Ok,
antes que falem qualquer coisa, irei direto ao ponto: Eu sei que vou me arrepender dessa crítica. Não estou dizendo isso
achando que vão falar mal do jeito como a escrevi. Como se alguém se importasse
de verdade com essa palhaçada toda, essa mistura de ideias já previamente
escritas e nada originais apenas compiladas e escritas por um jovem
inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico, que escreve sobre filmes
velhos e já muito criticados porque tem medo de escrever sobre algo novo e
dizer bobagem. Mas não é por isso que digo que sei (em itálico) que vou me arrepender dessa crítica. Eu digo que sei que vou me arrepender dessa crítica
porque é um fato que pura e
simplesmente não tenho como fazer uma boa crítica desse filme e dos que o
seguem na trilogia que ele compõe. Como eu disse, sou um jovem inexperiente,
pedante, pretensioso e egocêntrico, que acha que na flor de seus 20 anos tem o
“dever” de falar de um filme tão recheado de simbolismos e referências
clássicas que só entenderei em toda sua complexidade provavelmente aos 40, e
olhe lá! Ei, é provável que no meio do processo de escrever essa crítica eu
entre em desespero e pesquise na internet o que é possível falar sobre esse
filme! Ei, é ainda mais provável que eu tenha já feito isso antes mesmo de
escrever esse parágrafo!
Então,
sem mais delongas, vamos mostrar uma imagem do cartaz de “A Liberdade é Azul”
antes de escrever esse fiasco que chamo de crítica. Mas só amanhã, porque já é
meia-noite e estou com sono. Já vi que será mais um domingo que passarei o dia
inteiro trancado em meu quarto escrevendo e xingando mentalmente qualquer um
que ouse cometer o crime de me chamar para almoçar. Ai, ai...
Pronto,
são 11 da manhã, o que quer dizer que provavelmente essa crítica irá sair lá
por umas 9 da noite. Não que eu fique pensando e relendo e reescrevendo minhas
críticas até achar que elas estão perfeitas. Quase nunca reescrevo minhas
críticas. Demoro todo esse tempo porque passo horas apenas olhando para a tela
do computador, dando uma pesquisada nas imagens do filme disponíveis no google,
ouvindo música, de vez em quando dando uma stalkeada em alguém no facebook,
enfim, procrastinando eternamente. Mas não ouse falar comigo. Direi que estou
muito ocupado com minhas coisas e que não quero ninguém me interrompendo,
sequer para comer. Nessas horas, eu quero apenas que o mundo desapareça e só
exista eu, eu e essa crítica que eu escrevo.
Enfim,
“A Liberdade é Azul” é o primeiro filme da chamada “Trilogia das Cores”, do
diretor polonês Krzysztof Kieslowski (embora o filme todo tenha sido filmado na
França), três filmes com histórias separadas cujos temas giram em torno do lema
nacional francês (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, para quem ainda não
sabe). Ao invés de terem um sentido político, porém, nessa trilogia essas
palavras são tratadas em seu sentido pessoal, íntimo. Assim, a liberdade que “A
Liberdade é Azul” aborda é a liberdade de se isolar do resto da humanidade, de
não fazer absolutamente nada por ninguém, de não ter passado, futuro, sequer
presente.
O
filme conta a história de Julie (interpretada ninguém menos que Juliette
Binoche, uma das maiores atrizes francesas vivas). Logo no começo do filme, durante
uma viagem, sua família sofre um acidente de carro, no qual morrem seu marido,
um famoso compositor que escrevia uma música em comemoração à unificação da
Europa (o filme foi filmado em 1992, um ano após o fim da União Soviética), e
sua filha de cinco anos (ou sete? Não consigo me lembrar agora e não sei
francês para saber se a legenda estava correta). Julie até tenta cometer
suicídio ao receber a notícia no hospital, mas não consegue engolir a overdose
de pílulas. Mesmo assim, Julie está disposta a se desligar do resto do mundo,
quase uma espécie de “suicídio em vida”, por assim dizer: Vende quase todos os
pertences de sua casa, destrói as partituras da música inacabada de seu marido
(que o filme sugere aqui e ali que foi ela que escreveu), e passa a morar
sozinha em um apartamento em Paris sob seu sobrenome de solteira, evitando
contato com todos os seus conhecidos e mantendo uma filosofia rígida de não se
envolver em problemas alheios.
Mas
eis que esse plano de Julie vai dando cada vez mais errado, à medida que tudo
vai forçando-a a aos poucos a se reconectar com o resto do mundo: Ao não
assinar um abaixo-assinado para expulsar uma moradora do prédio que trabalha
como prostituta, seguindo sua filosofia, ela acaba assim salvando a mulher, que
passa a se sentir endividada com Julie; um jovem que presenciou o acidente que
matou seu marido e filha finalmente a encontra para devolver-lhe um colar com
uma cruz; uma infestação de ratos em seu apartamento a força a pedir emprestado
o gato de seu agente imobiliário; e vários outros golpes que o destino lhe
oferece para mostrar que não é tão fácil assim se livrar de tudo e viver em
total isolamento, que é preciso “se segurar a algo”, como um personagem lhe diz
em uma cena.
Caso
você não tenha ainda assistido esse filme, já vou avisando: Não espere dele
muita ação ou sequer muita fala. A direção de Kieslowski é parada até mesmo
para os padrões de cinema europeu. A impressão que dá à primeira vista é que
cenas inteiras poderiam ser descritas em uma frase ou duas.
Ou
será que não?
A
palavra que melhor define “A Liberdade é Azul” é intimista: Por mais que pouca coisa aconteça no exterior, um
verdadeiro turbilhão está acontecendo na mente de Julie, em sua luta por se ver
livre de tudo e todos e, ao mesmo tempo, não ser capaz de cortar totalmente
seus laços. Percebe-se isso em cada cena em que ela aparece. Mais do que
percebe-se: Sente-se. Cada olhar de
Julie, cada gesto de Julie, somos transportados para dentro de sua mente, dando
a impressão de que não se está assistindo um filme, mas sim lendo um livro com
páginas e páginas de monólogos interiores, flashbacks e descrições de objetos e
o que eles significam para a personagem. O filme, porém, continua sendo um
filme: Não há páginas em um filme. E, embora um filme possa ter um(a)
narrador(a), esse não é o caso em “A Liberdade é Azul”. Todas essas páginas e
páginas de monólogos interiores, flashbacks e descrições de objetos e o que
eles significam para a personagem são apresentadas “apenas” como imagem e som.
Se há um filme que prova o ditado popular “uma imagem vale mais que mil
palavras”, é esse.
E,
sendo um filme, Kieslowski não seria capaz de se aprofundar na mente de sua
personagem sem alguém que a atuasse bem o suficiente para expressar páginas e
páginas de monólogos interiores, flashbacks etc. etc. em um único gesto. E
Juliette Binoche merece todos os Globos de Ouro, Césars e Volpis (prêmio do
Festival de Veneza) que recebeu por sua atuação nesse filme. Com pouquíssimas
falas, sua atuação é principalmente física. E que desafio ela tinha em mãos
para desenvolver de forma quase exclusivamente física! Julie é uma personagem
que sofre de uma constante luta interna ao longo do filme, pois ao mesmo tempo
que reprime suas emoções a todo e qualquer custo estas não deixam de estar lá,
prontas para se jogarem para fora a qualquer momento. Sendo assim, Juliette
Binoche está em uma constante divergência expressiva: Olhando seu rosto, seus
olhos, ela está quase sempre com a mesma, perdoem-me a palavra, “cara de b#st@”,
com o olhar distante, muitas vezes cabisbaixo, como se sua mente estivesse em
qualquer outra dimensão (uma bem deprimente, aliás) que não essa, e como se
qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que a perturbe desse estado quase
vegetativo que ela tanto quer alcançar fosse um incômodo.
Seus
gestos, porém, estão constantemente traindo Julie. Se ela se esforça para
manter uma eterna expressão neutra, a forma como ela se mexe, a forma como ela
segura um objeto, anda, come, tudo mostra um turbilhão emocional que está
acontecendo dentro dela, e que ela procura reprimir. Cada movimento é uma
página desse enorme e profundo livro que é “A Liberdade é Azul”.
Nisso,
temos o que é provavelmente uma das minhas cenas favoritas, quando Julie tira
tudo de dentro de sua bolsa e encontra entre as coisas uma espécie de doce
azul, que ela procede em desembrulhar e comer. Já é a quarta vez que assisto
esse filme, e toda vez me impressiono com essa cena. Se Binoche fosse uma atriz
apenas 1% menos genial do que é, essa cena não funcionaria. Notem a forma como
as mãos dela param ao ver o doce e, principalmente, a forma como ela o come.
Não, comer não é o verbo certo: destruir
com os dentes é mais apropriado. Mal vemos ela engolir o doce, apenas
ouvimos o incessantes crac, crac, crac dele sendo quebrado dentro de sua boca.
Estou
com fome. Terei que ir em algum restaurante com meu pai. Pelo menos uma hora ou
duas sem escrever. Mas por que agora não me sinto mais tão incomodado com isso
quanto de manhã?
De
fato são 5 da tarde e só agora voltei a escrever. Mas qualquer chance de essa
crítica seguir boa e consistente foi destruída. Estou alegre, acabei de
assistir um vídeo no Youtube que me fez rir até a barriga doer. Era para eu
estar triste, sério, para que eu pudesse fazer um paralelo entre o filme e meu
estado emocional! Por que nem isso eu consigo?!
Mas enfim, voltando
para a cena do doce. Notem o olhar de Binoche, distante, e ao mesmo tempo a
forma como o queixo dela chega a tremer enquanto come, como quando estamos com
muita, muita raiva, prontos para gritar. E a forma como chega a bufar enquanto
morde o doce (algo parecido com um pirulito) até o cabo, que ela procede em
jogar na lareira. A cena dura um minuto e não tem qualquer música, mas ao vê-la
passa na cabeça toda a história do doce: Que ela o comprara no começo da
viagem, como prêmio para a filha caso ela se comportasse, embora planejava
dá-lo de qualquer jeito, pois não tinha dúvidas do bom comportamento da filha
durante as longas horas no carro, que quando ela primeiro põe o doce na boca
ela não o morde pois nunca o comeu, embora a filha gostasse, e queria saber
qual era afinal o gosto... E nada disso é dito ou mostrado em cena! São meras
suposições, histórias que são possíveis de se desenvolver na cabeça do público.
Esse é o tal efeito de
livro de “A Liberdade é Azul”: Por justamente ter um ritmo tão lento e quieto,
abre-se espaço para o público imaginar uma narração na cabeça e inventar suas próprias
histórias de fundo que não são contadas no filme. Eu, por exemplo, imaginei
essa porque foi o que veio à minha cabeça quando a vi. Mas outros podem “inventar”
outras histórias. Alguém pode imaginar, enquanto Julie vê uma imagem de seu
marido, que ele era o professor de música dela, que ele dizia que ela era sua
aluna mais talentosa, que se casaram apenas um ano após se conhecerem... As
possibilidades são ilimitadas, mas nada disso é mera viagem: É “real”, pois o
filme propositalmente abre espaço para isso.
Querem ver? Peguem a
cena em que Julie entra no “Quarto Azul”, já vazio e livre de qualquer mobília,
e imaginem o que havia nesse quarto. Mas não apenas imaginem: narrem. Vão assistindo o filme e, ao
chegarem nessa cena, comecem: “Julie entrou no Quarto Azul. De fato, como havia
pedido, tudo já havia sido tirado lá de dentro, só restando a lâmpada no teto,
com suas continhas de vidro azul penduradas. Veio-lhe à memória o dia em que
ela e seu marido mandaram pintar aquele quarto...”. E veja a magia acontecer.
Mas
“A Liberdade é Azul” não é só feito de momentos silenciosos que abrem espaço
para a reflexão do público. Há também trilha sonora, composta por Zbigniew
Preisner. O interessante, porém, não é a trilha sonora em si, mas como ela se
torna ao longo do filme praticamente uma personagem em si, participando de fato
do filme, não sendo apenas um som de fundo. Isso porque a trilha sonora que
ouvimos, dentro do universo do filme, existe de verdade, sendo a música que o
marido de Julie compôs para comemorar a unificação da Europa. Sendo assim, ela
aparece em momentos bastante específicos do filme, e nunca sem importância para
o desenvolvimento da história e, principalmente, de Julie. Sempre que ela se vê
sozinha com seus pensamentos, a música aparece, literalmente iluminando a tela
em tons de azul. Quando alguém lhe faz uma pergunta que a incomoda e a força a
sair de seu estado de letargia, a tela fica preta e um trecho específico é
tocado antes de o filme seguir em frente. Há ainda uma das cenas mais
musicalmente interessantes do filme, em que Julie e o colaborador e amigo de
seu falecido amigo discutem um trecho da partitura e qual seria a melhor
maneira de continua-lo: Quando alguém cita os violinos, estes tocam seguindo a
partitura que aparece na tela; quando na partitura a percussão é incluída, esta
começa a tocar; se alguém fala que percussão não ficaria boa neste trecho, esta
se silencia, e a música retoma do mesmo ponto, mas sem ela; e assim vai.
Ao
final, na última cena, a música é tocada em sua integridade, com um coral
cantando em grego. A letra, um trecho bíblico, pode ser encontrada na internet;
mas não farei uma interpretação dela aqui, não apenas porque essa crítica já
está na marca dos 13 mil caracteres mas também porque os níveis de
interpretação dela dentro do contexto do filme são vários, que minha cabecinha
de jovem inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico apenas começa a
entender. Mas deixo aqui a sugestão para vocês a pesquisarem após assistirem o
filme e encontrarem seus próprios sentidos para ela. Afinal, como já visto
antes, como um bom filme intimista, “A Liberdade é Azul” o tempo todo abre
espaço para o público fazer suas próprias
interpretações, de acordo com seu próprio contexto emocional e de história de
vida. Se é possível narrar histórias inteiras em cima de cenas de poucos
minutos de duração, o mesmo poder pode ser encontrado na trilha sonora. Porque
afinal, mais do que um filme intimista, “A Liberdade é Azul” é um filme íntimo. Discutindo-o com a pessoa que o
assistiu ao seu lado, você verá que ao final vocês estarão falando mais de si
mesmos e do que vocês sentem e pensam do que do que de qualquer coisa que o
filme de fato mostra.
Avaliação: Vale muito a pena.