Após um hiato tão longo que
provavelmente até George R. R. Martin diria “Cara, senta a bunda na cadeira e
volte a trabalhar!”, aqui estou eu de volta com este meu blog! Será que vou
falar de algum filme que está nos cinemas? Será que vou fazer um comentário
sobre a gafe do Oscar? Será que vou fazer uma crítica do vencedor de Melhor
Filme (os dois)? Ou, no mínimo, será que vou fazer uma crítica de algum filme
simples, fácil de apontar os acertos e erros, para aquecer e voltar ao ritmo
aos poucos?
Não,
é claro que não! Vou já chegar direto de quase quatro meses sem fazer nenhuma
atividade mental e vou falar de um filme de David Lynch! E não é nem um dos
grandes ou compreensíveis dele, como “O Homem-Elefante” ou “Duna”: Não, é
justamente “Estrada Perdida”, um filme que na época de seu lançamento, em 1997,
ninguém entendeu, e que veio a se tornar o maior fracasso de bilheteria do
diretor até agora.
Sim,
é desse filme que vou falar. Porque aparentemente algo em mim me proíbe de
fazer coisas que tenham sucesso e chamem a atenção de mais do que um punhado de
gatos pingados... Mais ou menos como David Lynch, parando pra pensar.
David
Lynch já é um diretor que divide opiniões: Uns o consideram um dos cineastas
americanos mais subversivos e originais da atualidade, um gênio à frente de seu
tempo; outros o consideram estranho demais, seus filmes não tendo pé nem cabeça
puramente por não terem pé nem cabeça. Mas “Estrada Perdida” é um de seus
filmes que não divide os críticos apenas ao serem perguntados se o filme é bom
ou ruim: Divide-os até mesmo com a simples pergunta de sobre o que o filme se
trata!
Inicialmente,
o filme não parece ser nada muito complicado de se entender: Somos apresentados
a Fred Madison (interpretado por Bill Pullman), um saxofonista que vive em uma
bela (embora perturbadoramente minimalista) casa de classe alta em Los Angeles
com sua bela esposa Renee (interpretada por Patricia Arquette) – que ele
suspeita que o está traindo, depois de uma noite ligar pra Renee e ela não
atender nenhum dos telefones de sua casa. A paranoia de Fred é incentivada pelo
fato de que a vida sexual do casal não é exatamente das mais... Hum... Excitantes, como mostra uma cena em que
eles fazem sexo, ambos com cara de quem está apenas se esforçando para cumprir
uma obrigação.
Paralelo a isso, outras
coisas estranhas começam a acontecer na vida de Fred: Ele recebe uma mensagem
no interfone dizendo “Dick Laurent está morto”, mas ao olhar pela janela não vê
ninguém na rua; o casal começa a receber envelopes anônimos com videocassetes
(pras crianças que são jovens demais pra se lembrar disso, é como uma caixa
preta enorme do tamanho de um livro contendo um filme e que para assistir se
inseria num VCR, um trambolho que fazia mais ruído que o próprio filme, e não
tinha direito nem a escolher entre assistir dublado ou legendado! Vocês não
imaginam a sorte que tem em nascer na era da internet) mostrando filmagens
perturbadoras da casa deles, inclusive do interior; e em uma festa, Fred
conversa com um homem misterioso (interpretado por Robert Blake), que enquanto
ambos conversam afirma estar na casa deles naquele exato instante, até
oferecendo que Fred telefone para casa para comprovar isso.
Um dia, Fred recebe uma
última fita de vídeo, que o mostra gritando enlouquecidamente ao lado do corpo
desmembrado de Renee. A cena seguinte mostra Fred, confuso, sendo preso e
julgado culpado pelo assassinato de sua esposa, apesar de negar ter cometido o
crime. Ele é então enviado ao corredor da morte, para ser executado via cadeira
elétrica.
Até
aí, o filme é um pouco estranho, de fato, mas ainda faz algum sentido – ou pelo
menos se espera que fará. Mas eis que, na marca dos 40-e-tantos minutos, ocorre
a grande reviravolta: Uma noite, em sua cela, Fred, que há dias tem sofrido de
dor de cabeça, vê uma cabana em chamas revertida (?????) e tem algum tipo de
convulsão violenta. No dia seguinte, um guarda da prisão vai checar a cela de
Fred... Apenas para, no lugar dele, encontrar um jovem completamente diferente,
que não faz a menor ideia de como foi parar lá. O jovem é logo identificado
como Pete Dayton (interpretado por Balthazar Getty), e, sem ter motivo para
mantê-lo lá nem explicação para o que raios aconteceu, a polícia decide
soltá-lo.
O
que se segue é uma trama digna de um filme noir,
com Pete recomeçando sua vida morando na casa dos seus pais, saindo com seus
amigos e sua namorada, e trabalhando em uma oficina de carros... Até que ele se
envolve com o mafioso Sr. Eddy (interpretado por Robert Loggia) e tem um caso
com a bela namorada de Eddy, Alice – que é igual a Renee (afinal, é
interpretada pela mesma atriz), a única diferença sendo que seu cabelo é loiro
ao invés de moreno. E ao longo do filme, muitos outros paralelos entre a antiga
vida e Fred e a nova vida de Pete vão surgindo.
Há
praticamente tantas explicações para este filme quanto críticos que resolveram
analisa-lo: Explicações que passam pelo sobrenatural, pela ficção científica,
pela narrativa anacrônica ou até mesmo pelo psicológico/delirante. E, como
acontece em boa parte dos filmes de David Lynch, muitas dessas explicações e
teorias fazem igual sentido entre si.
Uma bastante comum é a
de que o Homem Misterioso (é assim que o personagem de Robert Blake é chamado)
seria o Diabo – sua aparência inclusive lembra uma figura demoníaca -, e de
que, no corredor da morte, Fred teria vendido sua alma em troca de uma segunda
chance como outra pessoa – o que explicaria a visão da cabana em chamas, que
poderia muito bem ser uma alusão ao inferno. Pensando desta forma, Renee/Alice
poderia muito bem ser uma emissária do Diabo, que seduz Fred/Pete a um caminho
sem volta.
Outra
teoria interessante é a de que o filme na verdade é contado de forma
anacrônica, com Fred e Pete sendo exatamente a mesma pessoa, apenas em momentos
diferentes de sua vida. Uma variação dessa teoria inclui ainda um cenário de
ficção científica, com realidades paralelas e inclusive o protagonista, em um
dado momento do filme, viajando no tempo a
la “Donnie Darko”. Há ainda os que dizem que todo mundo pensa demais e que
tudo não passa de uma mera troca de corpos sem explicação nenhuma, simples
assim – embora esses, como se possa imaginar (ainda mais depois de assistir o
filme), sejam uma minoria.
Uma
teoria que tem crescido bastante entre críticos e cinéfilos nos últimos anos é
a de que a segunda parte do filme envolvendo Pete seria puramente um produto da
imaginação de Fred, uma fantasia que ele cria para si mesmo no corredor da
morte de forma a negar a cadeira elétrica que o espera por ter matado sua
esposa – um delírio no qual ele milagrosamente receberia uma segunda chance de
viver como um homem inocente. Pesquisando para escrever esta crítica, encontrei
inclusive um vídeo no YouTube que analisa que até mesmo a primeira parte do
filme, com Fred e Renee, não seria “real”, e sim a memória subjetiva de Fred –
a forma como a mente dele “escolheu” se lembrar dos eventos que levaram à morte
de sua esposa. Dessa forma, apenas as cenas de Fred na prisão e as imagens que
aparecem nas fitas de vídeo seriam a realidade concreta.
Todas
essas teorias são de fato interessantes para uma discussão em cima do filme e
de quais seriam os temas que ele aborda, e todas têm seus pontos em que fazem
sentido e seus furos. Mas adivinhem só: nada
disso é necessário para se aproveitar a experiência de se assistir este filme.
Claro que, se você já o assistiu e quer desvendá-lo como se fosse um
quebra-cabeça, elas são úteis para que você possa encontrar sua própria explicação
para as coisas estranhas que acontecem, mas independente de qualquer explicação
que você achar mais adequada, “Estrada Perdida” não é o tipo de filme cujo
quebra-cabeça necessita de uma solução (e David Lynch não é o tipo de cineasta
que se importa com a solução que você achar certa para seus filmes).
De fato, a solução para
o que raios acontece com Fred e Pete é a parte menos importante do filme. Não
há um mistério a se resolver em “Estrada Perdida” porque o próprio filme é um mistério bizarro do começo ao fim, O que
realmente importa é aproveitar a experiência memorável que ele proporciona,
para o bem ou para o mal.
Para
o mal, porque, como a maioria dos filme de Lynch, “Estrada Perdida” demanda
paciência e atenção, e não é todo mundo que vai ter saco para isso –
especialmente a primeira parte do filme com Fred, que é quase propositalmente
chata. E aqueles mais pacientes que estejam dispostos a assistir um filme mais
lento e quieto talvez até se frustrem um pouco com a parte de Pete, que é mais
barulhenta e exagerada, em muitos momentos brincando com o estilo trash, como David Lynch por vezes gosta
de fazer – sem falar que a cara inexpressiva de Balthazar Getty chega quase a
ser irritante, apesar de essa ser a proposta para seu personagem.
Por
outro lado, porém, apesar do ritmo lento, a parte de Fred é extremamente
atmosférica: Pouca coisa acontece, pouca coisa é dita e até mesmo pouca coisa
aparece em cena, tão minimalista quanto um filme pode ser; e mesmo assim, ou
até justamente por isso, essa parte do filme te prende e não te deixa desviar a
atenção, passando a sensação de que a qualquer momento algo muito ruim irá
acontecer, como em um filme de terror psicológico. E a parte de Pete possui uma
cinematografia impecável, que nos permite adentrar no filme e sentir o que os
personagens estão sentidos, mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, nos deixa
conscientes de que o que estamos assistindo é um filme, permitindo que o
apreciemos friamente como tal. Sem falar que, em contraposição ao lento terror
psicológico da primeira parte, o ritmo rápido, o estilo trash e o uso proposital de clichês noir da segunda parte chegam a ser quase cômicos. Enquanto a
primeira parte se aproxima mais da arte, a segunda se aproxima mais do
entretenimento.
Ao final, terminamos de assistir “Estrada
Perdida” sem saber muito bem o que pensar do filme. Não sabemos se ficamos
extasiados ou muito, muito confusos, ou até mesmo deprimidos pelos rumos que a
trama toma. E, de certa forma, isso acaba sendo bom. Como outros filmes de
Lynch, este não é um que dá respostas fáceis e conclusões convencionais, e seu
final quase caótico é um desafio para que o próprio público tire suas
conclusões, sem que nenhum consenso seja esperado. Talvez quem não tenha já um
mínimo de noção do estilo de David Lynch de fazer filmes - com seus mistérios,
seus toques sombrios e até metafísicos, e seu jeito de não se importar se
acompanhamos sua linha de pensamento ou não - e assista “Estrada Perdida” na
raça fique um tanto perdido e não goste tanto do filme. Mas uma coisa é certa:
Este será um filme do qual a pessoa se lembrará ainda por um bom tempo. Ou, no
mínimo, não conseguirá tirar da cabeça sua trilha sonora, que é tão anos 90
quanto uma trilha sonora tem o direito de ser, incluindo cantores e bandas como
Nine Inch Nails, Rammstein, David Bowie, Smashing Pumpkins e até mesmo Marilyn
Manson, que inclusive faz uma ponta perto do final do filme. Ah, e já disse que
tem até uma versão instrumental de “Insensatez” de Tom Jobim? Sei que não é
exatamente “anos 90”, mas achei bom anotar.
Avaliação: Vale
a pena.