terça-feira, 15 de novembro de 2016

Kubo e as Cordas Mágicas

Desculpem-me por não ter postado nada semana passada, é que tive uma de minhas típicas crises de melancolia que me impediram de fazer qualquer coisa que não fosse escrever listas intermináveis de absolutamente nada e ouvir repetidas vezes as músicas de Prokofiev (acreditem, é mais preocupante do que soa). Mas, agora que isso se amenizou, estou enfim com disposição para escrever sobre “Kubo e as Cordas Mágicas”.
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            É, eu sei que já estreou faz certo tempo e provavelmente nem está mais nos cinemas. A bem da verdade, nem estava planejando escrever nada a respeito deste filme pelo motivo de que já fiz uma crítica dele para o programa de rádio que minha turma da faculdade produz, o que, para metade dos meus leitores (ou seja, dois ou três), não deve ser novidade alguma. Mas que seja, vou aproveitar este espaço para escrever então uma crítica mais aprofundada deste filme.
            A primeira coisa que se precisa dizer sobre “Kubo e as Cordas Mágicas” é que é o mais novo filme da Laika. Vocês sabem, a mesma companhia responsável por “Coraline” e “Paranorman”. Para quem assistiu a esses filmes, isso é tudo que é preciso saber para já ter uma noção do que esperar... Mas pra quem não sabe do que estou falando, eis o resumo: A Laika é um estúdio independente que vem nos últimos anos fazendo uma pequena revolução no cinema de animação, tanto na questão estilística quanto narrativa. Estilística não apenas por se especializarem em animação stop-motion, técnica ainda bastante subestimada, mas também por aumentarem suas possibilidades, utilizando-se de tecnologia avançada para dar a seus filmes uma expressividade e realismo como nenhuma animação stop-motion teve antes; e narrativa, por terem a ousadia de fazer filmes extremamente sombrios e dramáticos, ao mesmo tempo tristes e assustadores, testando os limites do que é considerado entretenimento infantil como não se via desde as animações “não-Disney” dos anos 80, como os filmes de Don Bluth.
            Como se pode ver, fui assistir “Kubo” com expectativas bastante altas. E então, o filme conseguiu corresponder a elas? Bom, a resposta é curta e simples: COM CERTEZA!
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            Kubo, o protagonista, é um garoto vivendo nos arredores de uma vila no Japão antigo. Sua mãe, Sariatu, é a filha do Rei Lua, com poderes mágicos que Kubo acabou herdando; e seu pai, Hanzo, foi um poderoso samurai, que se sacrificou para que Sariatu pudesse fugir com Kubo ainda bebê da ira do Rei Lua, que não aprovava a união, porém não antes que este arrancasse o olho esquerdo de Kubo.
            Durante a fuga, porém, Sariatu sofreu um acidente que lhe causou sérios danos cerebrais, e por isso passa o dia em um estado catatônico e recupera a lucidez apenas por algumas horas durante a noite, e mesmo assim sua memória vai ficando cada vez mais instável. Para sustenta-los, Kubo todo dia vai à vila com seu shamisen (instrumento de cordas japonês) e, com seus poderes mágicos, dá vida a origamis e utiliza-os para contar as aventuras de seu pai em troca de esmolas. Porém, ele tem ordens bastante expressas de sua mãe para nunca permanecer fora do abrigo deles à noite, pois o Rei Lua poderia assim encontra-lo.
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            Como é de se imaginar, eis que um dia ele acaba ficando fora até mais tarde, e, assim que escurece, suas duas tias aparecem para arrancar-lhe seu olho restante. Antes que elas consigam pôr as mãos nele, porém, eis que sua mãe, usando o que lhe resta de seus poderes, envia Kubo para longe e sacrifica-se para lutar contra suas irmãs.
            No dia seguinte, Kubo se encontra na companhia de uma macaca falante, que é na verdade um macaquinho de madeira ao qual a mãe de Kubo deu vida para que pudesse proteger o garoto. A macaca convence Kubo de que a única coisa que há a se fazer agora é ir atrás das três partes da mística armadura de seu pai (a espada, o peitoral e o elmo), a única coisa que pode ajudar Kubo a enfrentar o Rei Lua. Para ajuda-los na procura, eis que lhes aparecem duas ajudas inesperadas: A primeira é “Pequeno Hanzo”, o samurai de origami que Kubo usava para representar seu pai em suas histórias, que devido à magia do garoto acabou criando vida própria; e Besouro, um samurai de verdade que, devido a uma maldição, não apenas foi transformado em um monstro parecido com um besouro gigante, mas também perdeu sua memória, sua única lembrança sendo a de que foi aprendiz de Hanzo. Com o time formado, a busca efetivamente começa.
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            Há tantas coisas a serem destacadas neste filme que fica até difícil saber muito bem por onde começar. Comecemos então pela animação, que é provavelmente aquilo que primeiro chama a atenção no filme e sobre a qual seria possível escrever um livro inteiro.
            Embora este não seja exatamente o filme mais caro da Laika, “Kubo e as Cordas Mágicas” é bem possivelmente sua principal tentativa em fazer uma “superprodução”, e mostra bem isso: Os cenários são todos colossais, os monstros que os personagens encontram no caminho são maiores que a vida, e as cenas de luta possuem coreografias tão elaboradas que fica difícil acreditar que elas foram feitas apenas com bonecos presos por mini guindastes e fotografados literalmente frame por frame! Sem falar que o filme consegue superar o principal desafio em se fazer uma animação em stop-motion, a fluidez: Os personagens se movem de forma absurdamente natural, a equipe de produção movendo-os milímetro por milímetro com o máximo de cuidado para fazer com que na tela eles pareçam estar se movendo por conta própria, quase como se fossem computadorizados!
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            Não que o filme não tenha sua dose de imagens computadorizadas, principalmente para criar alguns efeitos de água e céu, porém o grosso da animação é de fato stop-motion: Os personagens, objetos, árvores, casas, até mesmo os monstros gigantossáuricos, essas coisas são reais. E a mistura dos dois tipos de animação acaba dando uma atmosfera especial ao filme: A tecnologia de imagens computadorizadas avançou tanto nos últimos anos que ela consegue parecer quase tão têxtil quanto o stop-motion, e ainda por cima contribui para dar ao filme um ar de magia que o stop-motion sozinho talvez não fosse capaz de dar (pelo menos não sem provavelmente levar a Laika à falência); ainda assim, “Kubo e as Cordas Mágicas” não está afogado em imagens computadorizadas, usando-as apenas quando necessário, permitindo que elas se “camuflem” em meio ao que é realmente táctil, evitando assim que o olho se acostume e consiga diferenciar facilmente o que é “real” e o que não é.
            Meu deus, eu poderia ficar falando da animação de “Kubo” para sempre, de toda a beleza, detalhismo, expressividade, trabalho duro, etc., etc., mas eu realmente quero seguir adiante e falar das outras coisas do filme. Se quiserem, há um vídeo de 15 minutos no youtube mostrando o making-of do filme, que vale a pena como um complemento para quem já o assistiu, e os créditos finais até mostram como foi feito o esqueleto gigante (ou Gashadokuro, se quiser chama-lo pelo nome japonês) que aparece em “Kubo”, o maior boneco já feito para um filme em stop-motion, com quase CINCO METROS DE ALTURA!
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            Aproveitando esta deixa, falemos da mitologia de “Kubo e as Cordas Mágicas”: É impressionante o quanto que este filme captura com perfeição a cultura japonesa para criar sua própria versão folclórica do Japão, construindo um universo onde a magia e espiritualidade nipônicas são tão inegável e inquestionavelmente reais a ponto de poucas explicações serem necessárias. E não são apenas os monstros e até alguns personagens que fazem referência a lendas japonesas (é difícil ver a história da mãe de Kubo e não se lembrar do “Conto da Princesa Kaguya”, tanto o conto em si quanto o filme): Por exemplo, uma parte significativa do filme lida com o festival japonês de Obon, que embora nunca tenha seu nome explicitado, tem todos os seus principais costumes retratados com bastante fidelidade, e até mesmo o significado do festival é aqui apresentado da forma mais literal possível, não como mero simbolismo.
            Não que o filme, aliás, não tenha sua dose de fortes simbolismos, principalmente em se tratando, claro, da importância que o filme constantemente dá para os olhos: Assim como em “Coraline”, aqui os olhos não são tratados apenas como meros órgãos do corpo humano, mas como uma forma de ver o mundo e a vida além de suas frustrações, dificuldades e conflitos, e sacrificar os “olhos” (como símbolo) por uma vida sem problemas é também sacrificar a beleza, as pequenas alegrias e tudo o que faz a vida valer a pena (de novo, difícil não se lembrar de “Kaguya”...), pois é com os olhos que se vê a verdadeira “alma” das coisas – tanto para o bem quanto, como se vê em uma cena do filme, para o mal.
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            Mas não são apenas os olhos, pois o filme aborda, ora de forma mais simbólica/metafórica/alegórica/o-que-quer-que-seja, ora de forma mais explícita, toda uma infinidade de questões existenciais que não se espera geralmente de um filme infantil: Os problemas de memória que diversos personagens apresentam ao longo do filme são uma forma de “Kubo” não apenas discutir o quanto ela é importante para a individualidade de uma pessoa, como também abrir espaço para questões como a preservação da “memória coletiva”; as histórias que Kubo conta, e sua dificuldade em termina-las, são uma abordagem metafórica para a vida e a (i)mortalidade; há também abordagens a temas existenciais como humanidade, família, espiritualidade, e tantas outras questões, que a princípio pode parecer que “Kubo e as Cordas Mágicas” está tentando lidar com areia demais para seu caminhãozinho.
Mas não se enganem: Ao final, tudo isso acaba se costurando em uma única narrativa sólida. E o principal mérito por isso é a própria forma como a narrativa do filme é construída, não apenas como mais uma das 1878919831294 “sagas do herói” que se vê por aí, mas aplicando em si a “lógica de conto-de-fadas”, com muitas coisas específicas ganhando significados muito maiores do que a princípio parecem ter. Devido a isso, o filme acaba em muito parecendo de fato com um conto folclórico japonês que por algum motivo ninguém nunca havia ouvido falar, principalmente também devido à seriedade com que trata a si mesmo: “Kubo e as Cordas Mágicas” não se rebaixa a referências à cultura pop, diálogos “moderninhos” que não se encaixem na época antiga retratada, ou qualquer coisa que o faça parecer forçadamente “bacana” ou “divertidinho”, e não vira a cara quando quer mostrar o lado sombrio da vida para as crianças, com morte, luto, dor e medo sendo mostrados em todo o seu impacto, sem nenhum filtro.
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Mas não confundam “seriedade” com “solenidade exagerada”, pois “Kubo e as Cordas Mágicas” não se esquece de que, para seus momentos tristes e/ou sombrios terem um impacto mais eficiente, é preciso ter um pouco de humor no meio para aliviar a tensão nem que seja por um momento (uma personagem do filme, aliás, diz isso explicitamente em uma cena). Assim, há sua dose de humor, mas este em momento algum ocupa espaço demais ou aparece em algum momento indevido, sendo aplicado na medida certa para o público poder respirar entre um momento dramático e outro.
A seriedade com que o filme trata a si mesmo acaba também dando um maior impacto àquilo que é essencialmente a alma de “Kubo e as Cordas Mágicas”: A aventura, que aqui assume ares quase mitológicos, cada provação que Kubo passa em sua busca tendo proporções hercúleas. E para tornar a aventura ainda mais empolgante, o filme utiliza-se em muito não apenas da lógica narrativa dos contos mitológicos, mas também da dos jogos de videogame (aliás, parando pra pensar, é impressionante o quanto ambas as lógicas narrativas são parecidas, não? Alguém mais inteligente que eu, por favor, faça uma tese sobre isso!), com Kubo viajando através de diversos cenários – que variam desde um campo de gelo até um castelo abandonado – em busca de certo número de itens bastante específicos que, juntos, o tornam mais forte, e em cada cenário enfrentando uma criatura diferente, cada uma mais forte que a outra – ou, porque não chama-los assim, “chefões” –, o próprio Kubo ganhando experiência, aprendendo coisas novas e ficando mais poderoso ao longo da jornada. Soa familiar?
Bem que já disseram antes de mim que “Kubo e as Cordas Mágicas” é possivelmente o mais próximo que algum dia teremos de um filme de “The Legend of Zelda”: Basicamente, misture “The Legend of Zelda” com “Okami” e você terá...
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            Hum... Ok, essa também é uma alternativa certa.


Avaliação: Vale muito a pena.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Katyn

Acho que até agora não me foquei em nenhum filme de guerra neste blog, não? Por mais que tenha aqueles filmes de guerra por aí que são realmente muito bons e que todo mundo deveria assistir pelo menos uma vez na vida, sempre tive certa dificuldade em saber como reagir após assistir um. Quero dizer, são filmes tão pesados e que lidam com temas tão difíceis, que pra mim a melhor coisa a se fazer sempre foi deixar seus temas serem digeridos em silêncio, sem tentar verbalizar suas descargas emocionais. Mas, minha proposta aqui é justamente verbalizar minhas impressões dos filmes que assisto, por mais que às vezes seja um tanto difícil, o que vai tornar essa crítica consideravelmente mais curta (e possivelmente medíocre) que o meu normal, já aviso. Sendo assim, falemos aqui de “Katyn”, do diretor polonês falecido a pouco Andrzej Wajda.
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            “Katyn” lida com o que é bem possivelmente um dos episódios mais controversos do front do leste europeu na 2ª Guerra Mundial, no qual mais de 20 mil poloneses, em sua maioria oficiais militares, foram executados e enterrados em uma vala comum na floresta de Katyn, na atual Rússia. Controverso porque, durante décadas, a União Soviética, com o apoio do governo comunista polonês, afirmou que o massacre foi realizado pelos nazistas em 1941, época em que as tropas alemãs controlavam a região. Foi apenas no final da década de 80, com o fim do governo comunista, que os poloneses puderam dizer publicamente o que eles já vinham suspeitando há muito tempo: Que o massacre havia sido na verdade realizado pelos próprios soviéticos.
            E de fato, no ano seguinte, o então líder soviético Gorbachev foi obrigado a admitir que o massacre foi realizado sob ordens de Stalin, e após o fim da União Soviética o presidente russo Yeltsin tornou públicos os documentos que autorizavam a execução de oficiais poloneses em 1940, quando os nazistas ainda não haviam dominado a região de Katyn.
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            Dou essa contextualização toda porque, mais uma vez, estou me metendo em um filme que não foi feito pra mim: Wajda, enquanto vivo, afirmava que fazia filmes para os poloneses, sem pensar no reconhecimento internacional. E “Katyn” mostra bem isso, retratando diversas situações comuns no país durante a guerra e nos anos seguintes com a “naturalidade” de quem viveu elas: De fato, Wajda não apenas permaneceu na Polônia durante a 2ª Guerra, como também seu pai foi um dos oficiais executados em Katyn, o que dá ao filme um tom extremamente pessoal.
            Ainda assim, não vamos esquecer que “Katyn” é uma obra de ficção. E seu enredo, menos do que no massacre em si, foca-se nas famílias dos executados, principalmente nas figuras femininas: As esposas, filhas, mães e irmãs que sobreviveram à guerra e, pelos anos seguintes, foram atormentadas pela dúvida quanto ao que realmente aconteceu com aqueles que perderam, proibidas de qualquer expressão que se oponha à “verdade” divulgada de que o massacre foi realizado pelos nazistas.Resultado de imagem para Katyń film
Entre elas, encontram-se Anna (interpretada por Maja Ostaszewska), esposa de um capitão de cavalaria, a poderosa figura materna capaz de ir de um lado ao outro da Polônia por sua família, e que de certa forma serve como personagem principal do filme; Róza (interpretada por Danuta Stenka), a orgulhosa esposa de um general que se recusa a ceder a qualquer pressão em relação ao massacre; e as duas irmãs de um tenente da aeronáutica, que embora ambas se rebelem contra o regime comunista da Polônia pós-guerra, diferem mesmo assim na forma como acham correto se rebelar.
            Embora o protagonismo seja definitivamente das mulheres, os homens também têm seus papeis importantes, ligando todas essas vidas aparentemente paralelas. Ainda assim, é uma ligação bastante mórbida, com quase todos os personagens masculinos sofrendo algum tipo de destino horrível, mesmo que não tenham sido executados em Katyn. Ao final, apenas elas é que sobram, tendo que, das mais variadas formas, lidar com o novo regime por conta própria.
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            Como os mais importantes filmes de guerra, “Katyn” foge tanto quanto possível do cinema de entretenimento e se aproxima no lugar do cinema essencial: É um filme que não queremos ver, mas que precisamos ver; que não necessariamente alguém pediu para ser feito, mas que precisava ser feito. Através dos olhos daqueles (e principalmente daquelas) que ficaram, não se preocupa em passar uma “moral da história”, uma “lição de superação” ou qualquer resposta fácil para as questões que aborda, tanto que, de forma quase irônica, ao final do filme, quando se espera um letreiro que dê algum dado histórico para o público refletir a respeito, o que se tem é apenas uma tela preta. Sem falar que, para dar um ar ainda maior de documentário para essa obra de ficção, Wajda chegou a inserir nele cenas de cinejornais nazistas (que, ao descobrirem as valas comuns onde os executados foram enterrados, usaram o massacre como propaganda antissoviética) e soviéticos (que, ao assumirem o controle sobre a Polônia, usaram o massacre como propaganda anti-nazista) aos quais ele conseguiu acesso. “Katyn” não pretende ensinar nada que não seja uma tragédia histórica; não pretende dizer nada que não seja um grito de angústia preso por décadas na garganta.
            Claro que tal intensidade devastadora não vem sem seus custos, em especial nos personagens, que em sua maioria possuem aparições, digamos, “rasas” demais, com o filme pouco se aprofundando em seus dramas e sofrimentos íntimos, tornando-os pouco memoráveis individualmente (é bem possível que você acabe por confundi-los entre si em algum ponto da história), o que acaba também, como consequência, fazendo algumas cenas parecerem melodramáticas demais, especialmente aquelas que exigem que nos importemos com os personagens não como representações simbólicas de um povo, mas sim como, bem, personagens; assim, acabamos pouco nos importando quando, por exemplo, dois adolescentes subitamente se apaixonam após três minutos juntos. No geral, os personagens acabam não sendo muito interessantes, e você se importa com eles mais por causa das situações horríveis que vivem.
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Ainda assim, embora sua experiência narrativa seja um tanto desequilibrada, isso não torna “Katyn” um filme ruim. Da mesma forma como “1984” não deixa de ser um clássico da literatura só porque os personagens são a parte na qual você menos se investe, “Katyn” não é muito diferente, e o motivo é o mesmo: Em ambos, a narrativa não é o ponto principal. O ponto principal (curiosamente bastante semelhante nos dois casos) é fazer um ensaio sobre a opressão ideológica e a manipulação em nome do poder, e o que torna ambos bons ensaios é a intensidade de suas narrativas mais do que as narrativas em si, assombrando o público e causando uma impressão difícil de ser esquecida.
E de fato, intensidade é a palavra-chave aqui: Da sequência inicial, mostrando um grupo de poloneses atravessando uma ponte para fugir da invasão alemã, apenas para encontrar outro grupo de poloneses do outro lado fugindo da invasão soviética, com a ponte retratando de forma alegórica a sensação dos poloneses de estarem encurralados e sem terem para onde fugirem (de onde você acha que veio a expressão “corredor polonês”?); até a sequência final, em que Wajda, durante dez angustiantes minutos, retrata, na forma das páginas em branco de um diário, como o massacre de Katyn deve ter ocorrido, não poupando nenhum personagem (e muito menos o público); passando pela pesarosa trilha sonora de Krzysztof Penderecki, que não raro mais lembra uma marcha fúnebre; “Katyn” é um filme dirigido de forma poderosa, cada pequena cena te dando um aperto no peito.Resultado de imagem para Katyń film
Como se não bastasse, não deixa de ser um grande épico, com centenas de figurantes, uma minuciosa reconstrução do período retratado, e uma câmera que parece percorrer cada milímetro de seus enormes e variados cenários, fazendo qualquer cinéfilo se impressionar com a energia que Wajda, na época com mais de 80 anos, dispôs para realizar esta obra.


Avaliação: Vale a pena.