segunda-feira, 30 de maio de 2016

O Abutre

            Qual o melhor psicopata do cinema?

            Hum... Ehrrr... Ehhhhh... Ok, está certo, Anthony Hopkins foi um excelente psicopata em “O Silêncio dos Inocentes”. Mas não é desse filme que estarei falando hoje, como vocês já devem ter visto pelo título da postagem. Não, hoje estarei falando do segundo melhor psicopata do cinema, que é definitivamente...

            Ok, está certo de novo, Malcolm McDowell também foi ótimo em “Laranja Mecânica”, mas também não é desse filme que estarei falando hoje! Por que ultimamente quem coloca as imagens nesse blog nunca acerta o filme?!
            Ah, é... Quem coloca as imagens sou eu...
            Mas enfim, o terceir...

            Ok, isso já perdeu a graça: É Jake Gyllenhaal! Jake Gyllenhaal, entendeu?! Agora bote a imagem certa!

            Não esse Jake Gyllenhaal, imbecil! Quero dizer... É esse, mas... Ah, vocês entenderam. Bote logo o pôster do filme de hoje. Como se alguém se importasse... Quem lê esse blog além de alguns poucos conhecidos, afinal?

            Sim, sim, como estudante de jornalismo e cinéfilo, em algum momento eu tinha que assistir “O Abutre”. E, como notei alguns pontos interessantes quando assisti o filme pela primeira vez, e como está na hora de eu falar de um filme que vale muito a pena, lá vai esse!

            O filme começa... Com uma coletânea de tomadas de Los Angeles. Inclusive uma de um outdoor em branco e outra de um pedaço bastante específico das colinas de Hollywood, que “coincidentemente” lembra uma escada.
            SIMBOLISMO!!!!!!
            Ok, depois disso, o filme de fato começa, apresentando nosso personagem principal, Louis Bloom, interpretado por Jake Gyllenhaal. Louis (ou Lou, para os mais íntimos) é um zé-ninguém que vive de roubar peças de metal como grades de arame e tampas de bueiro e vende-las para um ferro-velho. Logo de cara percebe-se que o senso moral de Lou é um tanto questionável, quando ele, tendo sido pego no flagra roubando arame, ataca o guarda para roubar seu relógio.

            As perspectivas, porém, não parecem boas para Lou, pois assim que ele chega ao ferro-velho o dono deste só aceita comprar suas peças por um preço bem abaixo do que Lou quer e, como se isto não bastasse, diz que não irá mais comprar dele devido a policiais estarem perguntando sobre peças roubadas. Lou então, ignorando isto como um “cai fora”, resolve pedir-lhe um emprego.
            E é na fala dele ao pedir o emprego que imediatamente se percebe que há algo de muito, muito errado com Lou.

            Eis a fala dele, imediatamente depois do dono do ferro-velho oferecer-lhe o dinheiro das peças e dizer “Pegue ou largue”:
            “Senhor, com licença, estou procurando um emprego. Na verdade, eu me decidi a encontrar uma carreira na qual eu poça aprender e crescer. Quem sou eu? Sou um esforçado, eu estabeleço objetivos altos e fui dito que sou persistente. Agora eu próprio não sou tolo, senhor. Tendo sido criado com o movimento de autoestima tão popular nas escolas, eu costumava esperar que minhas necessidades fossem consideradas. Mas eu sei que a cultura de trabalho atual não mais atende à lealdade de emprego que seria prometida a gerações anteriores. O que eu acredito, senhor, é que coisas boas vêm àqueles que trabalham muito, e que pessoas como você que alcançaram o topo da montanha não caíram simplesmente lá. Meu lema é se você quer vencer na loteria você tem que ganhar o dinheiro para comprar um bilhete. Eu já disse que trabalhei em uma oficina? Senhor, eu acredito que você e eu podemos trabalhar bem juntos. Então o que acha? Eu posso começar amanhã ou até mesmo por que não essa noite?”
            Se você está se perguntando se ele realmente está dando esse discursinho que se encontra em manuais de internet de o que falar em uma entrevista de emprego, para pedir um trabalho em um ferro-velho para um cara que claramente não quer saber mais nada de alguém que rouba para viver, falando como se estivesse o vendo pela primeira vez e estivesse de fato em uma entrevista formal... Bom, esse é o caso. Mas sabem o que é mais preocupante que isso? É exatamente assim que ele fala DURANTE O FILME INTEIRO!

            Não estou brincando, toda e qualquer fala de Lou parece saída de um curso de negócios online (aliás, em uma cena Lou diz que fez um desses), como se a menor e mais informal das conversas fosse uma entrevista ou uma reunião de negócios, em que ele precisa mostrar sua inteligência, competência e segurança. Se não for pra falar alguma frase do tipo “Porque você vai atrás de algo é tão importante quanto o que você vai atrás” ou “Um amigo é um presente que você dá a si mesmo”, Lou prefere não falar.
Descrevendo assim, Lou pode parecer pedante ou até desesperado, mas eis então que entra em cena a atuação de Gyllenhaal: Quando Gyllenhaal fala, você percebe que ele/Lou não está sendo pedante ou desesperado; essa é de fato a única forma como ele sabe falar, pois essa é a forma como ele aprendeu que é preciso falar pra se conseguir subir na vida e ter sucesso. E Lou entende tudo, absolutamente tudo como um caminho racional para se subir na vida, incapaz de conceber uma conversa informal e sem pretensões.
            E eis então a genialidade do roteiro escrito por Dan Gilroy, que também dirigiu o filme (em seu primeiro trabalho como diretor. Fale sobre começar com o pé direito!). Não consegui descobrir o quanto que ele pesquisou sobre psicopatia, mas imagino que não foi pouco, pois a representação que o filme faz de Lou é a perfeita representação de um psicopata. Não que Lou seja um indivíduo particularmente violento (embora por vezes possa ser), mas ele apresenta todos os típicos comportamentos de um psicopata: Jamais sentindo empatia por outras pessoas ou remorso pelo que quer que faça; tendo uma atitude dominante sobre as pessoas ao seu redor, passando-se sempre por uma pessoa confiante (o que se pode dizer que ele é) e buscando uma posição de liderança no que quer que faça; desprezando normas de conduta social a menos que estas lhe deem alguma vantagem (e, se for mais vantajoso agir contra elas, ele não pensa duas vezes antes de assim o fazer); explodindo em frustração quando algo dá errado e culpando sempre os outros com raciocínios que jamais o fazem se sentir culpado por seu próprio fracasso; e, claro, falando sempre de uma forma fria e quase teatral, recorrendo sempre que necessário a frases prontas e escondendo suas verdadeiras (e bastante superficiais) emoções. E tudo o que Gilroy leu sobre psicopatia ele deve ter passado para Gyllenhaal ler também, pois ele transmite tudo isso em sua atuação. Quero dizer, olhem para essa expressão!

            Olhem esses olhos! Olhem esse sorriso! E me digam se há alguma sinceridade ou emoção profunda por trás disso! Digam-me se essa expressão não lhes diz “Eu faria esse mesmo sorriso se estivesse cortando sua garganta”! Se os caminhos da vida me levarem a um dia entrevistar Jake Gyllenhaal, e ele começar a me olhar desse jeito, eu juro que irei discretamente sair correndo.
            Está certo, mas... E a história? Afinal, eu disse anteriormente que como estudante de jornalismo, eu precisava em algum momento assistir esse filme. Quando é que isso entra? Entra beeeeeeeem... Agora!

            Assim que sai do ferro-velho, enquanto dirige pela estrada, Lou se depara com dois bombeiros tentando retirar uma mulher de um carro acidentado e começando a pegar fogo. Enquanto estaciona para assistir ao espetáculo, eis que uma van estaciona ao lado dele e dois homens com câmeras saem de lá correndo para filmar o acidente. Ambos são cameramans freelancers que vivem de filmar acidentes e crimes ao vivo e vender o material para canais de notícia locais. Lou fica bastante interessado nesse trabalho, e, percebendo que para começar não é preciso muito mais que um carro, uma câmera e um rádio que pegue a frequência da polícia, ele rouba uma bicicleta e a penhora em troca dos dois últimos itens e começa a trabalhar.
            Após algumas tentativas fracassadas que quase o levam preso, Lou finalmente consegue um bom material para vender quando consegue chegar bem perto da vítima de uma tentativa de roubo de carro que está sendo tratada. Lou consegue então vender a filmagem para o canal KWLA, entrando assim em contato com a diretora do noticiário matutino do canal, Nina (interpretada por Rene Russo), que fica fascinada com sua ousadia de chegar tão perto da ação e começa a lhe dar dicas para as futuras filmagens, como comprar uma câmera melhor com um microfone, e fazer entrevistas. Nina também lhe dá uma ideia do tipo de notícia que o noticiário está atrás: De preferência, incidentes violentos envolvendo vítimas brancas e de classe média ou alta. De ainda mais preferência, se a causa do incidente for alguém pobre ou de alguma minoria.
Lou segue seus conselhos, contratando também um assistente desesperado por emprego (interpretado por Riz Ahmed). Devido a seus poucos escrúpulos na hora de filmar um incidente, não vendo problema em invadir uma cena de crime isolada ou até mover um corpo para conseguir um melhor enquadramento (afinal, como ele leu na internet e repete, “um enquadramento apropriado não apenas chama a atenção do olho para a imagem, como o mantém lá por mais tempo”). Nina, ela própria mais interessada em sensacionalismo do que em jornalismo ético, fica fascinada com o trabalho de Lou, comprando suas filmagens por cada vez mais dinheiro e colocando-as com cada vez mais frequência como primeira matéria do noticiário, o que satisfaz o orgulho narcisista de Lou, que não apenas todo dia reassiste suas filmagens como também mantém todas elas salvas em um arquivo, como troféus (não que eu faça o mesmo com minhas postagens aqui no blog, hehe. Quero dizer, que problema há em rele-las de vez em sempre, quero dizer, quando... E não é que eu deixe todos os links salvos e organizadinhos em um documento próprio... Ehhhh... Eu juro que não sou um psicopata!).
E eis a grande crítica que o filme faz. Entendam, botar um psicopata como protagonista de seu filme é interessante e tal, mas... Só isso por isso perde a graça depois de quase duas horas. Lá pela metade, o público ficaria se perguntando “Tá, ele é um psicopata. E daí?”.
Eis que Gilroy aparece e nos diz “O problema não é Lou ser um psicopata. O problema é o mundo jornalístico aprovar seu comportamento e trata-lo como ideal a ser alcançado”. Aliás, é exatamente isso que Nina diz quando, em uma cena, ela é questionada quanto a estar começando a fazer escolhas antiéticas em prol de contar uma história que aumente o ibope do noticiário: “Eu acho que Lou está nos inspirando a todos a alcançar algo um pouco mais alto”. Lou, como um psicopata, se vê em casa em um meio onde se vive de notícias chocantes, e em uma sociedade que consome freneticamente essas notícias; quanto mais sangrenta for a notícia, mais tempo é dedicado a ela na TV, para mostrar todos os detalhes grotescos que o público tanto gosta.
Essa é a grande crítica, não apenas ao jornalismo sensacionalista, mas à toda a sociedade que permite que ele exista. Como é possível um mundo onde falar como Lou fala, sempre como se estivesse em um escritório, é considerado profissional? Onde obstruir atendimento médico apenas para mostrar uma vítima sangrando ou invadir a privacidade de alguém apenas para ter acesso a informaçõezinhas desnecessárias resulta em mais ibope para um noticiário, porque afinal as pessoas tem uma enorme vontade de ver sangue e violência no noticiário matinal enquanto comem seu café-da-manhã e a mídia se importa mais com o que uma notícia pode trazer de bom pra ela do que em de fato noticiar uma tragédia, pois todos estão em guerra entre si por ibope e vence quem tiver um vídeo exclusivo de algum desastre? Enfim, um mundo onde todos se deixam levar por um psicopata como Lou até este alcançar o que quer? E isso é visto como algo bom, porque afinal o sucesso é o que realmente importa?

            Por fim, é bom falar da direção de Gilroy. Desde os créditos iniciais, percebe-se que a intenção do diretor é fazer uma espécie de neo-noir, à moda de “Chinatown” ou “Taxi Driver”. Aliás, mais como “Taxi Driver”, na minha opinião: “Taxi Driver” utiliza de seu anti-herói para mostrar a noite da Nova York dos anos 70 como algo sujo, violento e nada glamoroso. “O Abutre” faz o mesmo com a Los Angeles atual. Quase o filme inteiro se passa de noite, e a Los Angeles que aqui aparece não é o paraíso ensolarado dos artistas, dos carrões e das mansões, com luzes que parecem pérolas à distância, uma terra onde qualquer um pode realizar o sonho americano. Não, a Los Angeles de “O abutre” é um lugar que parece belo e iluminado à distância, mas de perto se percebe sua sujeira, sua podridão, sua violência. Mas enquanto Travis em “Taxi Driver” queria limpar a cidade dessa sujeira, Lou alimenta-se dela. Também é possível notar na direção, na fotografia e na iluminação, certa semelhança com o filme mais recente "Drive". Aliás, certa não: MUITA semelhança! Há até um vídeo no youtube comparando lado a lado as cenas dos protagonistas de ambos os filmes dirigindo à noite. Te desafio a dizer qual cena é de qual filme.
            É possível, também, notar em “O Abutre” certo estilo de filme B, de “pulp fiction”. Vocês decidem se isso foi uma referência a Tarantino ou não. Aliás, não precisam decidir, foi totalmente intencional a referência, pois assim como Tarantino, Gilroy abraça o lado B de seu filme e o usa como um recurso para melhor contar sua história. Afinal, se você vai fazer um filme sobre jornalismo sensacionalista, porque não usar justamente uma linguagem apelativa (ou, se você prefere o termo em inglês, exploitation) para reforçar sua crítica?


Avaliação: Vale muito a pena

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Rocky IV

            É possível um quarto filme de uma franquia ser mais icônico que o primeiro?

                Hum, haha... Não. Mas agora pra valer, é possível um quarto filme de uma franquia atingir o status de clássico equivalente ou até maior que o do primeiro?

            Ok, mas nesse caso o primeiro filme nem é bom! Estamos falando de uma franquia em que o primeiro filme é bom, mas o quarto de alguma forma alcançou um sucesso ainda maior, batendo vários recordes de bilheteria, a ponto de haver pessoas que nem sequer assistiram o primeiro filme e o confundem com o quarto...

            É “Rocky 4”, caramba! A resposta é “Rocky 4”! É sobre “Rocky 4” que discutiremos hoje, está bem?! Meu deus!
            Mas por que digo que “Rocky 4”, ou, melhor dizendo, “Rocky IV”, é mais icônico que o primeiro filme? Bom... Porque é! E não é apenas em questão de bilheteria, considerando que “Rocky IV” não apenas é até hoje o filme da franquia Rocky de maior bilheteria, como também se manteve por mais de vinte anos como o filme de esportes mais bem-sucedido de todos os tempos (até ser superado por Sandra Bullock em “Um Sonho Possível”). Mas mesmo em se tratando de imaginário popular, “Rocky IV” continua sendo mais icônico que o primeiro filme. Afinal, qual é a primeira imagem que vem à mente das pessoas quando elas ouvem falar de Rocky, especialmente as que não assistiram os filmes? Não é Rocky Balboa perdendo para o campeão mundial; é ele enfrentando um monstro russo de dois metros de esteroides.
            Mas está certo, a imagem que as pessoas mais associam com Rocky é Stallone lutando contra uma montanha de músculos soviética. Mas o filme de onde essa imagem vem, apesar de todo o seu sucesso de bilheteria na época, merece mesmo o status de clássico que foi alcançando ao longo dos anos?
            Hum... Não. Pelo menos, não exatamente.

            Ok, vamos começar com o filme pelo começo.
            O filme começa... Com uma montagem em que duas luvas, uma com uma estampa da bandeira dos EUA e a outra com uma da bandeira da URSS, colidem uma com a outra e explodem ao som de “Eye of the Tiger” (normal), seguida por clipes de “Rocky 3” mostrando a luta entre Rocky e... Lang (não há necessidade de trazer mais um ataque de risos), e a cena final do filme, com Rocky e Creed tendo uma lutinha amistosa entre amigos. Prestem atenção nessa montagem inicial, pois há muitas outras por vir.
            De qualquer forma, na cena seguinte Rocky aparece chegando em casa para o aniversário de seu cunhado Paulie com um olho roxo. Seria de se imaginar então que “Rocky 4” se passa imediatamente depois de “Rocky 3”. Mas não. Aparentemente, cinco anos se passaram entre um filme e outro (embora o filho de Rocky não tenha envelhecido nem um pouco, fazendo com que ele finalmente tenha a idade apropriada para sua aparência). Se meus cálculos não estiverem errados, isso faz com que o filme se passe em 1986, sendo que ele foi lançado em 1985. Ou seja, esse filme se passa oficialmente no futuro. Por que estou trazendo isso? Absolutamente nada. Achei curioso.
            Mas enfim, Rocky chega em casa para dar os parabéns a Paulie. E então... Isso acontece.

                Vocês não estão vendo uma imagem de algum outro filme: “Rocky 4” tem um robô no meio.
            COMO É QUE VOU CONSEGUIR LEVAR ESSE FILME A SÉRIO AGORA?!?!?! É um robô em um filme do Rocky! Esqueçam o lutador soviético, como é que vou conseguir prestar atenção no resto do filme depois disso?! É como esperar que eu preste atenção em um filme dos Irmãos Cara-de-Pau depois que vacas fantasmas aparecem voando no céu!

            Ok, esse foi um péssimo exemplo.
            Mas falando sério... Não, não dá pra falar sério depois disso! É um robô em um filme do Rocky! Não importa se o resto do filme é super sério e bem escrito (o que, aliás, não é), não dá pra ignorar esse fato! E o pior sabe qual é? O filme até tenta ignora-lo! Há uma cena em que Rocky, Adrian e Paulie estão conversando com Creed sobre um assunto que abordarei daqui a pouco, e então de repente o robô aparece com uma voz feminina sensual (que Paulie programou. Porque aparentemente ele é capaz de fazer isso), serve uma cerveja para Paulie e sai da sala... E Creed continua a conversa como se nada tivesse acontecido! Não! Apenas... Não! Não dá pra se recuperar naturalmente depois de ver um maldito robô em um filme do Rocky!

                Ok, mas tentando... Tentando muito... Ignorar isso, eis que a União Soviética decide se lançar no mundo do boxe profissional, apostando no super boxeador Ivan Drago (interpretado pelo ator sueco Dolph Lundgren).
            E quando digo super boxeador Ivan Drago... Eu digo exatamente o que soa que estou dizendo. Primeiro, o sobrenome dele é Drago. E o filme não tenta deixar nem um pouco sutil o que esse sobrenome significa para o personagem: Ele é basicamente o dragão, o grande monstro do mal irracional que Rocky tem que enfrentar. Tão irracional que ele fala apenas uma dúzia de palavras no filme inteiro. “Ah, mas ele é russo, talvez ele apenas não saiba falar inglês...” Nem em russo ele fala muito. Falem o que quiserem sobre... Lang ser apenas um monstro criado para Rocky derrotar no terceiro filme (eu falei bastante), mas isso chega a ser ridículo.

                E então tem o fato de ele ser um super boxeador. E com isso, não estou dizendo que ele é talentoso ou coisa assim: Estou dizendo que ele é literalmente super, tendo sido geneticamente selecionado (não, sério, isso está no roteiro), passado por processos químicos de melhoramento de desempenho (vulgo esteroides) e contando com a mais alta tecnologia em equipamentos para treinar. Em outras palavras: Ele é basicamente um Capitão América do mal. Para se ter uma ideia, em uma cena é dito que um boxeador peso-pesado comum atinge algo em torno de 300 kg de pressão por polegada quadrada (o que por si só, segundo estudos científicos, é um grande exagero, mas esperem um pouco); Drago atinge mais de 800 kg, e em uma cena antes da luta final ele atinge quase uma tonelada.
Em outras palavras, ele é basicamente um vilão de história em quadrinhos. Lembram-se que os primeiros filmes do Rocky, embora simples, eram relativamente realistas? Onde é que isso foi parar?!

            Ah, é... Esqueci...
            Ah, aliás, a esposa de Drago é interpretada por Brigitte Nielsen. Insira aqui uma piada de Flavor Flav se quiser. Como se alguém ainda se importasse. De qualquer forma, ela só aparece cinco minutos no filme inteiro. Aliás, há uma decepcionante falta de presença feminina nesse filme. Não que em algum momento as mulheres tenham sido protagonistas na franquia, mas em “Rocky 4” elas são pouco mais que decoração de fundo. Mesmo Adrian não faz ou diz nada que afete Rocky de alguma forma. Ela até dá uma lição de moral em uma cena, mas Rocky nem chega a escutar.

            Enfim, para provar a superioridade de Drago, sua equipe de treinadores e assessores propõe uma luta amistosa contra Rocky Balboa. Mas eis que, ao invés de Rocky, quem aparece para enfrentar Drago é Apollo Creed, disposto a provar que ainda tem valor mesmo já estando velho demais para o ringue (não que Rocky esteja ainda jovem. Pelos meus cálculos, nesse filme o personagem tem já uns 40 anos). Rocky até tenta avisa-lo que ele já não tem a mesma forma que antes, mas Creed não quer saber.
            Mas eis que a luta se mostra bastante fácil... Quero dizer, para Drago. Creed até lhe dá alguns socos, mas este nada parece sentir. No primeiro round ele mal chega a mexer o braço, apenas esperando o momento certo. E quando este chega... Bom, ele é pelo menos três vezes mais forte que um boxeador peso-pesado comum, o que você espera que aconteça? Após dois rounds esmagando a cara de Creed, Drago lhe dá um último grande soco... E Creed cai morto na lona.

            Bom, sem chance de Creed pedir uma revanche dessa vez, não?... A menos que Rocky peça por ele! E é exatamente isso que ele faz, marcando a luta para o natal. Por que natal? “Foi o que me perguntaram”, responde Rocky. E essa é toda a resposta que temos (o fato de o filme ter sido lançado no fim do ano talvez tenha algo a ver). Mas a equipe soviética pede que dessa vez a luta seja feita na Rússia, alegando que eles estão se sentindo ameaçados nos Estados Unidos. O que o filme tenta fazer parecer uma desculpa esfarrapada, mas honestamente eu acho legítimo. Quero dizer, em momento algum os americanos foram simpáticos com eles, e todas as coletivas de imprensa resultaram em vaias e provocações.
Aliás, o filme faz os americanos parecerem mais babacas que os soviéticos! Quando Rocky chega à Rússia para treinar, ninguém o provoca. Ninguém o ameaça. A única coisa que os soviéticos impõem é que aja sempre dois... “guarda-costas” o vigiando, mas estes nunca chegam a impedi-lo de fazer qualquer coisa, o deixam ir aonde quiser, fazer o que quiser e falar com quem quiser. Até levam Adrian para a Rússia quando esta decide que quer ficar junto de Rocky.
E está certo que na luta final entre Rocky e Drago o ambiente parece um tanto hostil contra Rocky, mas honestamente não é nem um pouco mais hostil que o ambiente que Drago encarou em sua luta contra Creed. Aliás, nessa primeira luta pode-se dizer que o ambiente foi até mais hostil contra Drago, pois assim que ele entra no ringue um enorme número musical do nada se inicia à sua volta apenas para mostrar a superioridade americana, com James Brown em pessoa cantando “Living in America” enquanto tudo a volta de Drago parece ter sido planejado apenas para provoca-lo.
Quando Rocky entra no ringue, porém, os russos apenas fazem o que russos fazem, cantando o hino nacional, saudando o secretário-geral e levantando um cartaz gigante celebrando Drago, o que é até compreensível considerando que ele deve ter status de herói nacional lá. Nada que seja realmente uma provocação pessoal a Rocky. E está certo, eles vaiam durante a luta, mas os americanos também vaiaram (e Barry Tompkins e Al Bandiero, durante sua narração da luta, chegam a ter a pachorra de dizer que “nunca viram um público tão hostil”. Vocês ao menos viram a luta de Creed?!). E como se isso não bastasse, mesmo quando Rocky começa a ganhar a simpatia do público e estes começam a torcer por ele, o que a “grande ditadura vermelha” faz? Nada! Deixa-os virarem casaca de boa!
Desculpe-me, por que é para sermos contra eles, mesmo? Porque eles usam esteroides, só isso?

                De todos os filmes de Rocky, este é reconhecidamente o mais brega e exagerado. Todo e charme, impacto e sutileza do primeiro filme desaparecem aqui, sendo substituídos por um enredo superficial e fraco (notem a diferença entre simplicidade e superficialidade) e uma falta de inovação, derivando demais dos filmes anteriores. Apenas notem a quantidade de montagens que há nesse filme, provavelmente batendo algum recorde: Há a montagem inicial, a montagem de treinamento, a montagem da luta final (até aí citei apenas as obrigatórias em um filme de Rocky, mas esperem), a montagem musical de James Brown, a montagem de Rocky chegando à Rússia, há até uma montagem que é literalmente Rocky pegando o carro e dirigindo de um lugar para outro! E como se não bastasse, os próprios créditos finais são uma montagem com imagens do filme! Literalmente um terço do filme constitui-se de montagens! Se você quer ter uma aula de como eram feitos os filmes de grandes estúdios em meados dos anos 80, apenas assista “Rocky 4”: Crie um enredo melodramático e cheio de ação, levemente machista (deixe o machismo pesado para os animes dos anos 80), e então encha de montagens até preencher 90 minutos. Nada mais, apenas o essencial.
            E mesmo assim... Talvez seja justamente isso que o torna apelativo.

            Afinal, não vamos negar: Esse filme possui de fato o seu séquito de fãs até os dias de hoje, apesar de tudo o que acabei de falar. Por quê? Porque embora seja um filme ruim, não é totalmente ruim. O fato de ser a essência do filme de grande estúdio dos anos 80 já é algo que chama a atenção. E, de certa forma, eu tenho que admitir é impossível não se divertir de alguma forma com esse filme, principalmente com as cenas de ação e, porque não, até mesmo as montagens: Quando Rocky Balboa treina na Rússia sem qualquer equipamento de ponta, apenas com os objetos que se encontraria em um galpão de fazenda russa, como trenós, selas, machados e pedras, é impossível não ficar empolgado; quando Rocky Balboa, apesar de seus 40 anos, levanta-se da lona no clímax do filme e destrói Drago com forças renovadas, é impossível não torcer por ele até sua vitória final (ops, spoilers! Embora, honestamente, quem aqui está surpreso?). E mesmo o discurso político final de Rocky, por mais brega e fraco que seja, não deixa de ser interessante, mostrando o poder e respeito que ele alcança no fim... Embora com uma reação que corta qualquer credibilidade e realismo que um robô já não tivesse cortado no filme.
            É curioso notar que “Rocky 4” é para fãs de cinema mais ou menos como, digamos, “Sword Art Online” é para fãs de animes: Muita gente sabe que é ruim, que é melodramático, exagerado, superficial e o diabo a quatro; mas é tão divertido, de uma forma ou de outra, e a ação é tão boa, que... Dá pra condenar quem gosta? Talvez não.
            (Antes que fãs de Sword Art Online me odeiem, deixem-me dar um aviso: Eu nunca assisti Sword Art Online. Agora podem me odiar)
Mas dá pra condenar quem diz que esse filme é um clássico? Bom, talvez seja perdoável se considera-lo um clássico dos filmes bregas, mas como um clássico em si...

            Não. Definitivamente não.
            Mas afinal, vale a pena ou não o filme? Bom, se você estiver disposto a aceitar suas falhas e se divertir com elas, talvez. Mas se você quer levar o filme minimamente a sério, como os outros filmes (“Rocky 3”, Hulk Hogan a parte, ao menos tenta se levar a sério)... Bem...


Avaliação: Não vale a pena. Talvez valha a zoeira, mas... Ah, quem se importa, já estou irritando os fãs desse filme de qualquer forma.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

A Fraternidade é Vermelha

            Enfim concluo minhas críticas da Trilogia das Cores de Krzysztof Kielsowski, escrevendo sobre “A Fraternidade é Vermelha”, coincidentemente também o último filme do diretor antes de falecer em 1996, dois anos depois do lançamento deste filme. Desculpem o pequeno atraso em escrever essa crítica, porém o motivo para ele é bem simples: Minha burrice não me permitiu entender o filme na primeira vez que o assisti.
            Caso você não tenha assistido o filme ainda, não se assustem com isso, o filme continua sendo muito bom e continuo recomendando assisti-lo. Porém, aviso-os que, assim como os outros filmes da trilogia, é preciso uma grande bagagem cultural para se entender “Fraternidade” em sua totalidade. Uma bagagem que, admito, não tenho. Então será essa possivelmente uma das minhas piores críticas, apesar de ter re-assistido o filme, pausando em alguns momentos para tentar entender detalhes que não havia entendido na primeira vez? Sim, possivelmente será. Vai ter trechos bonitos demais que de jeito nehum (cof, cof) terei me inspirado em artigos que li sobre o filme? Com certeza! Mas, como já havia dito na minha crítica de “A Liberdade é Azul”, já estou psicologicamente preparado para no futuro me arrepender dessas críticas, porque é um fato que pura e simplesmente não tenho como fazer uma boa crítica desses filmes. Mas as farei mesmo assim.
                A protagonista do filme dessa vez é Valentine Dussault, interpretada por Irène Jacob. Valentine é uma estudante universitária (embora nunca a vemos estudar) e modelo vivendo em Genebra, na Suíça. A rotina de Valentine consiste de atender ligações de seu namorado, um cretino possessivo que mora na Inglaterra e já assume que ela está sendo infiel se não atender o telefone quando ele liga; participar de desfiles e ensaios fotográficos, como uma campanha publicitária para um chiclete; ter aulas de balé, que o filme faz parecer a coisa mais dolorida do mundo (quem já fez balé, confere?); e comprar jornal em uma vendinha, onde ela aproveita o troco para apostar em um caça-níquel, parecendo estranhamente contente quando perde (falaremos melhor sobre isso mais tarde). Ah, e ela tem um irmão mais novo que é viciado em heroína. Aviso isso porque o vício dele aparece apenas uma vez por alguns poucos segundos em uma foto de jornal, porém mais tarde é referenciado várias vezes.
            Paralelamente à rotina de Valentine, acompanhamos também outro jovem, Auguste, (interpretado por Jean-Pierre Lorit), que está estudando para se tornar juiz. Auguste é vizinho de Valentine, porém ambos nunca chegaram a se encontrar. Ele mora sozinho com seu cachorro de estimação; namora uma moça (interpretada por Frederique Feder) que ganha a vida com um serviço de previsão do tempo por telefonia (era comum isso nos anos 90?); e gosta de fumar Marlboros. Isso é tudo o que sabemos sobre ele no começo, e demora um tanto para descobrirmos afinal qual sua importância para o filme. Mas não se preocupe, ao final tudo é respondido.
            Mas voltando a Valentine. Tudo anda relativamente normal em sua vida, até que uma noite o rádio em seu carro não sintoniza direito. Enquanto tenta resolver isso, Valentine se distrai e acaba atropelando uma cadela chamada Rita. Esta sobrevive, mas acaba ficando bastante machucada. Valentine lê em sua coleira o endereço de seu dono e vai atrás dele para avisa-lo.

            Mas eis que o dono (interpretado por Jean-Louis Trintignant) se revela um cara pra lá de estranho: Deixa o portão de sua casa aberto para qualquer um entrar, porém mostra um total desinteresse quando Valentine entra e lhe diz que atropelou sua cadela. E quando a jovem fica chocada com seu desinteresse, ele apenas a dispensa dizendo “Se quiser, Rita é tua”.
            Valentine resolve então levar Rita para o veterinário (onde descobre que ela está prenhe) e mantê-la em seu apartamento. Mas não demora para a cadela fugir e voltar para a casa de seu antigo dono, que se mostra tão desinteressado no mundo quanto no outro dia (a ponto de Valentine lhe perguntar porque ele não para de respirar de uma vez). Valentine resolve arriscar entrar em sua casa uma segunda vez... E eis que ela descobre o grande segredo do homem, que, aliás, se chama Joseph Kern.

            Acontece que, apesar de estar cansado da vida e não amar nada nem ninguém, Joseph, que é um juiz aposentado, possui um único hobby: Pegar as frequências telefônicas de seus vizinhos em seu rádio e ouvir assim suas conversas. Por mais que esteja ciente do quão asqueroso e ilegal é invadir a privacidade das pessoas dessa forma, Joseph o faz mesmo assim, não apenas por achar divertido, mas por achar que seu hobby não afeta a vida das pessoas: Ele apenas ouve suas conversas telefônicas, sem fazer nada a respeito do que ouviu.
            Valentine, sendo uma moça certa de seus valores morais, até tenta avisar uma família de vizinhos de Joseph de que eles estão sendo espionados; mas, ao perceber que sua denúncia faria mais mal do que bem à família (Valetine, ao entrar na casa de Joseph, ouviu uma conversa na qual o pai da família falava com seu amante), desiste e vai embora, para até certo escárnio de Joseph (é também nessa cena que se descobre que um dos vizinhos de Joseph é justamente a namorada de Auguste, e que ele ouve as conversas entre os dois). Assim começa uma estranha relação (fraterna, pode-se até dizer) entre Valentine e Joseph, que leva este a, naquela mesma noite, enviar cartas a seus vizinhos denunciando-se, interferindo pela primeira vez na vida deles, o que chama a atenção de Valentine e faz com que ambos, ao longo dos dias seguintes, conheçam melhor um ao outro.

            Se “A Liberdade é Azul” era o mais intimista da trilogia e “A Igualdade é Branca” o mais humorado, “A Fraternidade é Vermelha” é possivelmente o mais místico: O tempo todo o filme traz elementos que Kieslowski apresenta como manifestações de algo maior, algo que conecta e, aos poucos, aproxima as vidas de personagens que parecem ter pouco em comum e que, em circunstâncias normais, jamais falariam uns com os outros. Para os mais céticos, podem ser vistos como meras coincidências: Um livro que Auguste derruba no chão e que cai na exata página que contém a resposta para uma das perguntas de seu exame de juiz; pequenos incidentes que evitam que os personagens atendam o telefone em momentos importantes, afastando-os de certas pessoas e, por consequência, aproximando-os de outras; um evento no final do filme que “coincidentemente” une os personagens principais dos três filmes da trilogia; o filme todo parece ser feito de “coincidências” assim. Até mesmo alguns objetos comuns parecem ter certo poder místico de definir o destino e unir as pessoas, como o caça-níquel em que Valentine aposta, no qual sempre que ela vence algo ruim acontece, ou a caneta tinteiro que Auguste ganha de presente de sua namorada ao passar no exame para juiz, em uma situação semelhante àquela na qual Joseph ganhou sua própria caneta tinteiro.
            Kieslowski já havia explorado o misticismo e o que conecta as pessoas umas às outras em filmes anteriores, como “A Dupla Vida de Véronique” (sobre uma cantora polonesa e sua sósia francesa). Mas este lado místico não é o único ponto de reflexão de “A Fraternidade é Vermelha”. Boa parte dos diálogos trocados entre Valentine e Joseph, especialmente no começo, giram em torno do direito que uma pessoa tem de decidir o futuro de outras e de interferir em suas vidas, como Joseph fazia quando era juiz. Em um momento, Joseph diz que quando era juiz, nunca sabia se havia tomado uma decisão certa ou errada, se havia condenado ou salvado uma pessoa injustamente, e que ao espionar a vida de seus vizinhos sem interferir nelas ele ao menos tem total noção das consequências de seus atos. Valentine tem o mesmo questionamento quando se vê incapaz de fazer à família de vizinhos de Joseph uma revelação que lhes traria uma situação desconfortável, mesmo sabendo que isso a torna cúmplice de Joseph em sua invasão de privacidade.

            Nisso, surge outro grande questionamento do filme: Quanto, afinal, que nossas vidas são de fato privadas? Quanto podemos afinal nos isolar em nosso próprios mundos, em nossas próprias casas? Embora a Trilogia das Cores já houvesse abordado isso em “A Liberdade é Azul” e na tentativa de isolamento da protagonista Julie, aqui a questão é abordada de um ponto de vista contrário, do de Joseph, alguém tentando invadir a privacidade de outras pessoas. Ao mesmo tempo, porém, Joseph mantém-se ele próprio isolado do mundo, desligado de todas as conexões terrenas. Mas esse desligamento, por maior que seja, não é total, como é representado pelo fato de ele nunca trancar as portas de sua casa, permitindo que Valentine, Rita e qualquer outra pessoa entram e saiam a qualquer momento.
            Há também aí o valor simbólico que Kieslowski dá ao telefone. A primeiríssima cena mostra alguém (que mais tarde percebe-se ser o namorado de Valentine) discando em um telefone. A câmera então acompanha a ligação ao longo do fio, para dentro da terra, por redes e redes de fios telefônicos, atravessando o Canal da Mancha enquanto conversas podem ser ouvidas, em uma montagem típica dos anos 90 (apenas tentem não pensar nos créditos iniciais de “Clube da Luta” ao assistirem essa cena). Mas o porquê disso, afinal? Kieslowski admitiu, em entrevistas, que acreditava que diferentes pessoas em diferentes partes do mundo podem estar pensando as mesmas coisas ao mesmo tempo, e que tentava fazer filmes que conectassem, dessa forma, seus personagens. Acreditava também que as pessoas no mundo moderno vivem vidas cada vez mais isoladas e privadas, mas mesmo que não estejamos conectados materialmente, continuamos conectados uns aos outros espiritualmente.

            Eis aí que entra o telefone. Embora não seja uma invenção tão moderna assim, ele traz consigo a noção moderna de conectar o mundo inteiro, aproximar de forma instantânea pessoas fisicamente separadas por mares inteiros (lembrando que esse filme foi lançado em 1994, quando a internet não tinha todo o poder que tem atualmente). Mas por mais que uma pessoa na Inglaterra possa falar instantaneamente com alguém na Suíça, não quer dizer que essa aproximação é material. As pessoas continuam isoladas cada uma em seu canto, vivendo suas vidinhas particulares, sendo estranhas umas às outras. O telefone aparece então como o meio que une esses estranhos, que embora não se vejam acabam socializando-se entre si, formando uma verdadeira comunidade de elementos isolados.
            Mas, como Kieslowski tenta mostrar na maioria de seus filmes e especialmente em “A Fraternidade é Vermelha”, essas vidinhas não são tão particulares assim. O tempo todo pessoas diferentes, que nunca se viram ou falaram pessoalmente, estão fazendo as mesmas coisas, pensando as mesmas coisas, mesmo que não seja pelos mesmos motivos. Milhares de pessoas podem estar falando no telefone ao mesmo tempo (como a cena inicial mostra), lendo os mesmos livros, fazendo compras nos mesmos lugares... E mesmo que não façamos tudo ao mesmo tempo, eventualmente nossas vidas coincidirão em um ponto ou outro, como se vê pelas assombrosas coincidências nas vidas de Joseph e Auguste, que é quase um alter ego mais jovem do juiz, ou então pelas rotinas de Auguste e Valentine, que são vizinhos e constantemente aparecem indo aos mesmos lugares e tomando as mesmas decisões, mas nunca chegam a notar a presença um do outro.
Kieslowski uma vez disse em uma entrevista: “Eu gosto de encontros do acaso – a vida está cheia deles. Todo dia, sem perceber, passo por pessoas que eu deveria conhecer. Neste momento, neste café, estamos sentados perto de estranhos. Todos vão se levantar, sair, e seguir seus próprios caminhos. E elas nunca mais vão se encontrar. E se elas se encontrarem, elas não vão perceber que não é pela primeira vez”. É essa a tese central de “A Fraternidade é Vermelha”: De que há algo como um destino que intervém na vida das pessoas, fazendo com que, em meio a seus dramas individuais, seus rumos cruzem com os de outras pessoas em encontros que podem ou não ser vistos como coincidências.


Avaliação: Vale muito a pena. E assistam também os outros dois filmes da trilogia.

domingo, 1 de maio de 2016

Um dia de preguiça: Billy Wilder

"Hum, tem certeza disso? Não quer finalmente terminar aquela coisa de criticar a Trilogia das Cores?"
"Aff, sai daqui!"
"Ah, qual é, por que não?"
"Porque sou terrivelmente preguiçoso!"
"Ah, tudo bem então."         

O que foi? É verdade! Esse texto aí embaixo não é nenhuma tentativa minha de fazer algo novo para ver se gera mais interesse pelo meu blog. É só eu sendo preguiçoso demais para assistir um filme e critica-lo depois de terminar um pequeno trabalho para uma optativa de história do cinema que estou fazendo na faculdade. Aí minha mente procrastinante pensou "Ei, por que não aproveito que já tenho algo sobre cinema em mãos e publico isso enquanto passo um domingo tranquilamente ouvindo música e assistindo desenhos animados?" E bum, eis aqui um pequeno resumo da vida e obra de Billy Wilder. Eu podia escolher entre Billy Wilder e Orson Welles, mas considerando que só assisti dois filmes do Welles até agora, Wilder será. É uma forma barata de fugir de um compromisso que criei comigo mesmo, mas então de novo, estou apenas aqui ouvindo a trilha sonora de Cavaleiros do Zodíaco! Então aproveitem para julgar esse resumo e pensar em todas as formas de melhora-lo para eu ao final entregar um trabalho bonitinho para o professor... Apenas para descobrirem horrorizados que já entreguei esse trabalho e não há como voltar atrás!

   Nascido na cidade de Sucha, na Áustria-Hungria (atualmente Polônia), em 1906, Billy Wilder (nascido Samuel Wilder) começou sua carreira no cinema em 1929, escrevendo roteiros para filmes mudos, e depois falados, na Alemanha, onde trabalhava como jornalista em Berlim, conhecendo assim personalidades do cinema alemão como Marlene Dietrich e frequentando os ambientes teatrais da cidade. Um de seus filmes mais famosos desse período é “Gente no Domingo” (1930), um filme mudo de baixíssimo orçamento com surpreendente sucesso, considerado precursor do neorrealismo, que além de Wilder também trouxe fama a nomes como os irmãos Robert e Curt Siodmak (que dirigiram o filme) e Edgar Ulmer (que o produziu).
Após a ascensão de Adolf Hitler ao poder, Wilder, que era judeu, fugiu para Paris, onde escreveu e, pela primeira vez, dirigiu “Semente do Mal” (1934), estrelando a então jovem atriz Danielle Darrieux em um de seus primeiros filmes. Em “Semente do Mal” já é possível notar algumas das principais características autorais de Wilder, como a visão crítica em relação à sociedade (a trama acompanha um filho de um médico conceituado que se envolve com uma quadrilha de ladrões de automóveis) e uma maior aproximação do estilo cinematográfico hollywoodiano, em comparação com as vanguardas e com o realismo poético vigentes na França na época.
De Paris, mudou-se então para os Estados Unidos com a ajuda do cineasta Joe May, austríaco já estabelecido em Hollywood, que Wilder já conhecia de quando vivia na Alemanha e para quem havia enviado o roteiro de “Música no Ar”.  Segundo Wilder, quando o funcionário da embaixada norte-americana perguntou-lhe sua profissão e esse respondeu que era cineasta, o oficial carimbou seus documentos e concedeu-lhe o visto de permanência de seis meses com a condição de “fazer então filmes bons”. Wilder viria a receber a naturalização estaounidense ainda em 1934.
Apesar de mal saber falar inglês na época, estabeleceu-se em Hollywood, onde por um tempo dividiu apartamento com o ator Peter Lorre, que, como ele, também era um judeu que trabalhava na Alemanha até a ascensão do governo nazista, fugindo então de lá. Este, através de seus contatos, ajudou Wilder, que rapidamente aprendeu inglês, a retomar sua carreira como roteirista, assinando os roteiros como “Billy Wilder”, derivado do apelido que sua mãe, fascinada como ele pela cultura americana, lhe dava.
Escrevia geralmente em parceria com outros roteiristas, embora exercendo grande controle durante o processo criativo. Seu principal colaborador foi Charles Brackett, com quem começou a trabalhar no roteiro de “A Oitava Esposa de Barba-Azul” (1938), em uma parceria que duraria doze anos, com Brackett primeiro co-escrevendo e, a partir de 1942, produzindo seus filmes. Alguns dos filmes que escreveu durante esse período, como “Ninotchka” (1939) e “Bola de Fogo” (1941), mais tarde ganhariam o status de clássicos.
Outra figura importante para Wilder durante este período foi Ernst Lubitsch, cineasta alemão que escreveu diversos roteiros para filmes mudos, tanto na Alemanha quanto, a partir de 1922, nos Estados Unidos, e que com o advento do cinema falado tornou-se produtor da Paramount. Lubitsch produziu alguns dos primeiros filmes americanos de Wilder, que tinha por ele uma grande admiração, a ponto de pendurar na parede em frente à sua escrivaninha uma placa onde se lia “Como Lubitsch faria?”.
Em 1942, decepcionado com a forma como outros diretores “arruinavam” seus roteiros, voltou a, além de escrever, dirigir filmes, após um hiato de oito anos depois de “Semente do Mal”, e aproveitando que naquele momento os grandes estúdios de Hollywood estavam começando a deixar alguns roteiristas como John Huston e Joseph Mankiewics dirigirem seus próprios roteiros. Em uma entrevista à revista “The Paris Review”, ele disse: “Eu apenas queria proteger o roteiro. Eu não tinha nenhuma assinatura ou estilo, exceto daquilo que aprendi de quando estava trabalhando com Lubitsch e de analisar seus filmes – fazer as coisas o mais elegante e simples possível”. O primeiro filme que Wilder dirigiu nos Estados Unidos foi “A Incrível Suzana”, estrelando Ginger Rogers, depois escrevendo/dirigindo filmes como “Cinco Covas no Egito” (1943) e “Pacto de Sangue” (1944), este último tendo co-escrito com o autor de histórias policiais Raymond Chandler. Em 1945, recebeu seus dois primeiros Oscars, como roteirista e como diretor, pelo filme “Farrapo Humano”. Ao longo de sua vida, viria a ser indicado ao Oscar 21 vezes (12 vezes como roteirista, 8 como diretor, e uma vez como produtor de Melhor Filme).
Após o fim da 2ª Guerra Mundial, Wilder voltou à Alemanha como coronel em uma missão do exército americano para reconstruir a indústria cinematográfica alemã. Aproveitando-se disso, filmou em Berlim “A Mundana” (1948), estrelando sua conhecida de seus tempos de jornalista Marlene Dietrich.
Após “Crepúsculo dos Deuses” (1950), último filme de sua parceria com Charles Brackett, e pelo qual ganhou seu segundo Oscar de Melhor Roteiro, passou a, além de escrever e dirigir, também produzir a maioria de seus filmes, começando com “A Montanha dos Sete Abutres” (1951). A partir daí, sua filmografia se constitui principalmente de comédias, que, embora nem sempre sucessos de bilheteria, eram bastante cínicas e com um forte teor satírico, como “Se Meu Apartamento Falasse” (1960), pelo qual fez o feito de receber por um único filme os Oscars de Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro. Aposentou-se em 1981 após dirigir seu último filme “Amigos, Amigos, Negócios à Parte”, terminando com uma carreira de mais de cinquenta anos e 60 filmes, 27 dos quais dirigiu. Morreu em seu apartamento em Los Angeles de pneumonia em 2002, aos 95 anos de idade.
Um dos poucos cineastas hollywoodianos com grande autonomia criativa durante o período do Código Hays (1930-1968), que estabelecia regras de censura com forte teor moral e conservador aos estúdios americanos, Billy Wilder sempre exigia direito sobre o corte final de seus filmes, algo raro na época que Wilder chamava de “era dos estúdios”, em que o produtor, mais do que o diretor e principalmente mais do que o roteirista, era quem tinha o real controle sobre o filme.
Apesar de ter tentado manter ao longo de sua carreira como diretor um estilo de filmagem discreto (tendo até dito em certa ocasião que “o melhor diretor é aquele que você não vê), acreditando que o diretor por si só não é o autor de um filme e sempre se autodeclarando como escritor, seus filmes são marcados por várias características narrativas e estéticas recorrentes: Seus protagonistas, por exemplo, são geralmente bastante espertos, moral ou socialmente imperfeitos e, não raro, seja por necessidade ou por ambição, tentam mudar de identidade, além de muitas vezes narrarem a história; as mulheres protagonistas de vários de seus filmes são retratadas como perigosas e manipuladoras, embora também possam ser às vezes ingênuas e românticas; muitos de seus filmes utilizam-se de baixa iluminação, grande contraste entre preto e branco (no caso de seus filmes não-coloridos) e de ângulos de fotografia inspirados no cinema noir; e, sua característica mais marcante, quase todos os seus filmes são bastante cínicos, especialmente nos diálogos, que retratam a humanidade de forma agridoce, algo muito criticado na época tanto por críticos quanto por grandes produtores de Hollywood, que não raro se sentiam ofendidos pelos seus filmes, como foi o caso de “Crepúsculo dos Deuses” (uma representação bastante pessimista de Hollywood) e “A Montanha dos Sete Abutres” (uma crítica ao jornalismo sensacionalista); porém, em menor ou maior grau, mostram esse cinismo de forma bem-humorada.

Mais de uma vez, disse em entrevistas que seu principal objetivo ao fazer filmes era que eles não entediassem o público. É conhecido também como um grande diretor de atores, dirigindo 14 atores e atrizes em performances indicadas ao Oscar, e também pela variedade de gêneros com os quais trabalhou, como filmes de guerra, dramas, policiais noir, musicais e comédias.