Há
um estranho consenso entre críticos e cinéfilos: Enquanto “A Liberdade é Azul”
e “A Fraternidade é Vermelha” são considerados obras-primas do cinema, “A
Igualdade é Branca”, o segundo filme da Trilogia das Cores de Krzysztof
Kieslowski, é sempre tratado como o filme “menos” dos três. Por quê? Porque ele
cometeu um crime que nenhum filme cult deve cometer: É leve, chamativo e
inteligível!
Oh,
não! Como ousa?!
Ok,
talvez eu esteja exagerando um pouco, mas a piada não está tão longe assim da
verdade. De fato, “A Igualdade é Branca” não é tão dramático ou intimista
quanto “A Liberdade é Azul” ou provavelmente “A Fraternidade é Vermelha” (já
chego lá!), nem se aprofunda tanto na mente de personagens psicologicamente
complexos, preferindo ao invés disso contar uma história com mais reviravoltas
e humor negro. Então não, dessa vez não me preocuparei em mergulhar em
divagações metalinguísticas como da outra vez que escrevi sobre um filme da
Trilogia das Cores (ok, podem soltar os rojões, eu já sei o quanto aquilo não
fez sentido algum).
Mas
ao mesmo tempo... É sério que tem aqueles que desconsideram esse filme
basicamente por ser divertido e de mais fácil acesso a quem está começando a se
interessar por filmes cult?!
“A
Igualdade é Branca” gira em torno de Karol Karol (interpretado por Zbigniew
Zamachowski), um cabelereiro polonês morando em Paris que, logo no começo do
filme, vai pro tribunal para resolver seu divórcio com sua esposa francesa,
Dominique (interpretada por Julie Delpy). O motivo pelo qual ela quer um
divórcio? Ela alega que Karol foi incapaz de consumar o casamento deles devido
a uma impotência crônica. Karol tenta convencer Dominique a não seguir em
frente, dizendo que ainda a ama e que eles podem ser felizes juntos mesmo
assim, ao que ela responde friamente que não o ama mais. Sua dificuldade em
falar francês, necessitando da ajuda de um tradutor, não ajuda Karol a
persuadir o juiz a não oficializar o divórcio.
Caso
você esteja se perguntando, sim, esse é o mesmo tribunal em que Julie entra em
“A Liberdade é Azul”. Desafio-te a não apontar o dedo pra tela quando ela aparece
no fundo entrando e sendo expulsa.
Como
se o divórcio não fosse um golpe grande o suficiente na vida de Karol, seu
cartão de crédito é invalidado, e ele perde acesso à sua conta bancária. Tudo
que ele tem agora é uma mala contendo alguns diplomas, a chave do salão de
beleza que ele mantém junto com Dominique e alguns euros que ele guardou no
bolso.
Mas
isso não é tudo que o destino reserva a esse pobre-coitado: No dia seguinte,
Dominique o encontra dormindo no salão de beleza, mas não sente qualquer pena
dele e não quer voltar atrás em seu divórcio. Mesmo depois que a impotência de
Karol é milagrosamente curada, tudo o que Dominique faz é queimar as cortinas
do salão e dizer na cara de seu ex-marido que ligará para a polícia dizendo que
foi ele que fez isso em um ato de vingança. Tudo o que resta agora a Karol é
dormir na estação de metrô, esconder-se dos policiais que estão à sua procura e
mendigar pela sua sobrevivência enquanto não consegue arrumar uma forma de
voltar para sua Polônia natal sem passaporte.
A
esperança de Karol chega na forma de Mikolaj (interpretado por Janusz Gajos),
outro polonês que, ao ouvi-lo tocando uma canção polonesa com um pedaço de
papel por trocados, simpatiza por ele e decide ajuda-lo. Primeiro oferece-lhe
um trabalho que lhe renderá bastante dinheiro: Matar um homem que quer se
suicidar, mas não tem coragem de fazê-lo por conta própria. Karol, não querendo
fazer esse tipo de coisa, recusa. Ambos, então, decidem armar um esquema para
levar Karol de volta à Polônia escondido dentro de sua mala. O esquema dá,
digamos, mais ou menos certo, devido ao envolvimento inesperado de uma gangue
de ladrões de malas poloneses, mas Karol finalmente chega a Varsóvia e à casa
de seu irmão, Jurek (interpretado por Jerzy Stur).
Jurek
oferece a Karol a chance de voltar a trabalhar como cabelereiro no antigo salão
que ambos compartilhavam, mas Karol parece ter algo maior em mente. Muito,
muito maior. Através de uma série de esquemas muito bem elaborados pela sua
mente ousada e bem-organizada, ele começa a ganhar cada vez mais dinheiro, de
forma nem sempre honesta. Não demora muito para se perceber que Karol possui
Dominique como objetivo final de suas ações. Não se sabe, porém, se ele quer
reconquista-la, se quer vingar-se da forma como ela o abandonou à própria
sorte, ou até mesmo ambos. É só no final do filme que fica claro o que ele quer
com ela.
Depois
de assistir um filme tão parado, sério e artístico quanto “A Liberdade é Azul”,
“A Igualdade é Branca” chega até a dar certo choque, pois muitas das escolhas,
seja estilísticas, narrativas e temáticas, que Kieslowski faz aqui, são
diametralmente opostas ao que ele fez no filme anterior da trilogia. Vamos
analisar cada aspecto em separado.
Primeiro,
o estilístico. A primeira palavra que vem à mente quando se vai comparar o
estilo de “Igualdade” com o de “Liberdade” é americanizado: “Igualdade” é um filme muito mais americanizado, com
seu ritmo muito mais rápido e a forma como mostra a tragédia e reviravolta na
vida de seu personagem principal com muito mais humor. Mas não qualquer humor:
Um humor negro, ácido, a pura graça de se ver pessoas tendo suas vidas ferradas
e ferrando com a vida dos outros. Nada parecido com a seriedade lenta e
dramática de “Liberdade”. Chega-se quase a se perguntar se ambos foram
dirigidos pela mesma pessoa, pois este que aqui analisamos é muito mais
parecido com, digamos, um filme dos irmãos Coen do que com algo saído da mente
de Kieslowski.
Aliás,
pensando agora, há muito de irmãos Coen nesse filme! Personagens moralmente
ambíguos, porém com suas próprias peculiaridades cuja simples menção soa
engraçada? Checado: Ao final, não se sabe se é pra se torcer a favor ou contra
Karol, e me diga se você não ri diante da ideia de seu plano para fugir para a
Polônia ser descoberto não pela polícia, mas sim por uma gangue de ladrões de
mala poloneses!
Humor
irônico, niilista e que sadicamente utiliza a violência como algo ridículo?
Checado: Depois de ser espancado pela gangue de ladrões de mala poloneses, cair
de um morro coberto de neve e virar-se para constatar que está ao lado de um
lixão, a reação de Karol é dizer “Enfim, em casa”. E note a cena em que ele
resolve enfim aceitar o trabalho de Mikolaj e matar o homem que quer morrer,
que começa bastante dramática, mas chega a uma conclusão tão absurda que dá
vontade de rir.
Não
vou concluir que Kieslowski se inspirou nos irmãos Coen para fazer esse filme,
pois eles estavam ainda no começo de sua prolífica carreira quando a trilogia
das cores estava em produção (embora já tivessem feito comédias como “Arizona
Nunca Mais”), sem falar que alegadamente Kieslowski inspirou-se principalmente
nas tragicomédias de Chaplin, mas mesmo assim, é uma experiência interessante
assistir a esse filme e depois ver algo como, digamos, “Fargo” ou “Inside Llewin
Davis” e notar como ambos podiam facilmente ter sido dirigidos, ou pelo menos
concebidos, pela mesma pessoa.
Depois
do aspecto estilístico, vem o aspecto narrativo. Enquanto “A Liberdade é Azul”
tinha uma história parada, na qual qualquer mínima coisa demorava para
acontecer, dando tempo para o espectador apreciar a cena (ou brincar de
narrá-la. Sério, façam isso, é impressionante!), “A Igualdade é Branca” é
rápido, incessante. O tempo todo algo está acontecendo, e o tempo todo o
espectador fica se perguntando o que Karol fará em seguida, como numa espécie
de filme noir. Lá, o foco do público
era no presente, na cena; aqui, o foco é no futuro, na trama. De novo, a
palavra americanizado não demora a
vir à cabeça.
Por
fim, temos o aspecto temático. Kieslowski sempre afirmou que ele concebeu a
trilogia das cores como tratando de temas pessoais, íntimos, evitando abordar a
“liberdade, igualdade e fraternidade” no sentido político dentro do qual o lema
francês foi concebido. Porém, mesmo os menos cinéfilos perceberão que ele se
deixou abordar um pouco a política em “A Igualdade é Branca”. Não que o tema da
igualdade seja tratado em seu sentido político, ao final ele continua tendo um sentido
pessoal, porém toda a trama do filme não seria possível sem trazer a tona a
situação política europeia da época, especialmente a da Polônia natal de
Kieslowski.
Para os que não sabem
do que estou falando (supondo que ajam tais pessoas), deixe-me explicar
(porque, como eu disse em minha crítica da “A Liberdade é Azul”, “sou um jovem
inexperiente, pedante, pretensioso e egocêntrico”): Kieslowski criou a trilogia
das cores no início dos anos 90. Nessa época, a Polônia havia acabado de sair
de um período de mais de quatro décadas de regime comunista, e embora ainda não
fizesse parte da União Europeia, e embora estivessem em uma posição de
desvantagem econômica em relação ao outros países europeus, os poloneses
estavam começando a descobrir as possibilidades do livre mercado, e estavam
dispostos a avançar nesse novo sistema e deixar de ser os “vira-latas” da
Europa. E isso é imediatamente deixado claro no filme assim que Karol chega ao
seu país e fica impressionado que seu irmão colocou um letreiro em neon sobre a
porta de seu salão de beleza, ao que este responde “Aqui é Europa agora”. A
nova república polonesa é motivo de celebração, o que fica evidente a partir do
momento em que a única coisa que Karol leva consigo para a Polônia é um busto
de Marianne, símbolo francês da república. (Por que será que parece fazer mais
sentido agora Kieslowski fazer aqui um filme mais americanizado?)
Nessa nova Polônia
“europeia”, as pessoas pela primeira vez em anos têm a esperança de enriquecer,
de ser mais do que lhes é determinado. Tal esperança é representada na forma de
Karol, que em pouco tempo aumenta suas economias, que ao chegar à Polônia eram
de uma única moeda de dois francos, para uma fortuna milionária. Sim, o filme
não nega que o capitalismo tem sua dose de virtudes.
Mas, como o filme deixa
bem claro, apesar dessas virtudes, nem tudo são flores: Karol é um empresário
agressivo, disposto a ordenhar o máximo de dinheiro que a nova economia lhe
possibilita, mesmo que os meios que utilize para isso sejam suspeitos. Assim, a
nova Polônia capitalista é retratada como um lugar injusto, desigual e que
demoliu suas bases morais para construir um prédio de trinta andares no lugar,
onde todos passam a perna uns nos outros, e vence aquele que souber como não
ter sua perna passada. Não há mais ideologias, não há mais ética, apenas a
caótica selva liberal, e em meio a essa selva há o dinheiro, essa poderosa
força capaz de comprar qualquer coisa. E isso não sou eu dizendo! Conte quantas
vezes algum personagem do filme diz que “Esses dias, você pode comprar qualquer
coisa”, seja um letreiro em neon, uma terra, uma arma, ou coisas ainda mais
nefastas. (Basicamente toda a moral do filme poderia ser resumida na canção
“Money” de Pink Floyd)
Isso
quer dizer que “A Igualdade é Branca” é um retrato de sua época? Sim,
definitivamente. Isso quer dizer que o filme envelheceu? Bem, sim, um pouco.
Mas eu não chegaria a dizer que o filme está “desatualizado”. Sim, realmente a
política que o filme aborda era mais relevante nos anos 90 do que agora. Mas a
política não tudo que ele tem a oferecer. Continua sendo uma comédia de humor
negro bastante eficiente sobre um homem que, após perder tudo, torna-se um
milionário para chamar de volta a atenção da mulher que ama. Um “Grande Gatsby”
polonês, pensando agora. Aliás, há muito em comum entre “A Igualdade é Branca”
e “O Grande Gatsby”... Mas essa comparação fica para uma próxima vez. Por ora,
digo apenas que mesmo a política referente à Polônia estando desatualizada, o
tema de um personagem que busca superioridade em relação aos outros a qualquer
custo é um tema perfeitamente atemporal em qualquer sociedade liberal. E que,
embora não seja tão intimista quanto os outros filmes da trilogia, continua
tendo um valor artístico inegável, embora mais acessível ao público não
iniciado no cinema de arte. Justamente por isso, acredito que se você não for
iniciado e quiser se iniciar, apesar de breves referências aqui e ali ao filme
anterior da trilogia, eu digo que no seu caso começar por esse filme...
Avaliação: Vale a pena.