Desculpem-me por não ter postado nada semana
passada, é que tive uma de minhas típicas crises de melancolia que me impediram
de fazer qualquer coisa que não fosse escrever listas intermináveis de absolutamente nada e ouvir repetidas
vezes as músicas de Prokofiev (acreditem, é mais preocupante do que soa). Mas,
agora que isso se amenizou, estou enfim com disposição para escrever sobre
“Kubo e as Cordas Mágicas”.
É,
eu sei que já estreou faz certo tempo e provavelmente nem está mais nos
cinemas. A bem da verdade, nem estava planejando escrever nada a respeito deste
filme pelo motivo de que já fiz uma crítica dele para o programa de rádio que
minha turma da faculdade produz, o que, para metade dos meus leitores (ou seja,
dois ou três), não deve ser novidade alguma. Mas que seja, vou aproveitar este
espaço para escrever então uma crítica mais aprofundada deste filme.
A
primeira coisa que se precisa dizer sobre “Kubo e as Cordas Mágicas” é que é o
mais novo filme da Laika. Vocês sabem, a mesma companhia responsável por
“Coraline” e “Paranorman”. Para quem assistiu a esses filmes, isso é tudo que é
preciso saber para já ter uma noção do que esperar... Mas pra quem não sabe do
que estou falando, eis o resumo: A Laika é um estúdio independente que vem nos
últimos anos fazendo uma pequena revolução no cinema de animação, tanto na
questão estilística quanto narrativa. Estilística não apenas por se
especializarem em animação stop-motion, técnica ainda bastante subestimada, mas
também por aumentarem suas possibilidades, utilizando-se de tecnologia avançada
para dar a seus filmes uma expressividade e realismo como nenhuma animação stop-motion
teve antes; e narrativa, por terem a ousadia de fazer filmes extremamente sombrios
e dramáticos, ao mesmo tempo tristes e assustadores, testando os limites do que
é considerado entretenimento infantil como não se via desde as animações
“não-Disney” dos anos 80, como os filmes de Don Bluth.
Como
se pode ver, fui assistir “Kubo” com expectativas bastante altas. E então, o
filme conseguiu corresponder a elas? Bom, a resposta é curta e simples: COM
CERTEZA!
Kubo,
o protagonista, é um garoto vivendo nos arredores de uma vila no Japão antigo.
Sua mãe, Sariatu, é a filha do Rei Lua, com poderes mágicos que Kubo acabou
herdando; e seu pai, Hanzo, foi um poderoso samurai, que se sacrificou para que
Sariatu pudesse fugir com Kubo ainda bebê da ira do Rei Lua, que não aprovava a
união, porém não antes que este arrancasse o olho esquerdo de Kubo.
Durante
a fuga, porém, Sariatu sofreu um acidente que lhe causou sérios danos
cerebrais, e por isso passa o dia em um estado catatônico e recupera a lucidez
apenas por algumas horas durante a noite, e mesmo assim sua memória vai ficando
cada vez mais instável. Para sustenta-los, Kubo todo dia vai à vila com seu
shamisen (instrumento de cordas japonês) e, com seus poderes mágicos, dá vida a
origamis e utiliza-os para contar as aventuras de seu pai em troca de esmolas.
Porém, ele tem ordens bastante expressas de sua mãe para nunca permanecer fora
do abrigo deles à noite, pois o Rei Lua poderia assim encontra-lo.
Como
é de se imaginar, eis que um dia ele acaba ficando fora até mais tarde, e,
assim que escurece, suas duas tias aparecem para arrancar-lhe seu olho
restante. Antes que elas consigam pôr as mãos nele, porém, eis que sua mãe,
usando o que lhe resta de seus poderes, envia Kubo para longe e sacrifica-se
para lutar contra suas irmãs.
No
dia seguinte, Kubo se encontra na companhia de uma macaca falante, que é na
verdade um macaquinho de madeira ao qual a mãe de Kubo deu vida para que
pudesse proteger o garoto. A macaca convence Kubo de que a única coisa que há a
se fazer agora é ir atrás das três partes da mística armadura de seu pai (a
espada, o peitoral e o elmo), a única coisa que pode ajudar Kubo a enfrentar o
Rei Lua. Para ajuda-los na procura, eis que lhes aparecem duas ajudas
inesperadas: A primeira é “Pequeno Hanzo”, o samurai de origami que Kubo usava
para representar seu pai em suas histórias, que devido à magia do garoto acabou
criando vida própria; e Besouro, um samurai de verdade que, devido a uma
maldição, não apenas foi transformado em um monstro parecido com um besouro
gigante, mas também perdeu sua memória, sua única lembrança sendo a de que foi
aprendiz de Hanzo. Com o time formado, a busca efetivamente começa.
Há
tantas coisas a serem destacadas neste filme que fica até difícil saber muito
bem por onde começar. Comecemos então pela animação, que é provavelmente aquilo
que primeiro chama a atenção no filme e sobre a qual seria possível escrever um
livro inteiro.
Embora
este não seja exatamente o filme mais caro da Laika, “Kubo e as Cordas Mágicas”
é bem possivelmente sua principal tentativa em fazer uma “superprodução”, e
mostra bem isso: Os cenários são todos colossais, os monstros que os
personagens encontram no caminho são maiores que a vida, e as cenas de luta
possuem coreografias tão elaboradas que fica difícil acreditar que elas foram
feitas apenas com bonecos presos por mini guindastes e fotografados
literalmente frame por frame! Sem falar que o filme consegue superar o principal
desafio em se fazer uma animação em stop-motion, a fluidez: Os personagens se
movem de forma absurdamente natural, a equipe de produção movendo-os milímetro
por milímetro com o máximo de cuidado para fazer com que na tela eles pareçam
estar se movendo por conta própria, quase como se fossem computadorizados!
Não
que o filme não tenha sua dose de imagens computadorizadas, principalmente para
criar alguns efeitos de água e céu, porém o grosso da animação é de fato
stop-motion: Os personagens, objetos, árvores, casas, até mesmo os monstros
gigantossáuricos, essas coisas são reais.
E a mistura dos dois tipos de animação acaba dando uma atmosfera especial ao
filme: A tecnologia de imagens computadorizadas avançou tanto nos últimos anos
que ela consegue parecer quase tão têxtil quanto o stop-motion, e ainda por
cima contribui para dar ao filme um ar de magia que o stop-motion sozinho
talvez não fosse capaz de dar (pelo menos não sem provavelmente levar a Laika à
falência); ainda assim, “Kubo e as Cordas Mágicas” não está afogado em imagens
computadorizadas, usando-as apenas quando necessário, permitindo que elas se
“camuflem” em meio ao que é realmente táctil, evitando assim que o olho se
acostume e consiga diferenciar facilmente o que é “real” e o que não é.
Meu
deus, eu poderia ficar falando da animação de “Kubo” para sempre, de toda a
beleza, detalhismo, expressividade, trabalho duro, etc., etc., mas eu realmente
quero seguir adiante e falar das outras coisas do filme. Se quiserem, há um
vídeo de 15 minutos no youtube mostrando o making-of do filme, que vale a pena
como um complemento para quem já o assistiu, e os créditos finais até mostram
como foi feito o esqueleto gigante (ou Gashadokuro,
se quiser chama-lo pelo nome japonês) que aparece em “Kubo”, o maior boneco já
feito para um filme em stop-motion, com quase CINCO METROS DE ALTURA!
Aproveitando
esta deixa, falemos da mitologia de “Kubo e as Cordas Mágicas”: É
impressionante o quanto que este filme captura com perfeição a cultura japonesa
para criar sua própria versão folclórica do Japão, construindo um universo onde
a magia e espiritualidade nipônicas são tão inegável e inquestionavelmente
reais a ponto de poucas explicações serem necessárias. E não são apenas os
monstros e até alguns personagens que fazem referência a lendas japonesas (é
difícil ver a história da mãe de Kubo e não se lembrar do “Conto da Princesa
Kaguya”, tanto o conto em si quanto o filme): Por exemplo, uma parte significativa
do filme lida com o festival japonês de Obon, que embora nunca tenha seu nome
explicitado, tem todos os seus principais costumes retratados com bastante
fidelidade, e até mesmo o significado do festival é aqui apresentado da forma
mais literal possível, não como mero simbolismo.
Não
que o filme, aliás, não tenha sua dose de fortes simbolismos, principalmente em
se tratando, claro, da importância que o filme constantemente dá para os olhos:
Assim como em “Coraline”, aqui os olhos não são tratados apenas como meros
órgãos do corpo humano, mas como uma forma de ver o mundo e a vida além de suas
frustrações, dificuldades e conflitos, e sacrificar os “olhos” (como símbolo)
por uma vida sem problemas é também sacrificar a beleza, as pequenas alegrias e
tudo o que faz a vida valer a pena (de novo, difícil não se lembrar de
“Kaguya”...), pois é com os olhos que se vê a verdadeira “alma” das coisas –
tanto para o bem quanto, como se vê em uma cena do filme, para o mal.
Mas
não são apenas os olhos, pois o filme aborda, ora de forma mais
simbólica/metafórica/alegórica/o-que-quer-que-seja, ora de forma mais
explícita, toda uma infinidade de questões existenciais que não se espera
geralmente de um filme infantil: Os problemas de memória que diversos
personagens apresentam ao longo do filme são uma forma de “Kubo” não apenas
discutir o quanto ela é importante para a individualidade de uma pessoa, como
também abrir espaço para questões como a preservação da “memória coletiva”; as
histórias que Kubo conta, e sua dificuldade em termina-las, são uma abordagem
metafórica para a vida e a (i)mortalidade; há também abordagens a temas
existenciais como humanidade, família, espiritualidade, e tantas outras
questões, que a princípio pode parecer que “Kubo e as Cordas Mágicas” está
tentando lidar com areia demais para seu caminhãozinho.
Mas não se enganem: Ao final,
tudo isso acaba se costurando em uma única narrativa sólida. E o principal
mérito por isso é a própria forma como a narrativa do filme é construída, não
apenas como mais uma das 1878919831294 “sagas do herói” que se vê por aí, mas
aplicando em si a “lógica de conto-de-fadas”, com muitas coisas específicas
ganhando significados muito maiores do que a princípio parecem ter. Devido a
isso, o filme acaba em muito parecendo de fato com um conto folclórico japonês
que por algum motivo ninguém nunca havia ouvido falar, principalmente também
devido à seriedade com que trata a si mesmo: “Kubo e as Cordas Mágicas” não se
rebaixa a referências à cultura pop, diálogos “moderninhos” que não se encaixem
na época antiga retratada, ou qualquer coisa que o faça parecer forçadamente “bacana”
ou “divertidinho”, e não vira a cara quando quer mostrar o lado sombrio da vida
para as crianças, com morte, luto, dor e medo sendo mostrados em todo o seu
impacto, sem nenhum filtro.
Mas não confundam
“seriedade” com “solenidade exagerada”, pois “Kubo e as Cordas Mágicas” não se esquece
de que, para seus momentos tristes e/ou sombrios terem um impacto mais eficiente,
é preciso ter um pouco de humor no meio para aliviar a tensão nem que seja por
um momento (uma personagem do filme, aliás, diz isso explicitamente em uma
cena). Assim, há sua dose de humor, mas este em momento algum ocupa espaço
demais ou aparece em algum momento indevido, sendo aplicado na medida certa
para o público poder respirar entre um momento dramático e outro.
A seriedade com que o
filme trata a si mesmo acaba também dando um maior impacto àquilo que é
essencialmente a alma de “Kubo e as Cordas Mágicas”: A aventura, que aqui
assume ares quase mitológicos, cada provação que Kubo passa em sua busca tendo
proporções hercúleas. E para tornar a aventura ainda mais empolgante, o filme
utiliza-se em muito não apenas da lógica narrativa dos contos mitológicos, mas
também da dos jogos de videogame (aliás, parando pra pensar, é impressionante o
quanto ambas as lógicas narrativas são parecidas, não? Alguém mais inteligente
que eu, por favor, faça uma tese sobre isso!), com Kubo viajando através de
diversos cenários – que variam desde um campo de gelo até um castelo abandonado
– em busca de certo número de itens bastante específicos que, juntos, o tornam
mais forte, e em cada cenário enfrentando uma criatura diferente, cada uma mais
forte que a outra – ou, porque não chama-los assim, “chefões” –, o próprio Kubo
ganhando experiência, aprendendo coisas novas e ficando mais poderoso ao longo
da jornada. Soa familiar?
Bem que já disseram
antes de mim que “Kubo e as Cordas Mágicas” é possivelmente o mais próximo que
algum dia teremos de um filme de “The Legend of Zelda”: Basicamente, misture
“The Legend of Zelda” com “Okami” e você terá...
Hum...
Ok, essa também é uma alternativa certa.
Avaliação: Vale muito a pena.