as pessoas viram nesse filme?!
            Ok, vamos tentar analisa-lo a partir do que muitos consideram seu principal crédito: O de ser o primeiro filme slasher “de verdade”. Para aqueles que não sabem, o slasher é aquele tipo de filme de terror que consiste basicamente de algum psicopata ou serial killer que por algum motivo sai matando pessoas a torto e a direito de formas violentas as mais diversas. Embora o crédito de primeiro filme slasher seja geralmente dado a “Halloween”, de 1978 (apesar de “O Massacre da Serra Elétrica” ser reconhecido como tendo lançado o primeiro protótipo do gênero em 1974), “Sexta-Feira 13” é tratado como tendo lançado as bases para os slashers “de verdade”.
E o que o tornaria um slasher “de verdade”, você talvez me pergunte (ou talvez não pergunte, mas sendo egocêntrico como sou vou partir do princípio que sim)? Em primeiro lugar, é muito mais sanguinolento que os dois filmes supracitados: Gargantas são dilaceradas, cabeças são abertas e sangue é espirrado para todos os lados, enquanto que “O Massacre da Serra Elétrica” e “Halloween” eram muito mais sutis, mantendo o sangue e as partes mais “gráficas” dos assassinatos no escuro ou pura e simplesmente não os mostrando.
Em segundo lugar, a quantidade de mortes é maior: Em “O Massacre da Serra Elétrica”, cinco pessoas morrem ao longo do filme inteiro; em “Halloween”, eram sete; em “Sexta-Feira 13”, dez pessoas morrem durante seus 95 minutos de duração. E isso sendo que o trailer da época dá a impressão de que são treze (eles chegam a mostrar a mesma garota três vezes para isso). Apenas para mostrar qual era afinal o motivo pelo qual as pessoas iriam ver esse filme.

            Além disso, o filme mostra muitas das coisas que mais tarde se tornariam clichês não apenas em filmes slasher, mas em filmes de terror no geral: A pessoa que tenta fugir correndo do assassino, tropeça e morre; um ou mais policiais incompetentes que acham melhor deixar as pessoas à própria sorte quando o filme deixa bem claro que elas estão em uma situação perigosa; o casal de adolescentes que morre logo depois de fazer sexo; o carro que não funciona por algum motivo; a pessoa que diz algo como “Já, já volto” apenas para morrer dois minutos depois; o assassino que mata quase todo mundo com eficiência profissional apenas para por algum motivo mostrar-se incompetente demais para matar a última vítima; o vilão que parece ter morrido apenas para quando tudo parece bem ser revelado que ele está vivo e com muita raiva; até mesmo a ambientação do acampamento no meio da floresta; tudo isso foi usado até a exaustão nos anos que seguiram o sucesso de “Sexta-Feira 13”.
            O problema? Nada disso era original, nem mesmo em 1980! Quase todos esses clichês já haviam aparecido em outros filmes de terror, como “Psicose” e “Halloween”. Aliás, “Sexta-Feira 13” rouba descaradamente desses dois exemplos: Logo no primeiro minuto de filme temos um flashback em que a câmera mostra o ponto de vista do assassino enquanto ele sobe um lance de escadas e mata uma adolescente. Se essa descrição lhe soa familiar, é porque é a mesma descrição que pode ser dada à cena inicial de “Halloween”. Até a própria trilha sonora não é muito original, lembrando em muito a de “Psicose” com certos tons de “Tubarão”.

            Seria possível então argumentar que “Sexta-Feira 13” foi o primeiro a juntar todos esses elementos em um único filme. E, de fato, esses clichês não haviam até então aparecido todos juntos... Em um filme americano. Porque se você for analisar o contexto internacional, verá que tudo isso já havia sido feito no cinema giallo italiano, bastante popular nos anos 60 e 70, inclusive nos Estados Unidos. Se tiver alguma dúvida disso, assista “Torso”, de 1973. É um filme ruinzinho, mas é sobre um assassino, apresentado geralmente através de câmeras que mostram seu ponto de vista, que enlouqueceu após um conhecido dele morrer quando criança, e a partir daí ele tenta se vingar matando de forma sanguinolenta um grupo de adolescentes que gostam de fumar maconha, fazer sexo e desacatar a autoridade.
            Se algum de vocês já assistiu “Sexta-Feira 13”, deve reconhecer aí uma coisinha ou duas.

            Mas ainda não consigo entender: Por que um filme com tão pouca originalidade tornou-se um dos filmes de terror mais bem-sucedidos e famosos de todos os tempos?
            Não é devido ao seu estilo, isso posso ter certeza. Enquanto “Halloween” tinha um estilo artístico bastante marcante, assim como a maioria dos outros filmes de John Carpenter, “Sexta-Feira 13” não possui um estilo direcional muito marcante, parecendo com praticamente qualquer outro filme independente do início dos anos 80. Uma de suas atrizes até já admitiu que nem o via como um filme de terror, e mais como, em suas palavras, “um pequeno filme independente sobre adolescentes despreocupados que estão muito empolgados em um acampamento de verão onde acontece de eles estarem trabalhando como conselheiros de camping. E então simplesmente acontece de eles serem mortos”. Melhor definição para esse filme dificilmente seria possível (talvez empatando com a definição de outra atriz que o chamou de “uma m&rd@”). E justamente essa definição traz consigo o problema do “estilo” de “Sexta-Feira 13”: Por ser tão parecido com qualquer outro pequeno filme independente sobre adolescentes despreocupados feito naquela época, a única coisa que o torna empolgante são suas mortes, que acontecem a uma média de uma a cada 9 minutos. Ou seja: É preciso ficar sentado por 9 minutos de adolescentes irresponsáveis sendo adolescentes irresponsáveis antes de ter alguns segundos de algo interessante. Eu não sei vocês, mas eu acho isso quase de dar sono.

            Isso sem falar que, por parecer com quase qualquer outro filme independente do início dos anos 80, “Sexta-Feira 13” possui todas as breguices que filmes da época tinham e que definitivamente não envelheceram bem, como todos os atores usando shortinhos desconfortavelmente curtos e apertados, tanto homens quanto mulheres, e uma música com efeitos eletrônicos na cena final que se estende até o fim dos créditos (porque afinal, caso você não saiba, havia uma lei nos anos 80 proibindo um filme de ser feito se não tivesse efeitos eletrônicos na trilha sonora).
            Também não é por causa de personagens ou atuações memoráveis. Tirando o vilão (sobre o qual evitarei falar), mesmo tendo assistido esse filme mais de uma vez continuo não conseguindo me lembrar dos nomes ou o que raios eles fazem além de morrerem. Os personagens também não possuem nenhuma personalidade que seja: Quando você vê quem sobrou como a última vítima, tudo o que se consegue dizer é “Sério? Que que essa pessoa fez pra merecer sobreviver?! Não estou conseguindo me lembrar quem é!”. Seria de se imaginar até que a personagem principal seria a que primeiro aparece, uma garota que está atrás de carona para ir ao acampamento; mas ela morre logo na marca dos 22 minutos. É como se os criadores do filme estivessem dizendo “Ah, quem se importa, quem for assistir esse filme vai vir apenas pra ver um monte de adolescentes sendo mortos, não precisamos nos dar ao trabalho de desenvolvê-los ou coisa do tipo!”.
Como se não bastasse os personagens, também não consigo me lembrar o nome de nenhum dos atores. Isso é, tirando Kevin Bacon, que coincidentemente faz aqui um de seus primeiros papeis em filme. Mas mesmo ele eu tenho que toda vez me lembrar que está no filme, porque sua atuação é tão nada de mais quanto a de qualquer outro. É como se os atores tivessem sido escolhidos puramente por serem bonitos e aceitarem trabalhar por um cachê baixo (para seu próprio bem, recomendo não pesquisarem se isso é verdade).
Mas a pergunta ainda não foi respondida: Por que se diz que um filme que nem é tão bom assim influenciou tanto o cinema moderno? No que que ele ajudou a definir toda uma nova era do cinema de terror? E como foi possível esse filme começar uma franquia com tamanha longevidade como a franquia “Sexta-Feira 13”, gerando nove continuações ao longo de mais de vinte anos, além de um crossover com a franquia “A Hora do Pesadelo” e ainda um remake?!

            Bom... Talvez a resposta esteja justamente aí: Na franquia. Embora o conceito de franquia de terror estivesse presente no cinema americano desde a época dos filmes de monstros da Universal, a ideia de que qualquer um podia começar uma franquia não era muito difundida. No caso supracitado, embora os filmes do Drácula, do Frankenstein e do Lobisomem não fossem super-produções, estavam longe de terem um orçamento acessível para qualquer cineasta iniciante. “Sexta-Feira 13”, porém, foi feito com um orçamento de US$550 mil, o que mesmo em 1980 era um orçamento bem modesto. Mesmo que ele não fizesse muito sucesso, o lucro estava quase garantido a partir do momento em que uma grande distribuidora como a Paramount mostrou um leve interesse no filme. Acontece que ele se mostrou um grande sucesso, arrecadando mais de dez vezes o que foi gasto em sua produção.
            Até aí, nada de novo: “O Massacre da Serra Elétrica” e “Halloween” também foram feitos com orçamentos muito modestos e fizeram grande sucesso. A diferença foi que a Paramount resolveu investir em continuações. E não apenas uma, mas três logo de cara, por que não? Eram filmes baratos de se fazer, e com o sucesso do primeiro filme seria fácil ter lucros enormes, mesmo que as continuações não fizessem tanto sucesso de bilheteria!

            Assim surgiu uma nova era na forma de se fazer filmes de terror: Onde o sonho de ganhar muito dinheiro fazendo filmes de baixo orçamento e sem atores que exigissem cachês altos de repente se tornou possível. Mais do que isso: De repente se tornou possível continuar ganhando dinheiro vendendo continuações tão baratas quanto, mesmo que o sucesso diminuísse. Não era necessário bater nenhum recorde de bilheteria para valer a pena continuar investindo em um filme de terror e transforma-lo em uma franquia. De repente grandes produtores não mais desdenhavam os pequenos cineastas de terror independentes; agora os grandes produtores apelavam para estes cineastas, na expectativa de criar uma nova franquia. De repente, até mesmo filmes de terror consagrados começaram a investir em suas próprias franquias. “O Massacre da Serra Elétrica” e “Halloween”, que foram produzidos e lançados sem nenhuma intenção de gerarem continuações, após o sucesso da franquia “Sexta-Feira 13” transformaram-se eles próprios em franquias. E as principais franquias de terror eram, como se pode imaginar, as de filmes slasher.
            Mas e se o público de repente se cansasse de filmes slasher, como de fato aconteceu na década de 90? Não havia problema: Era só os produtores encontrarem algum cineasta independente com uma ideia nova e barata e investirem nessa ideia. O que de fato aconteceu após o lançamento de “A Bruxa de Blair”. Atualmente, filmes de filmagens encontradas (ou found footage) são os novos slashers: Baratos, com grande potencial de lucro e uma grande habilidade em gerarem continuações. Nada disso teria sido possível antes de “Sexta-Feira 13”.
Quanto ao filme que gerou isso tudo? Talvez ele não mereça ter começado toda a forma como filmes de terror modernos são feitos, mas algum mérito ele tem que ter, não? Bem, se for pra dizer algum motivo para assisti-lo, eu diria dois. O primeiro é que, de uma forma curiosa, ele se tornou mais surpreendente atualmente do que deve ter sido na época de seu lançamento. Isso porque, se você ainda não assistiu o filme, mas tem algum conhecimento que seja sobre a franquia “Sexta-Feira 13”, perceberá que há um detalhe muito importante da franquia que não aparece nesse primeiro filme. Não direi que detalhe que é para não estragar a surpresa, mas digamos apenas que a impressão que dá é que os criadores do filme sabiam o quão icônico esse detalhe seria no futuro e propositalmente não o colocaram no primeiro filme da franquia... Ao contrário de só inventarem esse detalhe depois do sucesso desse primeiro filme, mas que seja, vale a surpresa.
E o segundo motivo é, bem, a cena final. Quem já assistiu o filme sabe do que estou falando: Aquele último susto que faz o público pular da cadeira quando nada mais parece que vai acontecer. Sem dúvida essa cena é o grande mérito de “Sexta-Feira 13”: Mesmo já tendo a visto três vezes, toda vez que a vejo tenho um mini-ataque cardíaco. E tenho certeza que se eu vê-la uma quarta vez continuarei levando um dos maiores sustos da minha vida.
Fora esses dois créditos, porém...


Avaliação: Não vale a pena. Um susto genial não faz um filme bom, honestamente.

sábado, 12 de março de 2016

Rocky - Um Lutador

Há não muito tempo atrás, um colega meu se mostrou bastante intrigado quando eu lhe disse que nunca havia assistido nenhum dos filmes da franquia “Rocky”. “Como assim?!”, ele disse, “Você não gosta de cinema?!”.
Pois é, por mais que muitos tenham certo preconceito, quarenta anos depois de seu lançamento não dá mais para negar que “Rocky - Um Lutador” é um clássico do cinema. Mas tenho que admitir que eu próprio, quando resolvi assistir enfim o filme, fiquei em dúvida se eu teria algo para falar sobre ele. Quero dizer, está bem, ganhou o Oscar de Melhor Filme na época, mas será que não foi uma empolgação exagerada? Será que o legado todo do filme não o tornou maior do que realmente é?
Aí assisti “Rocky”. E como sinto muito por algum dia duvidar da qualidade desse filme!

            A história, a essa altura, todos já conhecem: Rocky, um boxeador talentoso, porém fracassado em tudo o mais (interpretado por Sylvester Stallone, caso seja necessário citar), consegue a uma e única chance de sua vida quando o campeão mundial de boxe, Apollo Creed (interpretado por Carl Weathers), em uma jogada de marketing, resolve colocar seu título à prova contra um lutador desconhecido, escolhendo Rocky por critérios quase aleatórios.
            Resumir o filme todo a isso, porém, é desmerecê-lo completamente.

                Por que digo que é um desmerecimento? Porque chega a beirar ao ridículo chamar “Rocky” de “apenas um filme de boxe” considerando que há apenas duas lutas no filme inteiro, e elas ocupam apenas 10% de suas duas horas de duração. Ao invés disso, temos um dos mais simples e, talvez justamente por isso, marcantes dramas do cinema americano.
            Sim, “Rocky” é um drama. Não um filme de ação, como você muitas vezes vê sendo classificado por aí. Vamos analisar o porquê.

            Quando o filme começa, Rocky é um zé-ninguém, vivendo em um apartamento fedido, bagunçado e decrépito em um bairro pobre de Philadelphia. Apesar de ter potencial para ser um bom boxeador, desperdiça isso trabalhando como “quebrador de ossos” para um agiota local (interpretado por Joe Spinell), o que enfurece seu treinador, Mickey (interpretado por Burgess Meredith), que chega a lhe tirar seu armário na academia para favorecer outro boxeador mais dedicado. Desprezado por quase todo mundo, sendo chamado na rua de “bum” (algo como “vagabundo” em inglês), Rocky finge que não se importa com essa reputação, embora percebe-se que de tanto ouvir isso ele chega a acreditar que seja de fato um vagabundo. Os únicos com quem consegue conversar de forma mais aberta são seu amigo Paulie (interpretado por Burt Young), que está bêbado em quase toda cena em que aparece, e a irmã de Paulie, Adrian (interpretada por Talia Shire), uma mulher extremamente tímida e pouco atraente, que trabalha em um pet shop e por quem Rocky é apaixonado, o que ninguém consegue entender, nem mesmo Paulie. Ele até tenta salvar outros de caírem na mesma desgraça que ele, tentando convencer Paulie a não trabalhar para o agiota e dando um forte sermão sobre ter uma má reputação para uma vizinha de 12 anos que está sempre em má companhia, apenas para ser xingado por ela, o que deixa Rocky triste e se perguntando quem ele é pra dar conselho.
Até aí, ele não é muito diferente do personagem de Marlon Brando em “Sindicato de Ladrões”, Terry Malloy, um ex-boxeador que trabalha como capanga para um mafioso, mas não deixa de ser uma boa pessoa. Da mesma forma como Malloy se sente culpado quando um homem que testemunharia contra seu chefe é assassinado, Rocky não gosta de levar seu trabalho de “quebrador de ossos” até as últimas consequências, evitando de fato bater em quem deve dinheiro caso não ache necessário. Rocky também tem um carinho especial por animais, especialmente suas tartarugas de estimação e um cachorro abandonado no pet shop, da mesma forma como Malloy tinha carinho por sua criação de pombos.
            Sim, estou comparando Sylvester Stallone com Marlon Brando. E não me arrependo disso.

            Eis então uma das primeiras e principais coisas que tornam “Rocky” um grande filme: Seu personagem principal, apesar de parecer e, de certa forma, ser, um brucutu, é tão carismático quanto um cachorro. Sim, isso foi um elogio! Assim como um cachorro, Rocky não é muito inteligente, e chega a admitir isso em seu encontro com Adrian (“Eu sou burro, você é tímida, o que você acha, heim?”); porém, também assim como um cachorro, isso não o impede de ter certa sensibilidade, não apenas no sentido de ser sensível e emotivo, apesar de sua aparência exterior e de sua atitude, mas também no sentido de compreender os sentimentos dos outros, mesmo que não saiba o porque de sentirem o que sentem. É por isso que ele sabe que Mickey o despreza, mas não entende o porquê, e é também por isso que ele vê em Adrian algo que ninguém mais é capaz.
            O romance entre Rocky e Adrian, aliás, ocupa um espaço significativamente grande do filme. Poderia se dizer que metade dele ou até mais gira em torno desses dois personagens desajustados que de uma forma estranha se completam, e de como o relacionamento deles evolui ao longo das conturbadas cinco semanas da vida de Rocky que o filme mostra, entre Apollo Creed anunciar sua luta e esta de fato acontecer. Chega a parecer estranho, pensando a respeito, o fato de quase toda sinopse do filme (incluindo a dessa crítica, infelizmente) apresentar “Rocky” como “um filme de boxe com um romance no meio”, e não o contrário!

            Mas “Rocky” não é apenas sobre um bom personagem. É também um filme que aborda temas simples, porém de forma bem escrita (o que é surpreendente, considerando que Stallone escreveu a primeira versão do roteiro em apenas três dias e meio). Claro, há o tema óbvio e um tanto criticável da oportunidade, uma das partes mais essenciais do pensamento americano. Quando Creed anuncia sua ideia de dar a oportunidade para um desconhecido de disputar o título mundial, seu patrocinador até enfatiza o quão americano isso é (ao que Creed responde “Não. É inteligente.”). De fato, a promoção que o filme faz do sonho americano de receber uma oportunidade de demonstrar seu talento e esforço e assim alcançar o sucesso é tão forte que não é raro encontrar artigos por aí classificando-o como um “filme-propaganda”.
Não irei, porém, desconsiderar tanto o filme por isso. Não apenas porque eu acho um desperdício desconsiderar um filme por ser um filme-propaganda (“Encouraçado Potemkin” é abertamente um filme-propaganda, e é uma das obras mais geniais da história do cinema), mas também porque “Rocky”, ao mesmo tempo que o promove, faz também algumas sutis desconstruções ao sonho americano, mostrando que nem sempre as oportunidades são justas. A principal dessas desconstruções pode ser percebida quando Creed, que é negro, diz que sua jogada de marketing funcionará melhor se a oportunidade de lutar contra ele for dada a um branco.
Há também outra leve, mas poderosa desconstrução quando Rocky revela que nem está interessado em ganhar, apenas em chegar ao final dos quinze rounds da luta e provar a todos que ele não é apenas mais um vagabundo, o que vai contra os planos de Creed, que pretende apenas “brincar” com Rocky por um tempo e então nocauteá-lo no terceiro round.

            Nisso chegamos ao segundo grande tema de “Rocky”: O da renovação. Embora mais sutil, esse tema é tão importante ou até mais quanto o da oportunidade. Já na primeiríssima cena ele é apresentado de forma “sutilmente explícita”, em que Rocky luta com outro boxeador e uma imagem de Jesus aparece no fundo, com “ressureição” escrito embaixo. Como dito antes, Rocky quer aproveitar a oportunidade que lhe é dada para renovar sua reputação de vagabundo, mostrar que ele não é apenas isso. Ele também se renova fisicamente, pois no começo, devido a seu potencial desperdiçado, como diz Mickey, ele é um lutador bom, mas desajeitado e destreinado demais para ser mais que isso. Embora no começo tente ignorar isso, Rocky finalmente percebe que precisa melhorar suas habilidades físicas quando se vê exausto tentando subir as escadarias do Museu de Arte de Philadelphia após uma corrida matinal. Sua renovação se dá enfim na forma de uma das montagens de treinamento mais icônicas de todos os tempos.
            Mas se você realmente quer prova de que a renovação é um dos, senão o, principal tema de Rocky, é só acompanhar a trajetória de Adrian. Quando o filme começa, ela é uma mulher de aparência sem graça e quase patologicamente tímida (um personagem chega a chama-la de “retardada”). Depois que ela começa a namorar Rocky, porém, ela vai se tornando cada vez mais autoconfiante e, devido a isso, cada vez mais bonita (note como o cinza das roupas dela no começo do filme vai sendo substituído pelo vermelho), a ponto de Rocky dizer que ela está “de parar o trânsito”. De certa forma, pode-se dizer que Rocky mostrar que consegue ver através de sua aparência e timidez inicial é a oportunidade que ela precisava para criar coragem. A partir daí, é impressionante ver essa mulher antes tão quietinha e incapaz de reagir até mesmo quando Rocky lhe contava uma piada transformar-se em alguém capaz de reagir e gritar quando seu irmão a acusa injustamente de “não ser boa com ele”. Tenho que dar os merecidos parabéns a Talia Shire por tal performance!

            Outro que merece meus parabéns é o diretor do filme, John G. Avildsen, que chegou a ganhar o Oscar de Melhor Diretor por esse filme. O ritmo que ele dá ao filme é tão gostoso de assistir que quando acaba nem se percebe que duas horas se passaram. De certa forma, a direção dele me lembrou muito (sei que é um anacronismo, mas que seja) a de Hayao Miyazaki: As cenas fluem no seu próprio ritmo, sem pressa, permitindo que o público não apenas assista o filme, mas também observe, aprecie os momentos da vida de Rocky enquanto ele (e o público) espera e se prepara para sua tão aguardada luta. Ao mesmo tempo, o filme não chega a de fato “testar a paciência do público”; não é um filme lento demais, nem rápido demais. Quando uma cena se prolonga, não é por mera encheção de linguiça, e sim para construir melhor os personagens.
            Sim, estou comparando “Rocky” com um filme de Miyazaki. E continuo não me arrependendo.
Pegue, por exemplo, a cena logo nos primeiros cinco minutos do filme, quando aparecem os créditos iniciais. Após uma luta, vemos Rocky andando de noite pela rua, brincando com uma bola de borracha, assobiando, parecendo de fato um vagabundo que não faz nada de útil; ao passar pelo pet shop, porém, vemos ele brincar pela vidraça com um filhote de cachorro, mostrando que apesar dessa aparência ele é uma boa pessoa. É uma cena lenta, sem música, mas que nos introduz de forma simples a esse personagem que até então só havíamos visto socando outro cara.

                Outra cena que serve como um bom exemplo é a em que Rocky leva Adrian para uma pista de patinação no gelo prestes a fechar. Mais uma vez, não há música, e por três minutos tudo o que se vê é Rocky e Adrian conversando enquanto dão uma volta pela pista vazia. Algo aparentemente tão banal, porém, revela-se um momento importante do filme, pois vemos esses dois personagens desajustados e que não parecem saber conversar direito agindo de forma natural quando um com o outro, tendo um legítimo encontro sem quaisquer exageros românticos, Rocky se abrindo e Adrian rindo de uma forma como não fazem com nenhum outro personagem.
            Há também uma terceira cena, mais curta, quando Rocky finalmente recebe a oferta de lutar contra Creed. Enquanto o patrocinador lhe diz que é uma chance que ele não pode recusar, a câmera se aproxima do rosto de Rocky, e quando o outro para de falar, ela foca no rosto de Stallone por ainda alguns segundos e este olha direto para a lente, como se estivesse perguntando para o público, sem dizer uma única palavra, “E agora, o que você me diz? Aceito ou não?”.

            Mas o verdadeiro gênio de Avildsen se revela nas duas cenas mais icônicas do filme: A montagem de treinamento ao som de “Gonna Fly Now” e a brutal luta entre Rocky e Creed.
            Quanto à primeira, mais uma vez o ritmo é parte importante, pois o público já havia visto Rocky treinando antes. Naquela cena, porém, o ritmo havia sido mais lento, pois o próprio Rocky estava mais lento, despreparado. Agora, porém, ele está mais forte, mais resistente, e as cenas voam da mesma forma como ele parece voar por sobre os degraus da escadaria do museu.

                E então temos a luta final. Após uma entrada espalhafatosa de Creed (com uma reação de Rocky que não irei colocar aqui, pois é uma expressão preciosa demais para ser colocada em uma imagem fora de contexto), a luta começa devagar e a câmera se mantém afastada do ringue, como uma transmissão esportiva, com direito até a uma narração. A câmera, porém, vai aos poucos entrando no ringue e ficando mais próxima dos lutadores à medida que os rounds passam e a luta vai ficando mais brutal.
E então o terceiro round chega. Aí o ritmo já muda. Não há mais narração. Ao invés disso, temos uma das músicas mais arrepiantes do filme, enquanto Rocky e Creed agora lutam para valer. A câmera e a edição já usam mais recursos cinematográficos, enquanto a brutalidade da luta vai aumentando e aumentando. Os rostos de Rocky e Creed são agora duas massas inchadas, roxas, sangrando. Creed já não está mais brincando, mas Rocky continua a luta, porque ele quer chegar até o fim, até o fim, até o fim... E aí já não conto mais nada para não estragar o filme. Mas é uma luta de tal brutalidade que é possível quase sentir cada um dos golpes (curiosidade: Stallone e Weathers se machucaram de verdade durante as filmagens, Stallone machucando as costelas e Weather danificando o nariz. Fãs do filme entenderão a ironia). E isso se estende por quase dez minutos! Chega-se a ficar surpreso com ambos os personagens estarem ainda vivos no final da luta!

            Por fim, mas não menos importante, há o uso da trilha sonora, composta por Bill Conti. Claro que músicas como “Gonna Fly Now” e “Going the Distance” entraram para a história do cinema, sendo tantas vezes parodiadas, mas o filme possui mais do que isso. A maior parte do tempo, curiosamente, não há trilha sonora, apenas sons ambientes, o que dá ao filme um tom mais dramático e sério, sem breguices. Mas quando ela aparece, ela não é apenas bombástica, épica e inspiradora, como os dois exemplos anteriores. Ela pode também ter pequenos peças de piano, e emotivas como as compostas por Joe Hisaishi, mesmo compositor dos filmes de Miyazaki. Aliás, (sei que isso é outro anacronismo, mas de novo que seja) há muito de Joe Hisaishi nessa trilha sonora, devido principalmente às oitavas altas delicadas e uso constante de si e mi bemol, que Hisaishi usou bastante em algumas de suas trilhas sonoras, como a de “Princesa Mononoke”. Sim, eu procurei e comparei as partituras para comprovar isso. Por favor, me deem um prêmio.
           

Avaliação: Vale a pena. Esqueçam o preconceito e assistam! Merece o status de clássico. Agora chega que passei o dia inteiro escrevendo isso!

sexta-feira, 4 de março de 2016

Vale a Zoeira? Mortal Kombat - A Aniquilação

            Em primeiro lugar: Eu não me arrependo de nada que escrevi em minha crítica de “Mortal Kombat”.
            Em segundo lugar: Mesmo assim, admito que, comparado com sua continuação, “Mortal Kombat: A Aniquilação”, “Mortal Kombat” é uma obra-prima.

            Esse filme é... Errado. Apenas... Errado. Não há nada nele que tenha sido feito corretamente. Tanto que nem sei direito por onde começar a falar dele! Vejamos...
            Para os que assistiram o primeiro filme, lembram-se que o final dele praticamente exigia uma continuação? É de se imaginar então que o elenco voltaria então para o segundo filme, certo?

            Errado. Do elenco inteiro de “Mortal Kombat”, apenas dois atores reprisam seus papeis: Robin Shou como Liu Kang e Talisa Soto como Kitana (ah, ótimo, justamente a cara de peixe morto...). Todos os outros personagens foram substituídos por novos atores. Imagino que ao verem o quão ruim esse filme seria todos começaram a queimar seus contratos. Mas ei, o elenco do primeiro filme já não foi dos melhores, uma mudança só poderia ser para melhor, certo?
            Errado. De alguma forma, os novos atores conseguem ser piores que os originais! O pior caso sendo o de Raiden, que ao invés de ser interpretado por Christopher Lambert é interpretado aqui por James Remar. Em ambos os filmes, o papel de Raiden é basicamente explicar o que raios está acontecendo (como se isso fosse possível) e mandar os personagens para lugares para fazerem coisas (como se nos importássemos). Lambert, porém, por mais que “pareça” estar bêbado enquanto recita suas falas no primeiro filme, ainda assim transmite um mínimo que seja de confiança nelas; algo que Remar se mostra incapaz, parecendo confuso demais com o que ele próprio está explicando. Nada muito bom para um personagem que é supostamente um deus.

            Como se não bastasse, no meio do filme seu personagem torna-se mortal, o que por algum motivo muda sua aparência. Bom, ao menos eles vão muda-la para ele se tornar mais parecido com como ele era no jogo, considerando que no primeiro filme Raiden não se parecia em nada com o personagem original, certo?
            Errado. Eis como Raiden se parece no jogo:

            Eis como ele se parece no primeiro filme:

            E eis como ele se parece após virar mortal em “A Aniquilação”:

            Ah, ótimo! Ele não está nem remotamente parecido com Raiden. E, sendo mortal, nem sequer tem mais seus poderes de raios! Não dá nem mais para chama-lo de Raiden!
            Mas chega de falar de Raiden, vamos falar dos outros personagens. Ou, melhor dizendo, dos 17318488927912 personagens do jogo que aparecem nesse filme. É, eis outro problema de “A Aniquilação”: Há um claro excesso de personagens. Oficialmente, a história do filme é baseada na do jogo “Mortal Kombat 3”, que possui 17 personagens com os quais se pode jogar. E o filme parece sentir a necessidade de mostrar todos eles e ainda mais alguns. O problema? A maioria aparece sem qualquer explicação, mostra a cara por só dois minutos e então ou morre ou desaparece de novo sem qualquer explicação. O que, considerando o quão vasta é a mitologia de “Mortal Kombat” e o quão longas as histórias de origens de alguns dos personagens conseguem ser, é no mínimo um desperdício.
Mas os personagens do primeiro filme que reaparecem aqui, pelo menos eles se salvam, certo?
Errado. Como se não bastasse tirarem qualquer traço de Raiden em Raiden, outro personagem principal do primeiro filme que é destruído (um tanto literalmente) é Johnny Cage (aqui interpretado por Chris Conrad ao invés de Linden Ashby), que é morto nos primeiros seis minutos de filme. Seis minutos! Não que eu pessoalmente tenha saudades dele (pra falar a verdade, o achei um tanto irritante no primeiro filme), mas muita gente gosta do Cage de Ashby, e há os que o consideram o melhor personagem do primeiro filme, então é, belo jeito de irritar os fãs, “A Aniquilação”!
Outros dois personagens do primeiro filme que reaparecem aqui são Sub-Zero e Scorpion... Por apenas cinco minutos e sem nenhuma explicação que seja, ainda mais considerando que ambos foram mortos em “Mortal Kombat”. Pelo menos para Sub-Zero eles dão uma desculpa de que esse não é o mesmo Sub-Zero, mas sim seu irmão mais novo (que por algum motivo também se chama Sub-Zero), mas quanto a Scorpion nem isso eles dão! Sendo familiarizado com a mitologia dos jogos, eu sei que Scorpion é um espectro e portanto não pode de fato morrer, mas isso nunca é explicado, então além de deixar o filme impossível de ser entendido por quem não é já fã dos jogos, sua reaparição aqui não tem motivo algum além de faze-lo lutar contra Sub-Zero, provavelmente por exigência dos fãs que ficaram bravos que tal luta não aconteceu no primeiro filme; sequestrar Kitana enquanto grita “Suckers!”, o que soa absolutamente ridículo vindo dele; e então desaparecer para nunca mais ser visto no resto do filme. Sub-Zero sofre o mesmo destino.
Sabem, se vocês querem usar personagens populares de seu filme anterior, tudo bem, podem usar, mas ao menos deem um motivo para eles estarem no filme além de uma luta aleatória!
Outro personagem que reaparece aqui... Por algum motivo... É Jax. É, lembra-se que ele estava no primeiro filme por dois minutos, interpretado por Gregory McKinney? Bem, ele está de volta aqui (interpretado agora por Lynn “Red” Williams), sem ninguém ter pedido por isso!
Mas ei, pelo menos agora ele possui os braços mecânicos que ele tinha no primeiro filme! O que seria algo bom, se não viesse junto com o fato de o roteiro de “A Aniquilação” ter tornado o personagem extremamente estereotipado, com ele fazendo o papel do “típico parceiro negro engraçado”, e apenas isso.
Quanto aos novos personagens, alguns deles não têm sequer seus nomes citados, um caso sendo Ermac, que Sonya Blade (nesse filme sendo interpretada por Sandra Hess ao invés de Bridgette Wilson) chama apenas de “sobra”, o que, pensando bem, é basicamente seu papel no filme.
Sabem, na época em que o primeiro filme de “Mortal Kombat” foi lançado muita gente disse que pelo menos ele foi melhor que o filme de “Street Fighter”, que teve vários problemas, mas um dos principais era o excesso de personagens do jogo que eram portanto desperdiçados. Por que então a continuação de “Mortal Kombat” está fazendo esse mesmo erro que tantos elogiaram o primeiro filme por ter evitado?!
Outra que sofre destino tão ruim quanto é Mileena. Nos jogos de “Mortal Kombat”, Mileena é um clone do mal de Kitana. E, de fato, quando Sonya Blade a vê sua reação inicial é confundi-la com Kitana. Porém mesmo algo tão simples quanto isso é destruído no filme, por dois motivos: 1) O fato de Mileena ser um clone de Kitana não é citado; pra falar a verdade, nem o nome dela é citado, só sabemos que a mulher que aparece é Mileena porque a roupa é a mesma; e 2) Ela não é nem mesmo interpretada pela mesma atriz que Kitana (sendo ao invés disso interpretada por uma tal de Dana Hee, segundo os créditos), então Sonya Blade confundir as duas não faz o menor sentido.
Qual era o grande problema em convencer Talisa Soto a vestir uma roupa de ninja cor-de-rosa e lutar na lama? É, porque tem isso também: A luta entre Sonya Blade e Mileena é feita totalmente na lama, com ambas se agarrando enquanto suas roupas ficam grudadas em seus corpos. E se você acha que isso é apenas uma coincidência, que não é o fetiche de um diretor tarado, após a luta (que, como tudo nesse filme, começa e termina sem explicação ou contexto) Jax comenta com Sonya que ela “fica boa coberta de lama”.

            Mas ei, o quão mais tarado esse filme pode ser?

                Eu me arrependo de ter perguntado.
            E para o caso de você estar se perguntando, essa mulher é supostamente Jade (interpretada por Irina Pantaeva). Não me pergunte porque o filme exige que ela vista quase nada no meio da neve, ainda mais considerando que o resto do filme ela usa uma roupa razoavelmente parecida com a que ela usa nos jogos. Aliás, todo o papel de Jade no filme não tem muito sentido: Uma hora ela ajuda os heróis, aí descobre-se que ela é uma espiã e estava o tempo todo levando-os para uma armadilha, mas então os heróis precisavam ir lá de qualquer forma, e ela sabia disso, então não faria mais sentido leva-los para longe, e por que estou pensando tanto nisso?

            Vejamos, já falei aqui dos personagens principais, dos personagens que retornam do primeiro filme, dos personagens novos, o que mais falta? Ah, sim, o vilão! Sendo uma continuação direta de “Mortal Kombat”, e parando exatamente no ponto onde o primeiro filme acaba, o vilão de “A Aniquilação” é Shao Kahn, o imperador do mundo paralelo de Outworld apresentado na última cena do primeiro filme, e aqui interpretado por Brian Thompson. E o que dizer de Shao Kahn nesse filme, além do fato de que tudo o que for possível para tornar um vilão menos imponente foi feito com ele? Para se ter uma ideia, eis como Shao Kahn se parece nos jogos:

                Eis como ele se parece na cena final de “Mortal Kombat”:
             E eis enfim como ele se parece em “A Aniquilação”:

            Como se uma máscara e uma falta de músculos dessas não tirassem o suficiente de sua imponência, o filme ainda insiste que ele apareça sem máscara durante metade de sua duração:

                E como se essa cara e o fato de o ator manter essa mesma expressão durante o filme inteiro não tirassem o suficiente de sua imponência, o roteiro ainda insiste em trazer todo um drama familiar envolvendo Shao Khan tentando impressionar seu pai (interpretado por Reiner Schöne), que os créditos colocam como sendo Shinnok, apesar de na história dos jogos Shinnok e Shao Kahn não possuírem nenhum parentesco (e o Shinnok desse filme não se parecer em absolutamente nada com o original). A necessidade de Shao Kahn impressionar seu “pai” (e o público) é tão grande que em uma cena, ao invés de andar o um degrau que separa seu trono de um corredor, ele vai de um lugar ao outro com um salto mortal absolutamente desnecessário. Como se não bastasse, Raiden também é envolvido nesse drama familiar, apesar de nunca antes ou depois ter possuído qualquer parentesco com nenhum dos dois outros personagens.
            Parabéns, criadores de “A Aniquilação”. Além de mostrarem que vocês não estão nem aí para os jogos baseados nos quais estão fazendo um filme, ainda deram um jeito de arruinar completamente um dos vilões mais famosos e imponentes do mundo dos vídeo games.

                Vejamos, o que mais falta falar sobre o filme... Ah, sim, a história!.. Ou o que quer que o filme tenha no lugar dela. Basicamente o enredo inteiro do filme pode ser resumido em duas frases: “Shao Kahn invade a Terra. Lutas acontecem”. Ponto. 90% de “A Aniquilação” constitui de uma sequência aleatória de lutas seguidas por Raiden tentando explicar o porque de tudo isso estar acontecendo. Coloco 90% porque os créditos ocupam 10% do filme. Metade das cenas não têm sequer uma razão plausível para estarem no filme. Há também alguma coisa envolvendo a mãe de Kitana, Sindel (que por algum motivo é aqui interpretada por Musetta Vander, uma atriz apenas quatro anos mais velha que Talisa Soto), mas mesmo tendo assistido esse filme já duas vezes eu ainda não entendo qual é a importância dela.
            Quanto aos efeitos especiais de “A Aniquilação”, algo quase impossível de não se notar... Bem, eu poderia escrever ainda uma redação inteira sobre como os efeitos computadorizados desse filme parecem ter sido feitos na década de 80 (sendo que ele foi lançado em 1997), mas para economizar sua leitura, acho que uma imagem vale mais que mil palavras:

            E isso porque não sei fazer GIF, senão lhes mostraria como as criaturas computadorizadas desse filme são tão mal animadas que parecem feitas em stop-motion.
            Mas ainda não respondi a grande pergunta do título: “Mortal Kombat: A Aniquilação”, apesar, ou, melhor dizendo, por causa de todos esses problemas, vale a penas ser assistido pela zoeira? Sendo bem sincero... Sim! Sabe em filmes de comédia ou animações, aquela cena em que o personagem está assistindo algum filme de ação que não existe de verdade, e é tão ridículo e mal feito que você se repete que seria impossível um filme assim ser feito na vida real? “Mortal Kombat: A Aniquilação” é esse filme dentro do filme. É um filme que quando você assiste alguma cena isolada, como, digamos, no trailer, você jura para si mesmo que esse não é um filme de verdade, que é apenas uma piada feita por fãs ou um desses trailers falsos que aparecem por aí, mas então você assiste a coisa toda e percebe que o filme inteiro é assim: Apenas lutas e mais lutas aleatórias, praticamente sem história, e tão malfeitas e com valores de produção tão pobres que não dá pra acreditar que alguém de fato resolver investir nisso.
Se você acompanhou a campanha de marketing de “Trovão Tropical”, em que um monte de trailers falsos de filmes super ruins foram lançados na internet, e ficou com vontade de assistir um deles apenas para rir da cara de algo tão estúpido, assista “Mortal Kombat: A Aniquilação”. Você não vai se arrepender.


Avaliação: Vale a zoeira