domingo, 5 de junho de 2016

Quando Éramos Reis

            Ontem, quando fui checar meu facebook, tive uma grande surpresa quando vi minha linha do tempo inundada com fotos do boxeador Muhammad Ali e mensagens de “Fight like a butterfly, sting like a bee” (“Voe como uma borboleta, pique como uma abelha”, para quem não manja de inglês). O motivo, a essa altura, todos devem saber: Ali faleceu aos 74 anos, vítima de um suposto choque séptico, embora já estivesse hospitalizado devido a uma doença respiratória e, paralelo a isso, lutasse há vários anos contra o Mal de Parkinson. Considerado por muitos (e principalmente por si mesmo) como um dos maiores lutadores de boxe de todos os tempos, Ali foi não apenas um grande lutador, tendo vencido o título mundial de pesos-pesados três vezes, além de também ter recebido a medalha de ouro olímpica em 1960 e, ao todo, vencer 56 das 61 lutas que enfrentou, 37 delas por nocaute (o que é ainda mais surpreendente sabendo que ele esteve afastado do boxe na idade em que a maioria dos lutadores estão no auge); como também tornou-se uma importante figura pública e política, convertendo-se ao islamismo, recusando-se a participar da guerra no Vietnã quando convocado (o que o fez ser preso, perder seus títulos de boxe e passar quatro anos sem poder lutar) e, no geral, sendo um dos grandes nomes do movimento de orgulho racial entre afro-americanos.
            Nesse momento vocês talvez estejam se perguntando por que resolvi escrever essa homenagem a ele, sendo que resolvi dedicar este blog ao cinema e não ao esporte. Bom, por dois motivos. O primeiro é que, estando já há um tempo criticando os filmes da série Rocky (um deles eu até havia já planejado criticar esta semana), é mais que apropriado homenagear Muhammad Ali, não apenas por Rocky ser uma franquia de boxe, mas porque Sylvester Stallone admitiu que se inspirou na personalidade marcante de Ali para criar Apollo Creed, a ponto de, quando Stallone foi apresentar as indicadas ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 1977, ele e Ali fizeram uma luta de mentirinha no palco para mostrar que Ali não ficou ofendido com o filme (se puderem, assistam o vídeo, é hilário).
            E o segundo motivo, que é o que nos traz aqui, é que Ali foi o “personagem principal”, por assim dizer, do que muitos consideram um dos melhores documentários esportivos de todos os tempos: “Quando Éramos Reis”, que chegou a vencer o Oscar de Melhor Documentário de 1996.

            E quando digo que Ali é o “personagem principal”, as aspas são quase desnecessárias: Sua presença no filme é tão central que os créditos iniciais apresentam o filme como “Muhammad Ali em Quando Éramos Reis”, como se ele fosse um grande ator cujo nome é ressaltado para promover o filme em que atua.
            Agora, antes de falar sobre o filme em si (finalmente, o documento que criei aqui já conta mais de 2 mil caracteres!), preciso avisar que esta publicação será um pouco decepcionante, devido ao fato de eu pessoalmente não estar muito acostumado com o formato de documentário e ter lido poucas críticas de filmes do gênero para me basear. Não que eu não goste de documentários, mas admito que assisti poucos.

            O filme gira em torno de um dos eventos mais importantes da carreira de Ali: Sua luta em 1974 contra George Foreman, então campeão mundial, disputada no Zaire (atual República Democrática do Congo), no evento intitulado “Rumble in the Jungle”. Há vários motivos que tornam esta luta tão importante, não apenas para Ali, mas para a história do boxe, e todos eles são apresentados no documentário: Primeiro, Ali estava tentando recuperar seu título mundial, perdido quando ele se recusou a lutar no Vietnã.
Segundo, não apenas Ali era bem mais velho que Foreman (na época ele tinha 34 anos, idade já avançada no boxe, enquanto Foreman estava no auge de seus 25 anos), como ambos tinham personalidades perfeitamente opostas: Ali era bem-humorado, expansivo e adorava provocar seus adversários, enquanto Foreman era mais sério, reservado e calado, deixando geralmente os outros falarem por ele, porém não sem ser uma presença ameaçadora, com seu tamanho e força descomunais.
Terceiro, ambos representavam diferentes visões de mundo: Ali, embora não fosse tão popular nos Estados Unidos devido às suas fortes visões políticas, estas mesmas o tornaram um ídolo no Zaire, especialmente depois que ele justificou sua recusa à convocação militar dizendo “Por que eu mataria um pobre vietcongue? Eles nunca me fizeram nada!”. Foreman, por outro lado, era pouco conhecido pelos zairianos (a ponto de no documentário, o artista Malik Bowens dizer que antes do então campeão chegar ao Zaire, os zairianos achavam que ele era branco), e assim que chegou ao país causou uma má impressão, não apenas por representar os ideais americanos, mas também por vir acompanhado de seu cachorro de estimação, um pastor alemão, sendo que pastores alemães eram usados para repressão policial pelos colonizadores belgas.
Quarto, o “Rumble in the Jungle” foi considerado um dos grandes marcos da cultura negra: Ali e Foreman eram ambos negros; Don King, o promotor da luta, também era negro; a luta ocorreu no Zaire, um país africano (apesar de controversas devido ao financiamento de US$10 milhões do ditador zairiano Mobutu Sese Seko para que a luta ocorresse em seu país); e, como se não bastasse, o evento foi acompanhado por um festival de música de três dias em Kinshasa, capital do Zaire e local da luta, que contou com alguns dos maiores nomes da música afro-americana como James Brown, B. B. King, Bill Withers e vários outros, além de cantores africanos como Miriam Makeba e Tabu Ley Rochereau. O diretor de “Quando Éramos Reis”, Leon Gast, aliás, era até então um documentarista musical, e viajou originalmente para Kinshasa apenas para filmar o festival, mas resolveu então permanecer lá até a luta em si e fazer um documentário sobre ela.

            E, por último, mas não menos importante, há a própria luta e, principalmente, a estratégia de Ali, que não apenas atacou Foreman utilizando-se principalmente de socos diretos de direita nos primeiros rounds, um soco pouco utilizado por boxeadores por expô-los demais a contra-ataques; como também surpreendeu a todos quando propositalmente se jogou contra as cordas e deixou-se ser encurralado por Foreman, indo no caminho contrário de seu típico estilo de luta “dançante”. Como o filme mostra, porém, embora estas táticas pareçam suicidas, foram muito bem pensadas por Ali: Ao dar socos diretos de direita, Ali estava provocando Foreman, como se estivesse lhe dizendo que este era lento demais para contra-atacar, o que o deixou furioso e, portanto, menos tático; e, sabendo que Foreman estava esperando que ele dançasse à sua volta e havia treinado para isso, ao deixar-se ser encurralado e espancado Ali não apenas desnorteou Foreman como também se manteve de pé até seu adversário se cansar.
            Falando assim, parece que é preciso ser já iniciado em boxe para entender o filme, mas a verdade é que não: Quando se trata do boxe em si, “Quando Éramos Reis” é bem didático, com os jornalistas Norman Mailer (que, aliás, escreveu ele próprio um livro sobre esta luta) e George Plimpton explicando de forma bastante didática as partes mais técnicas da luta e do treinamento. Para quem mal assistiu uma luta de boxe na vida e quer entender melhor o esporte, este é um bom filme pelo qual começar.

            Como se não bastasse ser um grande filme sobre uma grande luta, “Quando Éramos Reis é também um grande filme sobre a época que retrata: Não apenas a era de ouro do boxe, como também a era de ouro da música soul, que constantemente toca ao longo do filme em clipes do concerto em Kinshasa; não apenas uma época de forte oposição à Guerra do Vietnã, que no ano seguinte chegaria ao fim, como também uma época de forte luta do movimento de orgulho negro nos Estado Unidos, que após os movimentos pelos direitos civis dos anos 60 procurava agora formar uma nova identidade social e cultural, em que Ali, em “Quando Éramos Reis”, surge como um ícone, pregando a paz e a fraternidade entre os negros do mundo; não apenas uma época de grandes esperanças para os países africanos, com as últimas colônias europeias no continente tornando-se independentes, mas também uma época de grande violência e caos político à medida que a África era tomada por ditaduras e guerras civis, que no filme é representada na figura de Mobutu, que, segundo se diz, antes da imprensa americana vir a Kinshasa reuniu mil dos principais criminosos da cidade no estádio que mais tarde seria usado para a luta e mandou matar cem deles aleatoriamente, como um aviso de que se algo acontecesse antes da luta nada os salvaria.
            Nisso, de uma forma irônica serviu como ponto positivo o filme ter sido lançado mais de vinte anos após os eventos retratados. Digo irônica porque esta não era a intenção de Leon Gast: Esta demora ocorreu apenas porque ele teve vários problemas em financiar a produção do documentário, entre realizar entrevistas, adquirir filmagens de arquivos, e editar as cerca de 450 horas de imagens que ele ao final conseguiu em um filme de menos de uma hora e meia. Quando o filme estava enfim terminado, os tempos já eram outros: Muhammad Ali já havia se aposentado devido ao Mal de Parkinson, George Foreman também já havia se aposentado e ganhava a vida promovendo o George Foreman Grill, e o governo de Mobutu entrava em colapso (ele seria retirado do poder no ano seguinte). Tal afastamento, porém, dá ao filme um ar digno de “cápsula do tempo”, um retrato e uma época perdida para as novas gerações. E, ao final, Gast mostra que não se esqueceu que o tempo passou, com um epílogo falando sobre a crise existencial de Foreman após a luta e, principalmente, a doença de Ali, que apesar de tudo não abandonou seu orgulho, sem medo de aparecer em público.

            Para finalizar, não vamos esquecer o retrato que o documentário faz de Muhammad Ali. Afinal, não há qualquer dúvida que o filme gira em torno dele, de sua personalidade e, principalmente, de sua presença marcante. Se este fosse um filme de ficção e Ali fosse um ator, dir-se-ia que ele devora o cenário enquanto diz falas marcantes e que ficam grudadas na cabeça (“Eu matei uma rocha; feri uma pedra; hospitalizei um tijolo; sou tão mal que deixo remédios doentes”). Mas Ali não era um ator, e “Quando Éramos Reis” não é um filme de ficção; este era Muhammad Ali, misturando com sucesso esporte e política, mantendo-se fiel aos seus ideais de fraternidade negra, e com uma personalidade para a qual é difícil achar a palavra certa: Extrovertido? Carismático? Arrogante? Esperto? Rebelde? Todos ao mesmo tempo? De uma forma ou de outra, Ali era uma figura da qual, tanto dentro quanto fora do ringue, era difícil de se tirar o olho, e é isso que “Quando Éramos Reis” faz, a câmera sempre focada nele, como se em um piscar de olhos ele pudesse fazer algo surpreendente, como o soco decisivo em sua luta contra Sonny Liston do qual, em uma filmagem de arquivo, Ali diz com orgulho que durou apenas quatro centésimos de segundo: “Você tem que segurar seus olhos e esperar, ou então você não o verá, cara!”


Avaliação: Vale muito a pena.

Nenhum comentário:

Postar um comentário