Lendo
minha postagem passada sobre “Scooby-Doo na Ilha dos Zumbis”, notei que ao
final da análise do filme citei um diretor sobre o qual venho querendo falar
desde... Bem, desde que comecei esse blog, sendo sincero: Don Bluth.
É
provável que muitos de vocês não reconheçam seu nome ou seu rosto, mas
provavelmente em algum momento passaram por alguma de suas animações. Bluth é
responsável por filmes que fizeram parte da infância de muitas pessoas, como
“Em Busca do vale Encantado”, “Um Conto Americano” e “Anastasia”. Além disso,
também fez a animação do jogo de videogame “Dragon’s Lair”, e atualmente está arrecadando
fundos para a produção de um filme baseado no jogo. Como se pode ver, ele é um
mestre da animação, e embora durante muito tempo ele tenha sofrido com estúdios
assumindo cada vez mais controle sobre seus filmes (com o auge disso em “O
Cristal e o Pinguim”, filme que até o próprio Don Bluth odeia), seus projetos
mais autorais são possivelmente algumas das melhores animações que já vi. E,
nada melhor para começar a falar desse diretor do que analisando seu primeiro
e, na minha opinião, melhor longa-metragem, “A Ratinha Valente”.
O
filme foi lançado em 1982, pouco depois de Don Bluth sair da Disney e criar seu
próprio estúdio de animação, Don Bluth Productions, porém a impressão que se
tem ao assistir esse filme é a mesma dos primeiros longas-metragens de Walt
Disney, como “Branca de Neve” e “Bambi”. Bluth claramente cresceu assistindo e
amando esses filmes, e, decepcionado com os rumos que o setor de animação da
Disney estava seguindo, decidiu fazer um filme mais nostálgico, que passasse a
sensação daquelas animações antigas... Embora não sem alguns toques autorais do
diretor.
“A
Ratinha Valente” é baseado em um livro de Robert C. O’Brien (infelizmente,
ainda sem tradução para o português), e conta a história de Sra. Brisby, uma
camundonga recém-viúva que vive dentro de um tijolo na fazenda do Sr.
Fitzgibbon. Um de seus filhos, Timothy, está sofrendo de pneumonia, e a Sra.
Brisby descobre que, apesar dos melhores remédios, seu filho não poderá sair de
casa por três semanas, ou morrerá. Infelizmente, no dia seguinte começa a
colheita na fazenda, e sua casa fica bem no caminho do trator do Sr.
Fitzgibbon, podendo ser destruída por este a qualquer momento. A única forma de
evitar isso é movendo o enorme tijolo para um ponto mais elevado, algo que
aparentemente nenhum animal que ela conhece é capaz de fazer. É assim que, em
sua busca desesperada por um modo de salvar sua família, Sra. Brisby descobre
uma sociedade secreta de ratos, que, após experimentos de laboratório,
tornaram-se extremamente inteligentes, sendo capazes de usar tecnologia
elétrica a níveis de ficção científica, que vivem escondidos em uma roseira, e
dos quais aparentemente seu falecido marido fazia parte.
Oh,
por onde começo a falar sobre esse filme?
Primeiro,
vamos falar sobre a atmosfera do filme. À típica maneira de Don Bluth, é
impressionante o quanto esse filme consegue ser belo e assustador ao mesmo
tempo. Bluth consegue, através da animação do filme, criar um mundo cheio de
perigos, com tudo assumindo proporções gigantescas do ponto de vista de um
camundongo. Um gato ou uma coruja são criaturas terríveis, capazes de te
esmagar com uma única pata. Uma gaiola é uma prisão da qual é quase impossível
escapar. Os simples espinhos de uma roseira parecem tão impenetráveis quanto a
floresta de espinhos de “A Bela Adormecida”. Um trator então? O ronco de um
trator chega a parecer algo apocalíptico, a morte iminente para qualquer
pequeno animal.
Ao
mesmo tempo, porém, é um mundo cheio de belezas, as pequenas coisas que
apreciamos no nosso dia-a-dia tornando-se maiores e mais coloridas, parecendo
algo saído de um conto de fadas. Flores, orvalho, uma simples pedra... São
coisas que nesse filme possuem uma beleza estonteante.
Assim, o filme pode
criar uma tensão com cenários ameaçadores como:
Mas
logo em seguida trazer um cenário belo como:
E,
claro, nada se compara ao silêncio de um dia pacífico no campo, indicando que
todo o perigo finalmente acabou.
Aliás,
vamos falar do silêncio nesse filme? Embora trilha e efeitos sonoros estejam
presentes em boa parte das cenas, é difícil não notar a sensação de quietude em
“A Ratinha Valente”. Ao contrário da maioria dos filmes infantis, que tentam
chamar o tempo todo a atenção das crianças com barulhos, canções e cores
vibrantes, esse segue o caminho oposto. Os barulhos se limitam geralmente aos
sons da natureza, da água, do vento e de coisas roçando uma na outra. As cores,
embora estejam bastante presentes em alguns cenários, não são vibrantes e
vivas, e a maior parte do tempo o filme é bem escuro. E quanto às canções, o
filme só tem uma. E ela é tão triste! Não basta ela ser lenta, quase uma canção
de ninar; ela tem que ser cantada enquanto Sra. Brisby dá remédio para seu
filho moribundo, enquanto os outros filhos dela se perguntam se o irmão vai
morrer. Eu não sou de chorar em filme, mas essa cena me deixou com olhos
úmidos.
Mas
então, se não há nem barulhos, nem cores vivas e nem canções, o que sobra em “A
Ratinha Valente”? A resposta é simples: Uma das melhores narrativas visuais que
já vi em um filme. Entenda, em quase qualquer filme, mas principalmente em
filmes infantis, é importante as imagens participarem da narrativa tanto quanto
ou até ainda mais que os diálogos. Afinal, é isso que separa um filme de,
digamos, um livro. Um livro quase sempre possui diálogos, e longas descrições,
e tudo o necessário para que você entenda a história através das palavras; um
filme, porém, possui algo que até então quase nenhuma outra grande mídia tinha:
A imagem. Caramba, as origens do cinema eram mudas, então era necessário saber
contar uma história quase exclusivamente através de imagens! Essa mesma
narrativa visual se torna extremamente necessária também em filmes infantis.
Crianças nem sempre entenderão os diálogos dos personagens. Pelo menos eu,
quando criança, muitas vezes não fazia a menor ideia do que as pessoas nos
filmes estavam falando! A grande maioria das crianças, porém, são capazes de
compreender imagens. Por isso é tão importante em um filme infantil contar sua
história através delas.
É
isso que “A Ratinha Valente” faz. A história por vezes pode ser um tanto
complexa, especialmente quando a política dos ratos é trazida em cena, porém é
perfeitamente possível entender o filme através de suas imagens. Duvida? Faça o
seguinte experimento: Assista o filme com o volume mudo. Você verá que será
capaz de mesmo assim entender a história. Embora, se não for pelo experimento,
recomendo assistir o filme com som: A trilha sonora, composta por Jerry
Goldsmith, é muito, muito boa, e contribui para a compreensão do filme quase
tanto quanto as imagens. Aliás, por que o filme tem diálogos, afinal? Fica
difícil acreditar que ele foi inspirado em um livro!
Mas
mesmo uma excelente animação e narrativa não tornam um filme excelente, a menos
que ele possua um(a) personagem principal interessante. E aí entra em cena Sra.
Brisby. E como ela se sai? Bem... Digamos que ela é possivelmente uma das
personagens mais corajosas da história do cinema. Não que ela não tenha medo.
Pelo contrário, o filme inteiro você vê que ela está quase fugindo de pavor. E
não é para menos: Ao longo do filme, ela encontra um gato demoníaco, uma coruja
de cujo ninho ninguém jamais voltou, precisa fugir de uma gaiola presa por
arame e pendurada no teto e ainda, quando o trator ameaça esmagar sua casa com
Timothy dentro, ela tenta para-lo. Deixa-me repetir isso: Uma camundonga, que
cabe na palma da tua mão, tendo que parar um trator! E adivinhem só: Apesar de
todo o medo do mundo, ela enfrenta esses perigos todos. Voluntariamente até, na
maioria dos casos! E tudo isso por quê? Por causa do amor que tem por seus
filhos. Quando ela enfrenta um novo perigo, apesar de todo o pavor, ela o faz
porque não quer ver seus filhos morrerem. A ponto de, ao entrar no ninho da
Grande Coruja, que pode tanto lhe dar a resposta de como mover sua casa quanto
devorá-la, ela repete para si mesmo “Lembre-se de Timothy” para não fugir de
lá.
Pensando
agora, Sra. Brisby talvez não seja apenas uma das personagens mais corajosas do
cinema; ela pode também muito bem ser uma das melhores mães. Seja atravessando
uma floresta de espinhos escura e desconhecida, seja enfrentando um monstro
mecânico com mais de mil vezes seu tamanho sem fazer a menor ideia de como
para-lo, seja botando a mão no fogo, tanto no sentido figurativo quanto no
literal, ela faz tudo, absolutamente qualquer coisa para salvar sua família. E
quando ela finalmente se reúne com seus filhos, ela continua sendo uma boa mãe:
Cuida deles quando precisam, ri com eles quando está tudo bem, educa eles
quando estes fazem algo de errado... E claramente dá pra perceber que estes a
adoram, mesmo quando ela não está na capacidade de lhes dar toda a atenção.
Ainda
assim, Sra. Brisby não é nenhuma super-heroína. Por mais corajosa que seja, ela
ainda assim não é capaz de resolver tudo sozinha. Aliás, ninguém nesse filme é:
Todos os personagens que Sra. Brisby encontra em seu caminho acabam a ajudando
em algo que ela não consegue fazer por conta própria, e da mesma forma ela os
ajuda com seus problemas. Não há nenhum “messias” que resolve todos os
problemas de todo mundo. E mesmo que o final possa parecer um “Deus ex Machina”
(para quem não conhece o termo, significa uma resolução para todos os problemas
de uma história, que aparece no último momento de forma inesperada), ele não
seria possível sem os personagens se ajudarem uns aos outros.
É
triste pensar que um diretor que fez um filme tão genial quanto este tenha tido
uma carreira tão conturbada, entre problemas financeiros (a Don Bluth
Productions faliu devido à bilheteria modesta de “A Ratinha Valente”, e o
próprio Don Bluth mais de uma vez teve problemas em financiar seus filmes) e
com grandes estúdios (além da Disney, ele já trabalhou para a MGM e para a Fox,
sempre saindo brigado). Depois de “A Ratinha Valente”, fica fácil entender
porque Don Bluth é considerado um dos melhores animadores vivos do mundo.
Pode-se apenas torcer agora que ele consiga fazer um bom filme de “Dragon’s
Lair”, com o mesmo talento e esforço posto aqui.
Avaliação: vale muito a pena