(Comecei
a escrever essa crítica no dia 30/09, porém os estudos apertaram e tive que passar
alguns dias sem escrever, portanto só consegui termina-la agora. Talvez isso se
repita nas próximas postagens, mas tentarei escrever sempre que possível)
Ok, irei direto ao
ponto: Simplesmente não tem como eu
fazer jus a este filme. E acho que não preciso dizer a vocês o porquê, preciso?
Há poucas definições melhores de “meter-se aonde não foi chamado” do que um
crítico de cinema branquelo como eu falando sobre um filme de Spike Lee. Seja
falando bem, seja falando mal, não importa: Os filmes dele simplesmente não foram feitos pra nós.
Então
por que estou eu próprio me metendo aonde não fui chamado? Bem, após todas
essas continuações de “A Hora do Pesadelo”, estou tão cansado delas quanto
vocês devem estar (vamos lá, podem ser sinceros comigo, dói mas passa!), e
realmente precisava me lembrar de que ainda existem filmes bons por aí. E
considerando que eu gosto de de vez em quando me desafiar aqui neste blog; que o
ator Bill Nunn morreu recentemente; e que ele teve um papel consideravelmente
importante neste filme, então... Eis “Faça a Coisa Certa”!
A
estrutura toda do filme, quando se para pra pensar, é bem simples: Afinal, ele
se passa quase inteiramente em um único dia; tem como cenário uma única rua no
bairro de Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn; e contar uma sinopse que não acabe
por resumir quase o filme inteiro, ou seja decepcionantemente vaga, é uma
tarefa um tanto difícil. Tudo isso deveria apontar para um minimalismo, um
filme “pequeno”, em todos os sentidos da palavra, e que vá direto ao ponto.
Deveria.
Mas não é o caso de “Faça a Coisa Certa”, que se revela um filme com uma
direção e roteiro bastante maduros, o que é ainda mais surpreendente
considerando que Spike Lee havia feito apenas dois longas-metragens antes deste.
A
trama do filme gira em torno das tensões raciais crescentes que ocorrem em uma
vizinhança onde, embora a maioria da população seja negra, os únicos comércios
locais são uma loja coreana e uma pizzaria italiana. O estopim das tensões
ocorre quando um dos clientes da pizzaria percebe que o “mural da fama” dela
não possui nenhuma celebridade negra, apesar de os negros formarem quase a
totalidade da clientela, e portanto decide armar um boicote ao local. Tudo isso
no dia mais quente do verão.
E sim, o calor do dia é
de fato uma metáfora para o “clima esquentado” entre os personagens. Aliás,
Spike Lee constantemente utiliza-se da temperatura no filme como metáfora para
as mais diversas situações: Uma personagem que está quase o tempo todo irritada
e falando a palavra “f***k” pelo menos uma vez em toda frase, em uma cena é
vista mergulhando o rosto, com uma expressão serena, em um balde de gelo para
“esfriar a cabeça” (entendeu?); outra personagem, que não gosta que seu irmão
more com ela por ele não conseguir pagar por uma casa própria, após reclamar da
situação é vista através da grade do ventilador (grade, presa a uma
situação...); e um vendedor de raspadinhas perde sua clientela diante da
passagem de um caminhão de sorvete (se isso não for um comentário sobre
gentrificação, eu não sei o que é).
Spike
Lee, porém, não se contenta em ter os personagens constantemente falando sobre
o calor e usá-lo como uma metáfora; afinal, ele é um diretor que sabe que o
cinema é um meio essencialmente visual, e, portanto, vai além e resolve nos mostrar o calor. Sendo assim, não basta
todos os personagens aparecerem suados e o céu estar sem uma única nuvem para
tapar o sol: A paleta de cores do filme utiliza-se constantemente de tons
quentes como vermelho, laranja e amarelo nos cenários e figurinos, e até mesmo,
em boa parte do filme, a câmera filma as cenas com um filtro de luz que deixa
tudo nessas cores, como se o sol estivesse batendo direto em tudo ao mesmo
tempo. Não é apenas mais um dia quente: A impressão que se tem é que se alguém
acender um cigarro, o lugar inteiro pegará fogo. Ao mesmo tempo, porém, isso dá
certa beleza ao filme, fazendo o bairro de Bedford-Stuyvesant parecer especial,
como que saído de um filme de Almodóvar, um lugar cheio de cores, luz e vida...
Porém, infelizmente, cheio de problemas também devido à tensa convivência entre
pessoas das mais diversas origens raciais.
A
própria forma como Spike Lee retrata essa tensão, aliás, é outro aspecto visual
do filme que merece destaque: Note como que, em situações de tensão e
confronto, a câmera nunca está em uma posição “natural”, mostrando os
personagens através de ângulos holandeses (nome dado para quando a câmera está
inclinada para o lado), contra-plongées
(quando a câmera mostra um personagem de baixo pra cima) e closes um tanto
desconfortantes. Mas a ideia não é apenas nos causar desconforto: nessas
situações, os personagens quase sempre estão olhando diretamente para a câmera,
ou pelo menos estão em uma posição que dá a impressão de que nós, o público, estamos participando do
confronto. Estamos vendo o personagem de
um forma distorcida – e é assim que, de forma visual, Spike Lee mostra a
noção de estereótipo. Mas notem que algumas cenas, embora aparentemente tenham
um conflito ou tensão, são filmadas em um plano natural. E o segredo é a palavra aparentemente: De forma sutil, Lee está nos dizendo que aquilo que
nos parece um conflito na verdade não tem conflito algum.
Mas
não vamos esquecer que “Faça a Coisa Certa” é um daqueles filmes que conseguem
combinar uma direção boa e diferenciada com um roteiro bom e diferenciado. Isso
porque, quando se para pra pensar... “Faça a Coisa Certa” praticamente não tem
um protagonista. Quero dizer, até se pode dizer que o filme possui um personagem principal, aquele que possui
uma maior presença ao longo do filme, que é definitivamente Mookie, o
entregador da pizzaria (interpretado pelo próprio Spike Lee), cujo drama é o
mais presente dentro da trama.
Porém,
não apenas Mookie pouco muda do começo ao fim do filme, como o drama pessoal
dele é apenas mais um entre os diversos que são apresentados ao longo do filme,
com maior ou menor presença, motivos pelos quais considero difícil chama-lo de protagonista. E o ponto que conecta
todos esses dramas não é Mookie; é o local onde os personagens vivem, e as
tensões resultantes de tal convivência.
E
quem são afinal esses personagens? Eis aí a grande glória do filme: Por mais
que você tente encontrar defeitos na forma como eles foram escritos, é preciso
ao final se admitir que quaisquer falhas que eles possuam ora são
insignificantes ou até contribuem para o filme: Eles são caricatos, mas ao
mesmo tempo altamente simbólicos; possuem seus defeitos, que variam de
alcoolismo, preguiça, até puro e simples racismo, mas ao mesmo tempo todos
possuem pelo menos uma cena que
mostra algum lado bom deles, ou pelo menos que seus defeitos não são por pura
maldade; e, o mais importante, apesar de aparentemente
não contribuírem em muito para a trama, o filme nos permite sentir um grande
carisma por todos eles, até mesmo os piores.
E
eis que nisso entra a forma como o roteiro é estruturado: Apesar de as cenas
individuais serem bastante aceleradas, energéticas e, de certa forma,
“expansivas”, percebe-se que o ritmo no qual seu enredo se desenvolve é
extremamente lento. Sempre que parece que o filme irá a algum lugar, qualquer
que seja, corta para uma cena que a princípio parece até aleatória, como um
trio que passa o dia sentado na rua sob um guarda-sol, conversando e vendo a
vida passar entre uma cerveja e outra; ou então um velho vagabundo que tenta
conquistar a simpatia de uma sábia, porém rabugenta senhora que há anos o olha
torto. Por causa disso, passa-se mais de uma hora de filme e ainda nos
perguntamos “Tá, mas quando que algo efetivamente
vai acontecer?!”.
Mas
é apenas no terceiro ato que enfim nos tocamos que, com esse ritmo
“passivo-agressivo”, de cenas individualmente rápidas, porém lentas como um
todo, Spike Lee não estava enchendo linguiça: Estava nos dando tempo. Tempo
para conhecer esses personagens e, assim, nos conectarmos com eles, e vermos
que, mais do que figuras caricatas que vemos em quase toda vizinhança de quase
toda cidade do mundo, eles possuem personalidades complexas, longe dos típicos
“mocinhos e bandidos”: Da Mayor (interpretado por Ossie Davis, que rouba a cena
toda vez que aparece), o velho bêbado que está o tempo todo se metendo na vida
dos outros, é capaz de realizar um ato nobre; Pino (interpretado por John
Turturro), o personagem mais babaca e racista do filme... É, ele continua sendo
um babaca racista, mas notem como ele (pelo menos a maior parte do tempo) evita
a violência, especialmente por parte de seu pai (exceto quando seu irmão mais
novo está envolvido, mas preciso dar um jeito de validar meu argumento). Sem
falar que o filme sugere que seu racismo não passa de um gosto reprimido pela
cultura negra... Mas ainda assim, aja personagem babaca! E aliás, elogio para a
atuação de Turturro, que usa a linguagem corporal para torna-lo ainda mais babaca do que o roteiro exige
– note como Pino está constantemente com os braços cruzados e os polegares para
cima, numa atitude ao mesmo tempo defensiva e de superioridade.
E todos, todos tem suas desavenças raciais entre
si, como demonstra uma das cenas mais famosas do filme, na qual vários
personagens olham fixamente para a câmera e ficam se chamando pelas mais
variadas injúrias raciais: Mookie xinga os italianos, Pino xinga os negros, um
porto-riquenho xinga os coreanos, um policial branco xinga os porto-riquenhos, o
vendedor coreano xinga os judeus...
E, como já citei, de
tão caricatos que alguns personagens parecem ser, fica óbvio que Spike Lee
pretende utiliza-los de forma simbólica. Assim, temos Smiley (interpretado por
Roger Guenveur Smith), um gago que tenta vender fotos em preto-e-branco de
Martin Luther King e Malcolm X coloridas à mão; Radio Raheem (Bill Nunn), um
jovem quieto e com cara de bravo que passa o dia inteiro ouvindo a mesma canção
hip-hop no volume máximo em sua boombox, da qual ele tem um orgulho que só se
compara ao que ele tem de seu par de socos ingleses no formato das palavras
“LOVE” e “HATE” (sobre os quais, em uma de suas poucas falas com mais de cinco
palavras, ele faz um discurso que sugiro guardarem na cabeça ao final do filme);
e não vamos esquecer da primeira e última pessoa que ouvimos no filme, Mister
Señor Love Daddy (Samuel L. Jackson), o radialista que 12 horas por dia fica
tocando música, dando conselhos e narrando o que vê através da parede de vidro
de seu estúdio.
Sim,
isso mesmo: No universo deste filme, você tem a possibilidade de passar diariamente
12 horas ouvindo a voz de Samuel L. Jackson no rádio. Isso soa tão certo em tantos níveis!
Se
você ainda está lendo esta crítica (pobre alma!), você deve estar se
perguntando (ou não, vai saber) aonde quero chegar com tudo isso. E a resposta
é: Exatamente no mesmo ponto aonde o filme quer chegar, que é o clímax, no qual
todas as tensões explodem, um personagem é morto e um ato de vandalismo é
feito, reunindo enfim todos os personagens até então apresentados... E é só
então que você percebe que está se importando com todos eles. Isso porque todo o tempo gasto com o que parecia
inicialmente enrolação estava na verdade nos dando tempo para ficarmos
confortáveis com os personagens. Embora recheado de simbolismos e comentários
sociais, “Faça a Coisa Certa” não se esquece de antes te dar personagens que
você goste, te dar o tempo necessário para conhecê-los, saber de suas
qualidades e defeitos, enfim, ter uma conexão
emocional com eles. Assim, quando tudo explode em tragédia, você percebe,
para sua grande surpresa, que você está investido naquilo, e se sente tocado
pelo que acontece.
E
é justamente nesse ponto, quando você está envolvido com a trama e com os
personagens, que o filme te traz sua grande mensagem: Fazer você pensar. Isso
mesmo, após tantos simbolismos e comentários, o clímax é feito de uma forma seca,
ao estilo do neo-realismo italiano, mostrando “a realidade dura como ela é”.
Spike Lee não julga os atos que ocorrem, e a última cena antes dos créditos
justamente consiste de duas citações (uma de Martin Luther King e outra de
Malcolm X) com visões diametralmente opostas sobre a violência como forma de
revolta social. A ideia é justamente fazer o público pensar sobre os atos
ocorridos no clímax, sem tentar justifica-los ou condena-los. A ponto de Lee
até hoje odiar que críticos e espectadores lhe perguntem se o que foi feito foi
“a coisa certa”, sem jamais perguntarem porque a morte que causou isso ocorreu
em primeiro lugar. E, para a surpresa de ninguém, adivinha quem que faz essas
perguntas? Exatamente aqueles para os quais o filme não foi feito.
Avaliação: Vale muito a pena.
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